23 Janeiro 2025
"O que Jesus ofereceu foi sua própria 'existência', que era, em todos os momentos, uma existência para os outros. Por isso, pode-se afirmar, com todo direito, que Jesus deslocou o centro da religião", escreve Carol Camargo, doutoranda em Teologia pela PUC-SP.
No último dia 20 de janeiro de 2025, Donald Trump tomou posse como o 47º presidente dos Estados Unidos. Como parte do rito de posse presidencial, participou de uma cerimônia religiosa, isto é, de uma missa na Igreja Saint John, conhecida como a “Igreja dos Presidentes”. Junto dele havia inúmeros empresários e apoiadores como “O CEO da Meta, Mark Zuckerberg, o fundador da Amazon, Jeff Bezos, e o CEO da Apple, Tim Cook [...] [e] Gianni Infantino, presidente da Fifa, a federação internacional de futebol” (CNN, 2025). A participação de uma cerimônia religiosa no dia da posse presidencial nos Estados Unidos tornou-se uma tradição desde 1933, com Franklin Roosevelt, perdurando até os dias atuais (G1, 2025).
Esses recentes acontecimentos servem como paradigmas para compreender a crítica de José Maria Castillo ao cristianismo que ao tornar-se religião historicamente terminou marginalizando o Evangelho. Castillo desenvolve essa crítica a partir do conceito “laicidade do Evangelho” presente já na obra “Espiritualidade para insatisfeitos” de 2007. De forma simplificada, por laicidade, Castillo fala de voltarmos às fontes da fé cristã e sermos coerentes com aquilo que foi a vida de Jesus, um leigo (CASTILLO, 2007, p. 139), pobre, marginal, e que jamais fez aliança com os poderosos de seu tempo, pelo contrário, ao incomodá-los, foi morto por eles injustamente.
Além disso, Jesus não ordenou sacerdotes, nem mandou construir um templo ou uma capela, nem impôs rituais, nem estabeleceu uma liturgia (CASTILLO, 2023, p. 155), mas passou pela vida “fazendo o bem” e no final dela não ofereceu nenhum sacrifício como os prescritos,
O que Jesus ofereceu foi sua própria "existência", que era, em todos os momentos, uma existência para os outros. Por isso, pode-se afirmar, com todo direito, que Jesus deslocou o centro da religião. Esse centro deixou de ser o ritual sagrado, com seus cerimoniais, seu templo, seu altar e seus sacerdotes e passou a ser o comportamento ético de uma vida que, desde sua própria humanidade, contagia humanidade, e desde sua própria felicidade, contagia felicidade (CASTILLO, 2014, l. 1825)
Nesse sentido, é necessário perguntarmo-nos, o que fizemos com a vida de Jesus ao tornarmo-lo um rito, a missa e hoje parte da cerimônia de posse de um presidente ou de tantas outras agendas de eventos. Seria este ainda realmente uma atualização no tempo e na história de quem foi aquele Jesus e de como sua vida incide sobre a nossa? Pouco provável, pois a fé em última instância é a conformação da vida àquilo que se crê.
Ademais, com quem aquelas pessoas – como Zuckerberg, dono da maior empresa de redes sociais, que lucra com a coleta de dados de milhares de usuários; o fundador da Amazon, e o próprio Trump – que participaram da assembleia celebrante, comungaram? Será que foi com o “corpo e sangue” (vida) de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele que exaltou os humildes e derrubou os poderosos de seus assentos? Que esteve do lado dos pobres, promovendo a justiça e denunciando toda corrupção engendrada pelo Deus mamom?
Impossível, sobretudo quando sabemos que, horas depois, Trump declarou (na verdade, nunca escondeu) sua convicção e anunciou medidas para deportar milhares de imigrantes ilegais que vivem hoje nos EUA, pessoas a quem Trump chamou de “criminosos perigosos” (CNN, 2025). Ao mesmo tempo que concedeu perdão a alguns que foram presos pela invasão ao Capitolio e atentado à democracia, em 2021, julgados e condenados pela mesma legislação americana a quem ele promete fidelidade.
Não seriam esses, a quem Trump chama de “criminosos”, aqueles a quem justamente Jesus se referiu em Mt 25, identificando-se com eles, como quem tem fome, sede, está nu, doente e preso injustamente, tornando isso critério impreterível para distinguir quem nele crê e faz a sua vontade? Outrossim, não seria a “casa comum” lugar de cuidado e não de exploração em vista do dinheiro e da ganância como propôs Trump ao declarar que irá investir na exploração de petróleo e de gás até que os EUA se tornem uma fonte de energia mundial?
Essas e outras realidades nos fazem indagar com Castillo se ainda há Evangelho em nossos ritos, incomodando como voz no deserto de nossas consciências, ou se eles se tornaram puramente externos, beirando a teatralidade. Ações práticas que amenizam as consciências nos fazendo acreditar que somos fiéis a Deus, mas não geram mudança de vida, nem comprometimento com a vida (CASTILLO, 2023, p. 15).
Assim, talvez tenha chegado a hora de enfrentarmos com seriedade a crise de fé que assola muitos em nosso tempo (CASTILLO, 2020), nos perguntando se a mesma não resulta da falta de coerência entre o que pregamos e vivemos. Mantendo-nos fiéis aos ritos, e costumes históricos, deixando, contudo, de viver o Evangelho, a laicidade do amor concreto que nos testemunhou Jesus de Nazaré.
CASTILLO, J. M. La fe en tiempos de crisis. Editorial Claret, 2020.
CASTILLO, J. M. Espiritualidad para insatisfechos. Madrid: Trotta, 2007.
CASTILLO, José M. La laicidad del Evangelio. Bilbau: Desclée De Brouwer, 2014, E-book Kindle.
CASTILLO, José M. Declive de la religión y futuro del evangelio. Desclée De Brouwer, 2023.
CNN Brasil. Trump vai a igreja para cerimônia religiosa antes da posse presidencial https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/trump-vai-a-igreja-para-servico-religioso-antes-da-posse-presidencial/. Acesso em 21 de janeiro de 2025.
CNN Brasil. Leia o discurso de posse de Donald Trump na íntegra https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/leia-o-discurso-de-posse-de-donald-trump-na-integra/. Acesso em 22 de janeiro de 2025.
G1. VÍDEO: Trump e JD Vance chegam a igreja para cerimônia religiosa de posse. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/01/20/trump-e-jd-vance-chegam-a-igreja-para-cerimonia-religiosa-de-posse.ghtml. Acesso em 21 de janeiro de 2025.