20 Dezembro 2024
A “concentração de humanidade” vivida nas “vilas miséria” de Buenos Aires e a “ferida no coração” representada pelo Iraque, visitado em 2021: há isso e muito mais nas duas antecipações da autobiografia do Papa Francisco intitulada Spera, escrita com Carlo Musso. O livro, editado pela Mondadori, será publicado em 14 de janeiro em mais de cem países do mundo. Hoje, 17 de dezembro - no dia em que o Pontífice completa 88 anos - os jornais italianos 'La Repubblica' e 'Il Corriere della Sera' antecipam alguns trechos.
A reportagem é de Isabella Piro, publicada por l'Osservatore Romano, 17-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Quando alguém me diz que sou um papa ‘vileiro’, só rezo para que eu seja digno disse apelido”, diz Francisco, repassando com sua memória aquele “microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural” representado pelo barrio Flores, o bairro de Buenos Aires onde viveu sua infância. Aqui “as diferenças eram a normalidade e a gente se respeitava”, lembra Bergoglio, recordando os grupos de amigos católicos, judeus e muçulmanos, sem distinções.
Reprodução da capa do novo livro do Papa Francisco a ser lançado em janeiro de 2025.
O Papa recorda seu encontro com algumas prostitutas, uma imagem daquele “lado mais sombrio e difícil da existência” que ele conheceu desde a infância nas periferias argentinas. Francisco as chama de “Madalenas contemporâneas”. Quando se tornou bispo, Bergoglio celebraria uma missa para algumas dessas mulheres que haviam mudado suas vidas nesse meio tempo. Uma delas, Porota, o chamaria uma última vez, do hospital, pouco antes de sua morte, para receber a Unção dos Enfermos e a Comunhão. “Mas ela se foi bem, - escreve o Papa - como ‘os publicanos e as meretrizes’ que entram adiante nós no reino de Deus” (Mt 21,31). E eu tive grande afeto por ela. Mesmo agora, no dia de sua morte, não me esqueço de rezar por ela”.
Não falta a lembrança dos detentos, que produziam escovas para roupas, bem como a história do nascimento da amizade com Don José de Paola, conhecido como “Padre Pepe”, pároco da Virgen de Caacupé, na Villa 21, e apoiado com escuta e proximidade pelo futuro Pontífice em um momento de crise vocacional. Naqueles territórios postos à margem da cidade, onde “o Estado está ausente há quarenta anos” e onde a dependência química é “um flagelo que multiplica o desespero”, ali mesmo - reitera o Pontífice - “naquelas periferias que para a Igreja devem cada vez mais ser o novo centro, um grupo de leigos e sacerdotes como Pepe vivem e testemunham o Evangelho todos os dias, entre os descartados de uma economia que mata”.
Uma realidade difícil da qual emerge claramente que a religião não é de modo algum, como dizem alguns, “o ópio do povo, uma história tranquilizadora para alienar as pessoas”, reitera novamente o Papa. Pelo contrário: é precisamente “graças à fé e a esse empenho pastoral e civil” que as vilas “progrediram de maneira impensável, apesar das enormes dificuldades”. E “assim como a fé, todo serviço é sempre um encontro, e somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres”.
Do drama das periferias urbanas ao drama do Iraque devastado pelo conflito, o olhar de Francisco não muda, mas permanece sempre cheio de atenção e cuidado pela humanidade ferida. Daquela histórica visita realizada de 5 a 8 de março de 2021 - a primeira de um Pontífice no país - Francisco recorda “a ferida no coração” representada por Mosul: “Uma das cidades mais antigas do mundo”, disse ele, “transbordante de história e tradições, que viu a alternância de diferentes civilizações ao longo do tempo e foi um emblema da convivência pacífica de diferentes culturas no mesmo país - árabes, curdos, armênios, turcomanos, cristãos, siríacos -, apresentava-se aos meus olhos como uma extensão de escombros, após três anos de ocupação pelo Estado Islâmico, que a havia escolhido como seu reduto”. E sobrevoado do alto de um helicóptero, o território aparecia como “a radiografia do ódio, um dos sentimentos mais eficientes de nosso tempo”.
Daquela viagem, Francisco se lembra do difícil contexto organizacional, devido à persistência da pandemia de covid-19 e à questão da segurança. Fui desaconselhado por quase por todos... mas - escreve ele - senti que tinha” de ir à terra de Abraão, “o ascendente comum de judeus, cristãos e muçulmanos”. Bergoglio não esconde as informações recebidas dos serviços secretos britânicos sobre dois atentados que estavam sendo preparados durante sua visita a Mosul. Um dos homens-bomba era uma mulher, carregada de explosivos, e outro estava em uma van. Ambos foram interceptados e mortos pela polícia iraquiana antes de serem bem-sucedidos. “Isso também me impressionou muito”, enfatiza Francisco. ”Esse também era o fruto envenenado da guerra”.
Em todo aquele ódio, porém, o Papa vislumbrou uma luz de esperança no encontro com o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, no dia 6 de março de três anos atrás, em Najaf: um encontro que “a Santa Sé estava preparando há décadas”, que aconteceu em uma atmosfera fraterna na casa de al-Sistani: “Um gesto que no Oriente é ainda mais eloquente do que declarações, do que documentos, porque significa amizade, pertencer à mesma família - explica -. Foi um bálsamo para minha alma e me fez sentir honrado”. Do aiatolá, o Pontífice recorda em particular “a exortação comum às grandes potências para que renunciem à linguagem das guerras, dando prioridade à razão e à sabedoria”. E depois uma frase, levada com ele “como um dom precioso: ‘Os seres humanos ou são irmãos por religião ou são iguais por criação’”.
Além do livro Spera, a vida do Papa Francisco também será contada em um filme baseado em Life. La mia storia nella Storia, uma autobiografia escrita com Fabio Marchese Ragona e publicada em março passado pela editora HarperCollins.
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“A fé não é o ópio dos povos, mas encontro e serviço” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU