07 Janeiro 2025
Elon Musk compra tudo o que odeia e odeia ainda mais o que não pode comprar. Daí seu ódio à Wikipédia e sua oferta de 1 bilhão por ela. Provavelmente, odeia a própria vida, porque sabe que não pode comprá-la.
O artigo é de Jorge Majfud, escritor uruguaio e professor da Jacksonville University, em artigo publicado por Página|12, 04-01-2025.
Em 2012, o filósofo argentino Hugo Biagini publicou seu Dicionário do Pensamento Alternativo. Biagini frequentemente me convidou para colaborar em seus projetos (como América Latina Rumo à Segunda Independência, com Arturo Roig, 2007; e no Dicionário de Autobiografias Intelectuais, 2019). Nessa ocasião, minha contribuição foi apenas uma entrada sobre “A sociedade desobediente”. Nela, aproveitei para reiterar uma resposta ao cofundador da Wikipédia, Larry Sanger, quando, em 2007, ele abandonou o projeto, considerando-o um fracasso devido à falta de autoridade. Em 2020, Larry Sanger acusou a Wikipédia de ser dominada por “esquerdistas”. Algo discutível. Menos discutível é o fato de que, se alguém ama o dinheiro, dificilmente dedicará sua vida ao ensino ou à Wikipédia.
Para mim, com todos os seus defeitos, a Wikipédia era um exemplo recente e bem-sucedido de organização do conhecimento independente de uma autoridade política e econômica, uma “forma de desobediência cultural”. No Dicionário de Biagini, escrevi:
“Contrariamente ao que se poderia prever, a redação de informações por milhões de indivíduos anônimos ao redor do mundo não resultou em caos, mas sim em uma confiabilidade (segundo estudos tradicionais) tão alta quanto a da Enciclopédia Britânica. (...) Na sociedade desobediente, a educação pós-industrial progressivamente substitui a educação industrialista (uniformizadora), da mesma forma que esta substituiu a educação escolástica durante a Revolução Industrial. Na esfera política, um de seus requisitos é a democracia direta. (...) Segundo esse diagnóstico, é possível prever que os tradicionais sistemas representativos (como o parlamentarismo) perderão importância nas decisões das sociedades, assim como, em seu tempo, os reis absolutistas perderam importância em benefício dos parlamentos. É provável que essa ideia de agravamento das condições impostas por um poder imperial (neste caso, a globalização da cultura norte-americana...) seja uma reação dos poderes tradicionais contra o surgimento da sociedade desobediente. (...) No entanto, podemos considerar que o conflito não decorre da inevitável radicalização da desobediência, mas sim da reação dos poderes tradicionais” (p. 506-508).
Claro, isso ocorre apesar da contínua pressão e ingerência de máfias institucionalizadas, como a CIA (para a qual Elon Musk trabalha, sendo um agente com acesso a documentos classificados). Desde os primeiros anos da Wikipédia, foram detectadas guerras de edições oriundas de IPs da própria CIA, antes mesmo de a NRL desenvolver o Tor, um navegador anônimo que também saiu de seu controle (era inevitável torná-lo open source). Contudo, a CIA não diminuiu, mas aumentou seu uso. O mesmo ocorre com o Linux, como admitiu seu fundador, negando com palavras, mas afirmando com gestos.
O outro fundador da Wikipédia, Jimmy Wales, começou com uma filosofia libertária e capitalista, mas seu projeto confunde um anarquismo de direita (antigovernamental, como o marxismo original) com um anarquismo de esquerda (igualitário). Em 2005, ele já havia classificado o Partido Libertário como uma “horda de lunáticos”.
Elon Musk zombou da mendicância da Wikipédia para sobreviver, algo semelhante às redes públicas de rádio e televisão que ainda resistem nos Estados Unidos. A NPR e a PBS são odiadas por Musk, que deseja vê-las desaparecer. Devido ao progressivo desfinanciamento estatal, essas redes públicas foram obrigadas a recorrer a doações.
Jimmy Wales insistiu que o princípio da Wikipédia de não se financiar por meio de publicidade é preservar sua independência. Claro que, quando não são limitadas, as doações tornam-se uma arma de dois gumes. É aqui que a dosagem do remédio faz uma diferença absoluta entre a vida e a morte. Um exemplo óbvio foi a abolição do teto para doações a partidos políticos em 2010, o que recentemente permitiu que Musk comprasse seu acesso à Casa Branca com uma doação de 250 milhões de dólares à campanha de Donald Trump.
Os políticos, os meios de comunicação e a opinião pública podem ser comprados. Mas há coisas que não podem, como o amor e a dignidade. No caso da Wikipédia, ela é um espinho no calcanhar dos ultramilionários como Musk: como é possível que exista uma fonte global de informação que não esteja listada na Bolsa de Londres ou de Nova York? Se Musk pôde comprar o Twitter por 44 bilhões de dólares (sem desembolsar um centavo do próprio bolso), mudou o nome da plataforma e, em nome da liberdade de expressão, começou a manipular o algoritmo para censurar e privilegiar a visibilidade global de Trump e a sua própria, como é possível que o “Superman”, com todos os seus superpoderes, não consiga escrever sua própria biografia ou a história das ideias políticas, sociais, sexuais e raciais? Que horror!
Para piorar, a Wikipédia em inglês mantém um dado que fere seu ego, naturalmente inflamado: “No primeiro aniversário da aquisição [do Twitter], Musk declarou o valor da empresa em 19 bilhões de dólares, uma depreciação de 55% em relação ao preço de compra de 44 bilhões”.
Se desde a Idade Média os nobres doavam para igrejas e catedrais construídas por artesãos, que depois ouviam os sermões de sacerdotes sustentados por essas doações, como é possível que, no atual retorno à Idade Média, os senhores feudais ainda possam comprar a Deus, mas não uma maldita enciclopédia?
Musk ofereceu 1 bilhão de dólares pela Wikipédia e sugeriu renomeá-la como Wokepedia ou Dickipedia (Vergapedia), o que confirma que os donos do mundo nem são felizes nem têm capacidade de viver em paz consigo mesmos — muito menos com o restante da humanidade.
O comandante-em-chefe da Casa Branca, que veio do apartheid sul-africano, sabe que a Wikipédia é um dos raros exemplos de independência do grande capital, razão pela qual não suporta a ideia de que algo possa existir sem ser comprado, ou seja, controlado pelos psicopatas do apartheid global e de classe.
Assim como a fortuna de seu pai, que também sofria de profundo racismo, classismo e sexismo — hoje romantizados pela ideologia do “Macho Alfa” da Nova Direita fascista, como o líder natural de uma alcateia vagando pela neve em busca de uma presa para dilacerar. Esse é o modelo, a utopia de humanidade que limita e estreita as capacidades intelectuais de indivíduos que se creem semideuses apenas por possuírem (seu verbo favorito) a habilidade de acumular dinheiro para comprar seres humanos (sejam trabalhadores ou bajuladores), adquirindo o direito de usar o chicote contra qualquer forma de pensamento ou de existência que não se ajuste à sua medíocre realidade.
Elon Musk compra tudo o que odeia e odeia ainda mais o que não pode comprar. Daí seu ódio à Wikipédia e sua oferta de 1 bilhão por ela. Provavelmente, odeia a própria vida, porque sabe que não pode comprá-la.
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Por que Elon Musk odeia a Wikipedia? Artigo de Jorge Majfud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU