"Encontrar Deus no humano. Encontrar Deus na história de uma ser humano, na sua práxis. Esta primícia foi devidamente levada à sério por Castillo".
O artigo é de Roberto Nentwig, presbítero da Arquidiocese de Curitiba, Doutor em teologia pela PUC-RIO. Atua como formador e professor de teologia.
José Maria Castillo fez a sua páscoa e deixou-nos o seu legado. Pessoalmente, toca-me a sua partida, pois foi um dos teólogos basilares de minha pesquisa doutoral.
Em virtude de minhas pesquisas, em 2017 tive a graça de ir à Granada para encontrar Castillo. Na região de Andaluzia, defrontei-me com uma cidade extremamente significativa do ponto vista histórico. De fato, viagens são mais profundas do que os livros. Depois de um rápido voo que partia de Madrid, estava eu diante de um dos berços da modernidade, contemplando o complexo palaciano da fortaleza de Alambra e toda a tradição árabe deixada pelos mouros.
É significativo que Castillo tenha a sua origem e final de vida terrena nesta região. Um dos símbolos dos novos tempos abrigou um teólogo lúcido que olhou para frente e combateu as empoeiradas ideias pré-modernas que ainda permeiam, não raramente, o ideário dos cristãos do século XXI.
Fui convidado por Castillo para ir até o seu apartamento. Recebeu-me com extrema cordialidade. Fez questão de mostrar-me que vivia uma vida simples, uma verdadeira reclusão para estudos e produção teológica. Contou-me que em 2007 havia deixado a Companhia de Jesus, pois desejava mais tranquilidade e liberdade para manifestar suas opiniões nas suas conferências e escritos. Nos últimos anos, Castillo produziu textos mais amadurecidos, sem deixar de lado o seu legado anterior. O pontificado de Francisco foi um espaço privilegiado para a produção de Castillo, fazendo-o ainda mais pertinente. Lembro-me que o nosso teólogo granadino falou do papa com entusiasmo: “Ele me telefonou. Incentivou-me a continuar produzindo. Afirmou inclusive que leu meus textos e que estes lhe ajudaram muito”. Tive o privilégio de partilhar horas de conversa teológica com Castillo, regada por um chá muito saboroso, servido pela senhora que cuidou dele nestes últimos tempos.
O tema castilliano que mais me interessa é uma dos pilares de seu pensamento: a humanização de Deus. O autor granadino levanta um questionamento muito pertinente: quando falamos da união entre Deus e o ser humano, estamos tratando da humanização do divino ou da divinização do humano? A tarefa do cristianismo é a nossa divinização ou a nossa humanização? Segundo ele, somos propensos a dividir as duas realidades. Neste caminho de divisão, os crentes são inclinados a perceber em Jesus mais a sua divindade do que a sua humanidade, surgindo assim um monofisismo larvado. Se levarmos a sério o mistério da encarnação, será necessário encontrar Deus no humano e, deste modo, trabalhar pela humanização do humano, sem que isso seja contrário à espiritualidade cristã.
Castillo critica a teologia especulativa de afirmações doutrinárias, primando pelo caminho histórico que recorre, antes de tudo, aos evangelhos. O saber sobre Cristo não se transmite por meio de conceitos, mas pelos discursos narrativo-práticos. O mais importante, portanto, é o acontecer de Jesus, e não o ser das definições doutrinárias.
Encontrar Deus no humano. Encontrar Deus na história de uma ser humano, na sua práxis. Esta primícia foi devidamente levada à sério por Castillo. Por isso, afirma que Deus se revela na fraqueza e que cada pessoa encontra Deus na medida em que é solidário com a fraqueza. O caminho para encontrar Deus é fundir-se com a dor, o sofrimento e a pobreza. A humanização kenótica de Deus nos convida a um novo acesso ao divino - o acesso a Deus está no humano.
A radicalidade do pressuposto da humanização de Deus deve provocar um cristianismo sem espiritualizações alienantes. Para Castillo, a fé não pode ser confundida com uma anestesia mística, mas com o comprometimento com a causa de Jesus. Transcrevo textualmente, o que ele mesmo afirmou em nossa conversa: “Crer em Jesus é fidelizar-se. Para mim, a fé não é tanto uma segurança mental, é um problema. Eu creio em você se me fidelizo a você, se me fidelizo ao seu projeto de vida, se meu projeto de vida deseja ou busca ser como você. Então, é quando eu posso dizer que eu creio em você. Os enfermos que eram curados por Jesus acreditavam nele porque se fidelizavam a Jesus. Por exemplo, o episódio do cego que Jesus cura em Jericó, antes de entrar em Jerusalém: ‘Você crê?’ ‘Sim, creio que podes me curar’. Jesus o curou e ele o seguiu. Fé é seguimento”.
Quando partilhou comigo sua trajetória de perseguições no âmbito acadêmico, Castillo me disse com lágrimas nos olhos: “Eu nunca neguei nenhum dogma da igreja da Católica. Mas, nunca tive medo de fazer críticas à Igreja. E isso fiz porque amo a Igreja. Se amamos a Igreja, precisamos tentar fazê-la melhor”. De fato, meu amigo escolheu o caminho árduo da profecia. Ele próprio menciona que tinha gosto de resgatar a memória perigosa de Jesus. O termo é de Johann Baptist Metz (ele disse que gostava muito deste teólogo!) e se refere à pedagogia subversiva dos textos. Segundo Castillo, a teologia jamais deveria nos tranquilizar, mas nos despertar criticamente, movendo-nos à ação. Para ele, este é o caminho para que as nossas pregações e catequeses não sejam vazias ou conformistas diante das injustiças. Portanto, se alguém deseja ler Castillo, tenha consciência de que encontrará um pensador muito lúcido e claro. Mas, ao mesmo tempo, muito crítico da própria religião e de posturas de fechamento e de anti-evangelismo da Igreja na atualidade.
Confesso que também me emocionei ao escutar o depoimento tocante de Castillo sobre as críticas e perseguições que recebera. Suas palavras tão sinceras me despertaram mais do que admiração. Provocaram-me a ser autêntico e corajoso em minha missão. Este espanhol tão simples e tão profético me ensinou a entender que o cristianismo não é uma aula de moralismos e exclusões. Ensinou-me que Deus não está primordialmente nos templos e nas casas religiosas, mas no mundo, na vida cotidiana das pessoas. Ensinou-me, sobretudo, que Deus quer a nossa felicidade e que é esta a principal razão da religião. Ensinou-me algo paradoxal: o cristianismo precisa ser liberto dele mesmo para ser fiel a Jesus.
Só assim a cruz que carregamos terá o seu sentido mais verdadeiro – “o sofrimento que luta contra o próprio sofrimento”. Termino com as palavras de Castillo em seu livro A ética de Cristo, pág. 68: “E não nos explicaram que o verdadeiramente difícil é amar buscando sempre a felicidade da outra pessoa, seu êxito, seu prazer, sua alegria, sua liberdade, sem pretender jamais dominá-la, nem fazê-la à nossa imagem e semelhança, sem desejar que lhe agrade o que agrada a mim, sem querer de modo algum o meu triunfo mais do que o do amigo ou da amiga, do amado ou da amada, sem censurá-la em nada, sem jamais pedir nada em troca. Amar assim, com tal transparência de sentimentos e de intenções, isso é pureza, isso é a coisa difícil da vida”.
CASTILLO, J. M. A ética de Cristo. São Paulo: Loyola, 2010.