15 Março 2025
"O chamado que Abraão ouve é traduzido por André Chouraqui nos seguintes termos: 'Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e leva-o acima de uma das montanhas, que eu te indicarei'. (Gênesis 22,1-2)", escreve Jean-Claude Thomas, cofundador do Centre Pastoral Halles-Beaubourg e presidente da associação Arc en Ciel, em artigo publicado por Saint-Merry Hors-les-Murs, 11-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com as pessoas que encontro, crianças ou adultos, frequentemente falamos sobre Abraão. No que chama a atenção hoje esse patriarca bíblico, tão distante de nós no espaço e no tempo?
Em primeiro lugar, no fato de ele ter percorrido um longo caminho, porque sua fé foi expressa naquela longa jornada em que descobriu que Deus o acompanhava, embora tivesse partido “sem saber para onde estava indo”. Uma nova relação se estabelece entre Deus e ele, o que o constitui como pessoa. Na linguagem atual, Deus se revela como um parceiro no surgimento do sujeito.
Muitos sentem essa experiência fundamental como próxima a si mesmos. Parece-lhes que sua própria jornada interior se assemelha àquela de Abraão. Embora não saibam quase nada sobre a situação da época e os países que ele atravessou, sentem uma proximidade real entre o que ele vivenciou e o que eles vivenciam hoje. Esse “amigo de Deus” (um de seus apelidos) é alguém que abriu o caminho para os crentes. E hoje, como ele, muitos são marcados pelo paradoxo da presença de Deus, ao mesmo tempo próxima e oculta, que convida a caminhar com confiança, guiados por uma promessa, sem saber claramente para onde estamos indo.
Mas o que pode haver em comum entre nossa solidão interior e a aventura desse homem? Ele não tem as características de um homem sozinho ou de um caminhante solitário. Ele parte com sua esposa, com seu sobrinho, “com todos os bens que haviam adquirido e as almas que lhes acresceram” (Gênesis 12,5). Um grande pastor nômade, viaja para o norte ao longo do Crescente Fértil, desce para a terra de Canaã e depois para o Egito. Em seguida, sobe para o Negev, e a Bíblia ressalta que ele era “muito rico em gado, prata e ouro” (Gênesis 13,2). Por ser muito rico em gado pequeno e grande para viver com Ló, seu sobrinho, se separa dele. Mas quando Ló é atacado, Abraão reúne seus partidários, vai para a batalha e é tratado como igual pelos reis do lugar, como Melquisedeque, rei de Salém. Sim, de fato, o que ele tem em comum conosco?
O que não aparece à primeira vista, mas que, em última análise, caracteriza a fé de Abraão, é uma forma de “não posse”. A promessa, como aparece no livro de Gênesis (15,7), é a seguinte: “Eu sou o Senhor, que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para herdá-la”. Mas quando Abraão faz a pergunta: “Senhor Deus, como saberei que hei de herdá-la?”, Deus não lhe oferece uma terra, mas uma aliança. Uma aliança, não uma posse sobre a qual poder colocar as mãos.
A promessa, de fato, não leva a um certificado de propriedade, como alguns pensam hoje, dadas as palavras no final do capítulo 15 de Gênesis. [“À tua descendência tenho dado esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates”].
A aliança pressupõe um corte, um vazio, conforme expresso no ritual descrito em Gênesis (15,9-17): animais cortados ao meio, pelos quais um braseiro fumegante e uma tocha acesa passam após o pôr do sol. Em hebraico, não se usa “selar um pacto” ou “fazer um pacto” (ou uma aliança), mas “cortar um pacto”, o que pode parecer paradoxal. Mas é nesse vazio, nesse espaço que separa, que algo de único acontece, algo que não pode ser pego ou reservado em garantia. Uma relação viva que não é nem um seguro nem uma garantia. Um vínculo vivo a ser continuamente renovado, não um tratado ou um certificado de propriedade.
A promessa recebida era, de fato, a de ir para a terra prometida (Gn 15,7). Mas, na realidade, não se tornará seu proprietário. Ele mesmo não possuirá nenhuma terra, exceto aquela que negociará com os habitantes de Hebrom para enterrar sua esposa. Nômade até o fim, morre em uma velhice feliz, idoso e rico de dias, e é enterrado com Sara naquele minúsculo pedaço de terra.
Da mesma forma, é verdade que a promessa de ter um filho é cumprida, mas ele terá de passar por uma forma de “não posse” desse filho. Não que o filho seja permanentemente tirado dele, como ele pensa por um momento, mas aqui também lhe é pedido que não se coloque como dono e proprietário, mas para abrir as mãos em vez de fechá-las sobre o objeto da promessa. O desafio, tanto para ele quanto para nós, é experimentar uma nova forma de relação que o constitua como uma pessoa viva em relação com o Deus vivente.
O chamado que Abraão ouve é traduzido por André Chouraqui nos seguintes termos: “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e leva-o acima de uma das montanhas, que eu te indicarei”. (Gênesis 22,1-2) Em vez de traduzir: “Suba à montanha e sacrifique seu filho”, está escrito “Vai-te” ou “Vai em tua direção”, e fala-se em “subir” com o filho. Ir em direção a quê? Subir em direção a quê? Isso não é dito. Mas, para a surpresa de Abraão, não se trata de sacrificar seu filho para agradar a um Deus que deveria amar esse sacrifício, mas de ir em direção a uma nova relação com Deus. Uma relação que o constitui como sujeito autônomo, uma pessoa como um todo.
Em um mundo onde os nômades são cada vez menos numerosos, todos nós nos tornamos “nômades interiores” de alguma forma. Estamos todos nos movendo em direção a um futuro que é em grande parte desconhecido. No início, todos nós fomos moldados por nosso ambiente social, familiar, cultural e espiritual. Mas, apesar de nosso desejo de permanecer nesse casulo, tivemos de “partir”. Como Abraão, que saiu de Ur, na Caldeia. Nós também somos forçados pelos acontecimentos a partir para.... não sabemos bem o quê.
Será que somos simplesmente andarilhos sem pontos de referência? Não, mas quando somos levados ao desconhecido, os únicos pontos de referência que importam são a promessa que nos ilumina, que nos abre o futuro - em vez de ser uma ameaça ou uma fatalidade - e uma presença oculta que nos acompanha e nos tranquiliza. Como Abraão, que descobre a verdadeira presença de Deus ao longo das estradas que o levam ao desconhecido - e que é convidado a olhar para o céu para ver ali uma imagem da imensa aliança que esse Deus lhe abre.
Na época de Abraão, todos os homens buscavam Deus onde estavam suas raízes. Era o Deus de um povo, de uma cidade, de um canto do mundo. Afastar-se dele era, portanto, perigoso. Os atos religiosos só podiam ser realizados no lugar do deus em questão. Mudar de lugar significava mudar de deus.
Ao deixar Ur, na Caldeia, sua terra natal e local de origem, e seguindo a palavra - e a intuição interior - que lhe diz: “Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12,1), Abraão rompe com essa experiência religiosa. Ele entra em outra dimensão da fé, muito interessante para nós hoje. Deus não está mais atrás, mas à frente. Ele não está mais preso à tradição ancestral, mas se faz promessa e abre um futuro de aliança. É uma aventura arriscada, pois, embora a terra de origem seja visível, a terra para a qual ele caminha é desconhecida.
Em muitas ocasiões, Abraão se preocupa: com a terra, com seu povo, com sua própria sobrevivência, com seu filho e seus descendentes: “Senhor Deus, que me hás de dar, pois ando sem filhos...” (Gênesis 15,2). E Sara, sua esposa, escondida na tenda, ouvindo a promessa feita pelos três misteriosos visitantes dos carvalhais de Mambre, não pode deixar de rir: “Terei ainda deleite depois de haver envelhecido, sendo também o meu senhor já velho?” (Gn 18,12).
Mas de acampamento em acampamento, de confiança perdida em confiança encontrada, é nesse caminho perigoso que Abraão abre um verdadeiro caminho para nós hoje. Assim, muito além de sua linhagem carnal, ele se torna e continua sendo o “Pai dos crentes”.
Reconhecido como tal por judeus, cristãos e muçulmanos. Na encruzilhada inicial, ele é, como diz São Paulo, “o pai daqueles andam nas pisadas daquela fé que teve (Rm 4,12).
Mas de que tipo de fé estamos falando? Sejamos claros: não é uma fé que se resume na adesão a uma das religiões monoteístas, seus dogmas e ritos. Trata-se de outra coisa. A fé de que estamos falando, fé à maneira de Abraão, é essencialmente esperança e até mesmo a superação da esperança, por meio das sucessivas “perdas de posse” que marcaram sua história. Como São Paulo resume: “O qual em esperança, creu contra a esperança, tanto que ele tornou-se pai de muitas nações (Rom 4,18).”
Essa fé não é a adesão a um credo ou dogma, essa fé não é a adesão a uma religião, essa fé não é evidente por si mesma, mas um caminho a ser seguido, essa fé é escuta e acolhimento da palavra de um outro, essa fé é assumir riscos e entrar no desconhecido, essa fé é confiança e esperança, essa é a fé que Jesus enfatiza e admira, sempre que a encontra em seus interlocutores.
É surpreendente notar que, na maioria das vezes, de acordo com os Evangelhos, não é em pessoas que deveriam ser “crentes” ou entre seus discípulos que ele a encontra, mas em estranhos, em pagãos.
É o caso do centurião romano de Cafarnaum (Lc 7,6-9). É o homem que nos legou estas palavras, tantas vezes repetidas: “nem ainda me julguei digno de ir ter contigo; dize, porém, uma palavra,...” Jesus diz a respeito dele: “Digo-vos que nem mesmo em Israel encontrei semelhante fé”.
O mesmo se aplica à mulher cananeia que encontra na terra de Tiro e Sidônia, em pleno território pagão (Mt 15,21-28). Inicialmente rejeitada por Jesus, ela retorna e diz: “Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores”. Jesus responde: “Ó mulher, grande é a tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas”.
O mesmo acontece com a mulher que, sofrendo de hemorragia, tenta se aproximar de Jesus no meio da multidão e toca a franja de seu manto (Lc 8,43-48). Jesus diz a ela: “Minha filha, sua fé a salvou. Vá em paz”.
À luz destes exemplos, poderíamos dizer que a fé, de acordo com Jesus, é um impulso de todo o ser em direção ao que ainda não foi realizado, mas esperado, confiando na palavra ou na presença de outro, é um impulso de todo o ser movido pelo desejo, é um impulso habitado por uma confiança empreendedora.
E isso é muito semelhante à relação entre Jesus e o Pai, esse impulso de todo o seu ser, habitado por uma confiança empreendedora e incessantemente renovada, alimentada pela escuta e pela acolhida do Outro, uma confiança posta em risco até a imersão nas trevas, no sofrimento e na morte.
É legítimo falar da fé de Cristo?
Como muitos, antes de descobrir um pequeno livro de Urs von Balthasar com esse título, eu estava mais acostumado a falar de “fé em Jesus Cristo” do que de “fé de Cristo”. Talvez um pouco ingenuamente, parecia-me que, se ele era o “Filho de Deus”, isso o dispensava da necessidade de “ter fé”. Intrigado, abri aquele livro e o li com crescente interesse. É um mergulho no coração dos Evangelhos, no coração da humanidade de Jesus e no mistério da encarnação. Urs von Balthasar escreve: “A fé ... Jesus a viveu melhor do que qualquer outro: a fidelidade do Filho do homem ao Pai, dada de uma vez por todas e renovada a cada momento; a preferência incondicional pelo Pai, por seu ser, seu amor, sua vontade e seu comando, acima de todos os nossos desejos e inclinações; a perseverança inabalável nessa vontade, aconteça o que acontecer; e, acima de tudo, a disponibilidade nas mãos do Pai, a recusa de querer conhecer a hora com antecedência e de antecipá-la”. A fé cristã não pode ser concebida senão como aquela que nos introduz na atitude mais profunda de Jesus. (La fede di Cristo, p. 27-30, 48-49)
Joseph Moingt nos leva ainda mais longe nessa descoberta de uma forma de fé vivida no seguimento de Cristo. Ele usa uma expressão paradoxal: “a certeza da fé é uma interrupção de garantia”.
Escreve: “Jesus ... expressou ele mesmo sua confiança em Deus no paradoxo de que é preciso 'perder a vida para salvá-la', e ... a interrupção da garantia é uma tarefa obrigatória para favorecer o encontro entre o Deus livre e o homem a ser libertado”. Jesus, de fato, que havia se sentido abandonado por Deus em relação à sua missão histórica e à sua vida futura, ainda assim confiou nele até o fim, até renunciar à sua vida em troca, e se apresentou diante dele, em toda a sua fraqueza e nudez, sem poder se valer de nenhuma garantia, nem de ter cumprido sua missão nem de se beneficiar do bom testemunho da Lei, sem outra certeza além da confiança que depositava em Deus. É somente sobre essa confiança que se alicerça a nossa fé, em tal despojamento, e somente dela provém a salvação, porque Deus não abandonou aquele que nele depositou sua confiança. Nessa suspensão de todas as garantias, aconteceu (...) a revelação da salvação, abrindo caminho imperiosamente através da história das religiões e libertando-se para emergir em Jesus, removendo brutalmente de seu caminho as garantias de salvação que os homens de todos os tempos buscavam nas religiões”.
Total gratuidade e total liberdade de ambos os lados.
A adesão (adesão é o sentido primário da palavra fé em hebraico) ao Pai não é uma garantia nem uma segurança, mas abre um espaço no qual o amor pode se desdobrar livremente. A fé se nutre de descobertas, palavras acolhidas e saboreadas, de intuições compartilhadas, de escuta e de silêncio.
Mas também é sinônimo de risco aceito e confiança doada.
Mais que o “pai dos crentes”, no sentido dos seguidores das três religiões monoteístas, seria mais correto reconhecer Abraão como o pai daqueles que compartilham essa “fé nômade”.
Quando caminhamos nas montanhas, numa praia ou ao longo de uma trilha entre os bosques, podemos nos lembrar dele como um companheiro, um amigo de Deus e dos homens, cuja fé consiste em seguir o Deus que está em caminho através do tempo e que abre o caminho para nós, sem que saibamos de antemão aonde nos levará.