A primazia da palavra e da escuta

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30 Mai 2018

"À imagem de Jesus, o pregador deveria sempre procurar nos textos a boa notícia, o Evangelho a ser transmitido para os ouvintes. Não deveria pregar, ouvindo suas próprias emoções, suas próprias necessidades urgentes, mas "dizer" a boa notícia. Se uma homilia não tiver isso, os destinatários sentem tédio, desconforto, param de ouvir", escreve Enzo Bianchi, monge italiano, em comentário publicado por Vita Pastorale, 28-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo

Quando tentamos ler a relação entre palavra de Deus e povo de Deus, resulta evidente que, hoje, tal ligação é garantida quase que exclusivamente pela liturgia eucarística dominical, onde o anúncio da Palavra e a homilia do sacerdote que preside à assembleia chegam aos ouvidos dos fiéis que a escutam.

Apesar do fim do exílio da Bíblia da comunidade cristã que aconteceu com o Concílio Vaticano II, ainda não amadureceu a assiduidade pessoal com a palavra de Deus, através da leitura ou a lectio divina fora do contexto litúrgico. São poucos aqueles que, a cada dia, buscam o Evangelho para nutrir a sua vida de fé e para orientar o seu agir na história e no mundo. Em muito poucas comunidades a lectio divina comunitária semanal e a homilia na liturgia eucarística são articuladas como dois momentos distintos, com uma própria forma, um próprio estilo, uma adequada colocação no ritmo litúrgico.

É importante perguntar-se como a homilia é feita e recebida, sendo um ato decisivo, cuja eficácia e recepção moldam a fé e a vida dos batizados. O que parece urgente explicar?

Hoje - deve ser reconhecido - quase todas as homilias querem ser inspiradas pelas leituras litúrgicas, especialmente pelo Evangelho, porém são poucas aquelas que são realmente capazes de ser euanghelion, bela e boa notícia para os homens e mulheres do nosso tempo.

É verdade: é cada vez menos atestada uma homilia marcada pelo literalismo, ou seja, onde a letra do texto é recontada sem o esforço da interpretação e do discernimento. É igualmente rara a homilia que atravessa os textos como sítios arqueológicos, parando de forma enfadonha na redação ou na análise histórico-crítica. Estamos, no entanto, ainda longe da recepção da palavra de Deus compreensível apenas na história e na escuta do mundo. O pregador deve, em primeiro lugar, ser um ouvinte não só do Senhor que fala nas Escrituras, mas também do povo destinatário da Palavra, aqui e agora.

Na Evangelli gaudium o papa Francisco dedicou uma ampla seção à homilia (135-175), tão extensa a ponto de parecer desproporcional em relação ao resto da exortação, mas ele fez isso na certeza de uma mudança necessária nessa diaconia da Palavra. Todo o seu ensinamento gira em torno da necessidade do pregador, evangelizado pela Palavra, ser um evangelista capaz de exortar o povo. Francisco também oferece orientações muito práticas tanto para a preparação, como para a linguagem e o estilo a ser adotado.

Mas o que me parece ser o mais importante na sua Exortação sobre a homilia é uma dupla urgência: a primazia da Palavra e a primazia da escuta concreta, cotidiana. A escuta tanto pela comunidade que é "profética", capaz de sensus fidei, como da humanidade que está à espera de uma palavra que possa tornar sensata a vida de cada um. O que é necessário, portanto, para que a homilia realmente seja uma boa notícia que convide à conversão e atraia para a adesão, para crer nessa Palavra plena de eficácia, capaz de salvação? Em primeiro lugar, é preciso olhar para Jesus, em cuja vida muito humana Deus quis se revelar. Jesus pregou o evangelho de Deus, mostrando ser habitado por uma sabedoria humana (sophia), que lhe era reconhecida no seu anunciar, pregar, dialogar com aqueles que ele encontrava. E se as pessoas se admiravam com a sua doutrina (didache), isso se devia à autoridade (exousia) que emanava de suas palavras. Jesus aparecia como um mestre, um profeta confiável e plausível porque havia coerência entre o seu viver e o seu falar. Essa sua integridade, essa sua prática humana da fé despertavam a exclamação: "Nenhum homem jamais falou como este homem" (Jo 7.46). E não porque houvesse nele algo sobre-humano, mas justamente por sua humanidade!

Em Jesus havia também a capacidade de escuta dos homens e das mulheres a quem ele se sentia enviado. Por isso andava de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, pregando a vinda do Reino, anunciando-o e tornando-o próximo às pessoas que ele curava e das quais expulsava demônios. Ele não ficava com as ovelhas do rebanho, mas se sentia "enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15:24). Tinha compaixão das multidões "porque eram como ovelhas sem pastor" (Mc 06:34). Ele sempre manteve viva essa sua capacidade de proximidade e compaixão, que muitas vezes manifestava também em seu interesse por quem estava diante dele.

À imagem de Jesus, o pregador deveria sempre procurar nos textos a boa notícia, o Evangelho a ser transmitido para os ouvintes. Não deveria pregar, ouvindo suas próprias emoções, suas próprias necessidades urgentes, mas "dizer" a boa notícia. Se uma homilia não tiver isso, os destinatários sentem tédio, desconforto, param de ouvir. Estava certo, o escritor católico François Mauriac, quando relatava: "Não há nenhum lugar onde os rostos das pessoas são tão inexpressivos como na igreja durante os sermões!" Em uma homilia as palavras não deveriam parecer "uma mistura confusa e insignificante, como um alimento não comestível, ou, no mínimo, bem pouco nutritivo" (Monsenhor Mariano Crociata).

Deve ser dito claramente: se não houver uma boa notícia, não há Evangelho, mesmo que se predique sobre o Evangelho!

Muitas vezes, hoje, nas homilias, embora partam do texto evangélico, prevalece uma dimensão moralista, talvez alimentada por leituras antropológicas ou psicológicas, mas em última análise orientadas para a culpa, sempre direcionada a acusar os ouvintes, a assembleia. Às vezes parece que a homilia seja uma oportunidade para manifestar as próprias obsessões (sobre a sexualidade ou outros temas antropológicos), transformadas em acusações descarregadas sobre os destinatários. Aqueles que falam dessa maneira parecem quase cegos e incapazes de discernir que tais palavras de julgamento e condenação deveriam, primeiro, ser direcionadas para si mesmos! É possível falar também de Jesus Cristo, mas se o discurso for reduzido a uma leitura fenomenológica do seu trabalho e de sua fala, não há mais lugar para a boa notícia. Melhor, então, uma homilia simples, que possa parecer pouco culta ou coloquial, que um sermão só direcionado a seduzir e não pedir conversão.

Não é fácil anunciar Jesus Cristo como boa notícia. Para os intelectuais a tentação é aquela de fazer homilias desprovidas do Evangelho, utilizando a própria bagagem de conhecimentos literários ou artísticos.

Mas se o pregador estiver no meio de seu povo é mais fácil que a palavra de Deus seja buscada entre suas palavras. Francisco, durante a homilia da Missa Crismal, cunhou a expressão "proximidade de cozinha" para pedir aos anunciadores do Evangelho estar sempre onde se "cozinham as coisas importantes e decisivas", ou seja, onde é discernido o alimento bom da Palavra e se conhece, graças à proximidade com as pessoas, o que lhe falta e do que precisam. Para fazer tudo isso é necessário acreditar que "o Evangelho é o poder de Deus" (Rm 1:16), o que por si só está sempre em obra, mesmo de maneira imprevisível ou oculta; é preciso fazer sentir a presença de Jesus na realidade das relações muito humanas, e mas uma graça que dá mais espaço para o Evangelho. Basta só não se envergonhar do Evangelho de Deus, e de Jesus Cristo, permanecendo no meio, perto dos homens.

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