11 Janeiro 2025
Nesta série propomos uma investigação sobre os agentes transnacionais que se articulam a partir das questões de gênero e seus modos de funcionamento.
O artigo é de Núria Alabao, jornalista, pesquisadora e doutora em Antropologia Social e Cultural, publicado por Ctxt, 23-12-2024.
As guerras de gênero tornaram-se globalizadas e são impulsionadas por um poderoso movimento social, político e religioso transnacional. Por “guerras de gênero” referimo-nos aqui a conflitos políticos e culturais que se centram em questões de gênero e sexualidade – questões como os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos de dissidência sexual, a educação sexual ou a violência de gênero, entre outros. É claro que estas batalhas não são meras cortinas de fumo, mas são inerentes à luta pelo poder e aos interesses dos projetos políticos que as impulsionam, que, em última análise, são funcionais para uma relegitimação das hierarquias de classe, gênero e raça.
Uma nova onda de ativismo ultraconservador global estabeleceu o “gênero” como uma frente de batalha definitiva. O movimento “antigênero” é suficientemente flexível para incorporar uma variedade de objetivos, mas suficientemente coerente para ser um movimento e não apenas uma série de campanhas não relacionadas. Embora em muitos lugares possa vestir-se com a roupagem da oposição ao neoliberalismo e noutros, abraçá-lo plenamente.
Os agentes internacionais que impulsionam estas guerras de gênero são muito diversos. Por um lado, as instituições religiosas têm um papel proeminente. A direita cristã internacional é na verdade a mais produtiva no que diz respeito à mobilização de recursos, às suas redes organizacionais, à construção da identidade e à produção cultural do movimento. Neste sentido, os atores religiosos funcionam plenamente como qualquer outra organização política. Aqui podemos incluir igrejas e clérigos, comunidades seculares de ativistas, bem como centros de investigação, universidades e ONG transnacionais que afirmam ser baseadas na fé.
O universalismo defendido pela identificação coletiva cristã provou ser um recurso útil para a transnacionalização. A Igreja Católica, por exemplo, tem grande influência em várias áreas do globo graças à sua estrutura centralizada, embora também tenha organizações próprias que vão além do nível nacional – e que são religiosas e seculares: Opus Dei, Kikos, Legionários de Cristo, organizações antiaborto, redes universitárias próprias, etc. As igrejas ortodoxas da Europa de Leste, por seu lado, baseiam a sua influência política e social basicamente na sua estreita relação com os Estados – onde governam ultragrupos –, algo muito evidente no patriarcado de Moscou.
Nas últimas décadas, também testemunhamos o crescimento do poder do evangelicalismo, especialmente do evangelicalismo americano, com fortes laços políticos com a direita republicana e importantes recursos econômicos, como ocorreu recentemente nas eleições dos EUA com o seu apoio a Trump. Na verdade, este candidato mostrou-se repetidamente um mestre em passar a bola quando questionado sobre a sua posição sobre o aborto, temendo que isso pudesse tirar votos num país que, apesar de tudo, é esmagadoramente favorável a este direito – especialmente no caso das mulheres. Porém, ele teve que parar de brincar e assumir seus compromissos com seus financiadores evangélicos, que também movimentam muitos votos, por isso acabou esclarecendo que se opõe às leis mais permissivas sobre o aborto, com argumentos como o de que em alguns estados democratas até "o bebê pode ser executado após o nascimento”.
A direita cristã americana também tem uma poderosa capacidade de ação na Europa, como observamos num artigo anterior. Estas organizações americanas bem financiadas – como a ADF International ou ACLJ – realizam campanhas jurídicas e de lobbying na UE com o objetivo de influenciar a legislação sobre os direitos das mulheres e a dissidência sexual.
Os evangélicos, especialmente uma parte significativa do neopentecostalismo, têm uma influência crescente na América Latina, onde intervêm ativamente na política institucional, tentam destituir e substituir presidentes ou apoiar diretamente determinados candidatos como aconteceu com Jair Bolsonaro no Brasil.
Outros intervenientes relevantes são os políticos ultraconservadores e de extrema-direita, muito diferentes entre si, mas que por vezes cooperam internacionalmente para reforçar certos blocos de poder. Muitas vezes os seus interesses não convergem, as suas diferenças são aguçadas pelo nacionalismo que defendem, mas conseguem agrupar-se mais facilmente quando falam de questões de gênero, o que parece ser a cola definitiva. As questões de gênero são, de fato, o principal espaço de coordenação discursiva e material desta pluralidade de agentes. Nos textos que produzem ou em declarações de políticos e membros de diferentes igrejas, percebe-se uma semelhança radical em termos de linguagem, símbolos e narrativas. Há autores que utilizam o conceito de “coligação discursiva” para analisar estas formas de articulação política, onde atores com pontos de vista ideológicos, filosóficos e religiosos díspares podem comunicar e produzir intervenções significativas caso partilhem determinadas narrativas. Essa é a principal função de conceitos como “ideologia de gênero”, “defesa da família natural” ou “valores tradicionais”.
Temos que lembrar que são nacionalistas que nem sempre estão do mesmo lado nas frentes internacionais em disputa. Por exemplo, no Parlamento Europeu existem dois grupos diferentes que reúnem a extrema direita e que por vezes se confrontam. Outro caso: o conflito bélico na Ucrânia. Após a invasão russa, os Estados Unidos e a Europa encontraram-se na linha da frente da oposição à Rússia quando, até essa guerra, existia uma forte aliança de interesses entre evangélicos americanos e empresários russos ortodoxos. Algo semelhante acontece com a religião: a internacional reacionária produziu alianças inesperadas entre religiões, não só dentro do próprio cristianismo – católico, ortodoxo ou neopentecostal – mas até estabelecendo acordos contingentes com o Islã, contornando na ponta dos pés a contradição que muitos dos europeus de extrema-direita os partidos têm propostas claramente islamofóbicas.
As guerras de gênero não são um fenômeno novo. Embora existam precedentes anteriores, foi a partir da década de 1970 nos Estados Unidos que começaram a ser utilizados de forma semelhante à atual com a ascensão do que se chamou de Nova Direita, que apoiava Ronald Reagan. Contudo, a sua dimensão transnacional só descolou em meados da década de 1990.
A viragem do milênio assistiu ao crescimento progressivo da articulação de uma vasta rede internacional de atores que se originou como forma de reação contra o movimento pelos direitos das mulheres. Isto aconteceu a partir da década de 1990, quando organizações internacionais, como a ONU, assumiram a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. A partir de então, houve um impulso progressivo por parte de organizações antidireitos nestas sedes internacionais de direitos humanos que priorizaram serem credenciadas como fontes consultivas oficiais para aumentar as suas possibilidades de intervenção.
Embora cada movimento nacional tenha sido desencadeado por debates específicos de cada contexto, as primeiras guerras de gênero com ressonância internacional giraram em torno do casamento gay e da igualdade de direitos para os dissidentes sexuais na Europa – entre 2010 e 2015. O precedente foram as marchas religiosas e políticas contra o casamento gay em Espanha em 2005, seguidas pelo sucesso do Manif pour Tous em França em 2012. A partir daí, movimentos “cidadãos” semelhantes ocorreram em países como Alemanha, Itália, Polônia, Rússia e Eslováquia. A partir de 2010, o movimento antigênero também se desenvolveu na América Latina – a Argentina começou em 2010, o Brasil em 2013 e outros países latino-americanos a partir de 2016, como Colômbia, México, Chile ou Bolívia. Além disso, estes atores têm promovido os mesmos discursos em África e na Ásia, baseados no conceito imprevisível de “ideologia de gênero”.
Nessa mesma década de 2010, a dimensão transnacional acelerou juntamente com a intensidade das guerras de gênero quando opções de extrema-direita, ou aquelas com posições de gênero muito reacionárias, venceram eleições ou assumiram posições institucionais relevantes. Assim, Viktor Orbán tornou-se primeiro-ministro em 2010, Donald Trump em 2017 e Bolsonaro em 2019. Putin compreendeu a sua importância política em 2013 e começou a falar sobre valores tradicionais e nesse mesmo ano aprovou a lei contra a “propaganda” homossexual.
Além da influência russa e americana, poderíamos falar de ligações europeias, por exemplo, aquela que liga grupos antidireitos em Espanha e na América Latina. A Vox tenta tornar-se uma ponte entre a extrema-direita dos dois lados do Atlântico, tal como o fazem uma miríade de associações, entre as quais se destaca a CitizenGo – a filial internacional da Hazte Oír. Portanto, as questões de gênero não podem ser separadas da promoção de certos candidatos de direita ou extrema-direita e da luta “contra o comunismo” na região – muitas destas opções políticas são centrais para apoiar projetos extrativistas ou neoliberais. Como exemplo, a Fundação Valores e Sociedade, fundada em 2011 por Jaime Mayor Oreja, ex-ministro do PP, que tenta influenciar a América Latina apoiando-se na Rede Política para Valores, responsável pela ultra cimeira que ocorreu recentemente no Senado espanhol.
Esta organização é presidida pelo candidato presidencial chileno em 2023, José Antonio Kast, um ultraconservador que fez declarações como: “A pílula que privilegia o prazer acima de tudo é a pílula do egoísmo; é a pílula que faz a sexualidade viver no medo de um ser indefeso que está prestes a nascer…” ou “A família nunca prejudicou nenhuma sociedade no mundo; não podemos dizer o mesmo sobre o divórcio”. Esta rede apresenta-se como uma versão europeia do Congresso Mundial da Família, provavelmente a principal organização global de grupos conservadores, da qual recebe financiamento.
Apesar da implantação significativa de meios de comunicação e conexões globais, não devemos perder de vista o fato de que, apesar da sua propaganda – que normalmente exagera a sua própria capacidade – estas redes internacionais não são omnipotentes. A existência de recursos materiais e suas redes servem para promover suas ideias, porém, precisam encontrar um ecossistema cultural favorável e crescer onde os movimentos sociais são mais fracos. Portanto, há uma batalha acontecendo.
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A internacional antigênero (I): soberanistas num mundo global. Artigo de Núria Alabao - Instituto Humanitas Unisinos - IHU