Lula 3: 'É como uma final em que você joga contra um time mais forte lutando para vencer por 1-0'. Entrevista especial Moysés Pinto Neto

Não basta o governo Lula apresentar resultados de crescimento se não for capaz de entregar ideias e mobilizar a base social. O doutor em filosofia diz que o presidente vem tentando manter a fórmula dos governos anteriores, “talvez esse seja justamente o erro. Não há mais equilíbrio possível”

Foto: Antônio Cruz | Agência Brasil

Por: Elstor Hanzen | 15 Janeiro 2025

atual governo federal obteve resultados exitosos nos primeiros dois anos, principalmente nas áreas econômica e social, avalia o pesquisador e professor Moysés Pinto Neto. Queda de desemprego, redução de pobreza, aumento da escolarização, redução da informalidade, balança comercial favorável e inclusive números fiscais dentro ou muito próximos da meta estão entre as realizações. Além disso, o governo avançou com o Bolsa Família, implementou o “Pé de meia” e reforça a noção de que o Brasil tem um mercado interno com mais potencial. “Essa transferência direta de renda sustenta Lula de modo muito sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na memória do povo, é validada pela experiência”.

Contudo, em meio às transformações na última década, com forte politização da direita, toda essa concretude não é suficiente. Claro, necessita garantir e intensificar o programa de governo, mas também precisa produzir ideias capazes de mobilizar e criar subjetividade.

Essa rearticulação teria que vir de duas frentes. De um lado, partidos de esquerda e movimentos sociais teriam que se entender para promover uma reviravolta de ocupação das ruas, tornando a esquerda mais visível e combativa. “Não existe equilíbrio na balança se você não coloca peso do seu lado. Hoje, nosso lado está muito burocratizado ou preocupado com redes sociais. Houve alguns momentos positivos, como a campanha “Criança Não é Mãe”, mas foi praticamente um episódio isolado”.

Outra prioridade deveria ser a rearticulação política. Para o professor, o governo não vai entregar nada de muito interessante, porque o ambiente é altamente defensivo. “É como uma final em que você joga contra um time mais forte lutando para vencer por 1 a 0. Há uma confluência brutal de forças de extrema-direita, e de uma direita que insiste em minimizar a existência desta, na sociedade brasileira”. Se o governo e a esquerda não forem eficientes neste sentido, as próximas eleições podem até ser salvas pelo carisma do Lula, mas, em seguida, talvez “vivamos um ciclo infernal em que a esquerda será a terceira força nacional – depois da extrema-direita e do Picaretão (Centrão)”, avalia.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHUMoysés Pinto Neto analisa as expectativas, as realizações e a percepção de Lula 3. “Haveremos de encontrar outros modos de conviver fora do Estado, ou seremos engolidos, provavelmente, pelas máfias brasileiras que são o espelho interno das mundiais, e nem planeta mais haverá para a gente e nossos filhos”, alerta.

Moysés Pinto Neto (Foto: Arquivo pessoal)

Moysés da Fontoura Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com período-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy, no Reino Unido. É editor do canal Transe e fundador da plataforma educacional Alternativa Hub e professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Confira a entrevista.

IHU – No início do governo Lula 3, havia o entendimento que os desafios mais urgentes eram econômicos e sociais. Essa expectativa foi cumprida nos primeiros dois anos?

Moysés Pinto Neto – Há uma clara prioridade dessas agendas no governo Lula. No entanto, ainda não há um consenso sobre exatamente em que elas deveriam consistir. Sem dúvida, o fato de boa parte da esquerda, inclusive o PT e setores do governo, ter ideias mais próximas do desenvolvimentismo, faz com que a economia sempre esteja sob tensão em torno do que efetivamente se deseja.

Por que, no fim das contas, os objetivos estão sendo cumpridos em relação a qual modelo? Hoje, o poder parece estar mais próximo do lado de Haddad, que poderíamos nominar como social-liberal, algo menos rompedor do neoliberalismo, mais alinhado ao discurso ortodoxo. Haddad, no entanto, tem ideias para além do establishment: nas suas ações, ele promoveu a reforma tributária – longe da ideal, sem dúvida, mas ainda assim importante – e tem colocado na pauta tributação dos ricos e, junto ou em função da pressão do Lula, os conflitos distributivos no Orçamento. É pouco, mas é muito, ainda mais na posição em que ele está.

Sob o prisma social, o governo faz o que prometeu – e é isso que o mantém de pé. Avançou com o Bolsa Família, reativou programas anteriores abandonados, acolheu a ideia do “Pé de meia” e reforça a noção de que o Brasil tem um mercado interno com mais potencial que os ideólogos de mercado propõem, arrochando a renda dos pobres e inibindo o crescimento econômico. Essa transferência direta de renda sustenta Lula de modo muito sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na memória do povo, é validada pela experiência.

IHU – Sobre a meta de reconstrução do país, ela foi satisfatória até aqui?

Moysés Pinto Neto – Sem dúvida, não. Mas também sem dúvida não apenas por erros do governo. Há muito a ser feito e a conjuntura parece cada vez pior. A organização política, desde 2013, não foi reconstruída, os partidos de esquerda parecem incapazes de promover atos substantivos e as ruas oscilam entre a desocupação e a ocupação pelos fascistas. Se o governo está em ampla minoria em termos da política institucional, no Congresso, e em relação aos canais mais fortes de pressão – como mídia, agro, Forças Armadas, Faria Lima – como não poderia ser diferente para um governo de esquerda (embora não seja um governo de esquerda), somente uma forte pressão vinda diretamente da sociedade civil poderia produzir mais legitimidade política, como mostrou o próprio Bolsonaro, quando sua popularidade despencava na pandemia, sempre reaquecendo seu movimento, e mantendo-se com isso vivo. O governo Lula confia demais na institucionalidade e convida as lideranças sociais para integrá-la, enfraquecendo um campo autônomo que poderia servir como válvula de pressão social. O resultado disso nós já vimos.

IHU – Que espaço sociopolítico a direita e a extrema-direita têm conquistado durante a gestão Lula III?

Moysés Pinto Neto – Em termos sociais, a extrema-direita parece ter batido no teto. Mas o preocupante é que vem se segurando por ali. O principal mecanismo de produção de subjetividade de extrema-direita são as plataformas digitais. A lógica do algoritmo hoje é uma ferramenta que, sozinha, controla mais que qualquer outra formação social. Os brasileiros são um povo extremamente conectado e, hoje, estão com a vida completamente entrelaçada nas redes.

Sabemos que estas favorecem a extrema-direita, não apenas por alianças explícitas – como Musk e Zuckerberg com Trump, agora –, mas pela sua própria estrutura, que envolve a economia da atenção, a captura de dados e a circulação de conteúdo maximizada pela audiência sem preocupação com sua consistência. Muitos filósofos e psicanalistas do século XX analisaram as massas a partir do influxo dos novos meios de comunicação. Hoje, elas migraram para as plataformas e funcionam por segmentação. A extrema-direita já capturou quem são seus segmentos e está em ação. O caso do Pablo Marçal é o exemplo mais escrachado disso.

IHU – Como as oposições ao governo têm se movimentado e de que maneira têm ampliado seu capital político?

Moysés Pinto Neto – A oposição teve um breve recuo diante do 8/1, mas depois de um ano com pé atrás pisou brutalmente no acelerador a partir da entrada de Tarcísio de Freitas na disputa. A mídia paulista, em especial a Folha, vem realizando uma cobertura tendenciosa e virulenta da política, não raro inclusive minimizando o golpismo dos bolsonaristas, inclusive no 8/1. Isso ocorre porque ela ecoa o descontentamento das elites contra o governo Lula, em especial do mercado financeiro, que gostaria que a agenda Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes não fosse interrompida.

Em meio a tantas transformações nos últimos dez anos, houve uma forte politização da direita. Hoje, não bastam apenas resultados. É preciso entregar ideias – mas não quaisquer ideias, as ideias deles. Não basta o governo Lula apresentar resultados positivos de crescimento, queda de desemprego, redução de pobreza, aumento da escolarização, queda da informalidade, balança comercial favorável e inclusive números fiscais dentro ou muito próximos da meta. É preciso que o programa não seja interrompido. Ou seja, esses operadores não estão mais dispostos a negociar, como fizeram no período 2002-2014.

De outro lado, a radicalização é ainda maior entre setores do agronegócio, por exemplo, cujo programa envolve a desregulação e a liberalização, inclusive em relação a questões ambientais. Esses segmentos funcionam por irradiação: eles construíram um ecossistema social para suas ideias que hoje controla vários estados do país, no Sul, Centro-Oeste e no Norte, sobretudo. Isso torna a movimentação da oposição muito agressiva e tensiona o governo todo tempo, tornando-o fraco.

IHU – Em quais áreas o governo está bem? Em quais precisa melhorar ou mudar?

Moysés Pinto Neto – Na parte econômica e social, o governo vai bem. Precisa de um projeto mais claro e estruturante de educação, não pautado pelo mercado e pelas ideologias modernizadoras rasas como um pires (por exemplo: há cinco anos, você tinha dez mil coaches da educação do Instituto sei-lá-o-quê dizendo que quem não se adaptasse ao metaverso estaria fora; hoje, discute-se no mundo todo eliminar as telas do ensino), e na saúde. São áreas determinantes. A primeira, talvez não renda tantos votos quanto se imagina, mas é o que a longo prazo faz diferença.

Já a saúde é determinante do ponto de vista do interesse da população, mas não conseguimos ainda encontrar um governo que consiga corresponder e engajar nesse sentido. Para piorar, a saúde é o principal desejo do Picaretão (Centrão), que usa o ministério para manobrar o clientelismo e com isso se perpetuar eleitoralmente. E que, aliás, curiosamente consegue bastante espaço na mídia para realizar essa pressão.

O governo precisa melhorar também em algumas promessas fundamentais, como a demarcação de terras indígenas e a transição ambiental, que andam muito devagar para o tamanho da urgência do problema.

IHU – Como avalia a gestão do governo Lula de agora em relação ao seus outros dois mandatos?

Moysés Pinto Neto – Não há como comparar, porque são cenários completamente distintos. Governar no século XXI tornou-se uma atividade muito difícil. Lula vem tentando manter a fórmula dos governos anteriores e, talvez, esse seja justamente o erro. Não há mais equilíbrio possível. Mas tampouco tenho a resposta de como será possível sair desse imbróglio.

IHU – Quais as prioridades e os desafios para a segunda parte do governo Lula 3?

Moysés Pinto Neto – A prioridade deveria ser a rearticulação política. A divisão do governo em frações incongruentes já se mostrou improdutiva. O governo não vai entregar nada de muito interessante, porque o ambiente é altamente defensivo. É como uma final em que você joga contra um time mais forte lutando para vencer por 1-0. Há uma confluência brutal de forças de extrema-direita, e de uma direita que insiste em minimizar a existência desta, na sociedade brasileiros. O combo Boi-Bala-Bíblia hoje controla o país. Assim, só uma rearticulação política possibilitaria caminhar um pouco além – ou, muito provavelmente, o que vai ocorrer é que talvez sejamos salvos pela memória e pelo carisma de Lula nas próximas eleições, mas em seguida vivamos um ciclo infernal em que a esquerda será a terceira força nacional – depois da extrema-direita e do Picaretão (Centrão).

Para mim, essa rearticulação teria que vir de duas frentes. De um lado, partidos de esquerda e movimentos sociais teriam que se entender para promover uma reviravolta de ocupação das ruas, tornando a esquerda mais visível e combativa. Não existe equilíbrio na balança se você não coloca peso do seu lado. Hoje, nosso lado está muito burocratizado ou preocupado com redes sociais. Houve alguns momentos positivos, como a campanha “Criança Não é Mãe”, mas foi praticamente um episódio isolado.

Claro, vivemos também intoxicados pela lógica do algoritmo, trabalhando como nunca, exaustos e competitivos. Sair às ruas hoje não é a mesma coisa que 2013. Mesmo assim, não vejo outro caminho. E pior: os bolsonaristas, mesmo em menor número, ainda saem. Nós temos muito mais razões para sair.

A questão é: como engajar as pessoas para que haja protestos contra o Orçamento Secreto, por exemplo? Se nem o Fim do Mundo as comove mais, como ocorreu com Porto Alegre que viveu, em meia década, enchente e pandemia, e segue tudo igual, já não sei se não vale a frase do Kafka: Há esperança, mas não para nós.

Mas voltemos à objetividade aqui: a outra frente teria que vir do governo, no sentido de tornar mais dura a negociação. Lula tem no seu ministério hoje partidos que votam constantemente contra o governo. Ele precisa retomar o poder da caneta. Deixar até, se for o caso, o Legislativo judicializar. Mas numa negociação você precisa usar seus poderes, não apenas ficar lá na “atitude de diálogo” e ser tratorado (metáfora hoje cada vez mais literal) pelos adversários. Precisa cair o Padilha e entrar um negociador mais duro, alguém que seja capaz de efetivamente barganhar com o poder que dispõe o Executivo – que, sem dúvida, já foi maior, mas ainda é grande.

IHU – Tem outro ponto relevante a considerar sobre as políticas do atual governo federal?

Moysés Pinto Neto – Depois de ler o que escrevi, penso: que triste isso tudo, não? Porque o governo Lula subiu à rampa com chaves cosmopolíticas: um cacique, uma mulher, um animal, um trabalhador nordestino imigrante, uma pessoa com deficiência, um menino negro. Algum esquerdista da velha guarda dirá: “veja só, o identitarismo!”, mas não é nada disso. Vivemos o colapso do nosso modo de produção no planeta Terra, e não é só o capitalismo que está em jogo, é o próprio postulado moderno de que a Terra é uma fonte de recursos que serve para abastecer o almoxarifado da empresa humana. Quais são as lógicas que se contrapõem a isso? Quando Lula se aproxima dos povos originários, com o cacique Raoni e a ministra Sonia Guajajara, quando chama Anielle Franco, Marina Silva e Silvio Almeida para os ministérios, a gente tem um flerte com outros futuros – outras paisagens que não seja o fazendão greco-goiano e seus habitantes cafonas, parvos, perversos. Há outros modos de relação com o cosmos que não passam pela “excepcionalidade humana” e sua obsessão pelo crescimento, pela acumulação de bens, pela transformação do mato em asfalto. Ok, sabíamos que era um governo de coalizão e que a margem de manobra é pequena. Lideranças que víamos como conservadoras há dez anos – como Gleisi e Tebet, ambas ligadas ao agronegócio – são hoje comemoradas. Enfim, que triste, não? Haveremos de encontrar outros modos de conviver fora do Estado, ou seremos engolidos, provavelmente, pelas máfias brasileiras que são o espelho interno das mundiais, e nem planeta mais haverá para a gente e nossos filhos.

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