18 Dezembro 2024
"Fui avisado assim que aterrissamos em Bagdá no dia anterior. A polícia havia alertado a Gendarmaria do Vaticano sobre uma informação vinda dos serviços secretos britânicos: uma mulher carregando explosivos, uma jovem kamikaze, estava a caminho de Mosul para se explodir durante a visita papal. E uma van também havia partido a toda velocidade com a mesma intenção", escreve Papa Francisco em comentário feito para sua nova autobiografia "Spera", que será lançada em janeiro de 2025, publicado por Corriere Della Sera, 17-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quase todos me desaconselharam aquela viagem, que teria sido a primeira de um pontífice na dobradiça do Oriente Médio devastada por violências extremistas e pelas profanações jihadistas: o Covid-19 ainda não havia reduzido completamente sua presença, até mesmo o núncio naquele país, D. Mitja Leskovar, havia acabado de testar positivo para o vírus e, acima de tudo, todas as fontes destacavam perfis de risco de segurança extremamente altos, tanto que ataques sangrentos haviam marcado também a véspera da partida.
Mas eu queria ir mesmo. Sentia que tinha de fazê-lo. Eu dizia, familiarmente, que sentia a necessidade de visitar o avô Abraão, o ancestral comum de judeus, cristãos e muçulmanos. Se a casa do avô queima, se seus descendentes em seu país correm risco de vida ou a perderam, a coisa certa a fazer é ir para casa o mais rápido possível. E, além disso, não se podia deixar desapontadas mais uma vez aquelas pessoas que, vinte anos antes, não tinham podido abraçar João Paulo II, cuja viagem, depois de uma abertura inicial, havia sido impedida por Saddam Hussein, uma viagem com a qual ele sonhava inaugurar o ano jubilar de 2000. [...].
Esperança, a autobiografia, de Papa Francisco (Foto: Reprodução)
Mosul foi uma ferida no coração. Ela me atingiu como um punho já no helicóptero: uma das cidades mais antigas do mundo, repleta de história e tradições, que viu a alternância de diferentes civilizações ao longo do tempo e foi um emblema da convivência pacífica de diferentes culturas no mesmo país - árabes, curdos, armênios, turcomanos, cristãos, siríacos -, apresentava-se aos meus olhos como uma extensão de escombros, após três anos de ocupação pelo Estado Islâmico, que a havia escolhido como seu reduto. Ao sobrevoá-la, ela me aparecia do alto como a radiografia do ódio, um dos sentimentos mais eficientes de nosso tempo, porque muitas vezes gera por si só os pretextos que o desencadeiam: a política, a justiça e sempre, de modo blasfemo, a religião, tornam-se motivações de fachada, hipócritas, provisórias; porque depois, justamente como nos belos versos da poetisa polonesa Wisława Szymborska, o ódio “já corre sozinho”.
E mesmo depois daquela devastação, o vento do ódio ainda não se acalmava. Fui avisado assim que aterrissamos em Bagdá no dia anterior. A polícia havia alertado a Gendarmaria do Vaticano sobre uma informação vinda dos serviços secretos britânicos: uma mulher carregando explosivos, uma jovem kamikaze, estava a caminho de Mosul para se explodir durante a visita papal. E uma van também havia partido a toda velocidade com a mesma intenção.
Houve encontros com as autoridades no palácio presidencial em Bagdá. O encontro com bispos, padres, religiosos e catequistas na catedral siro-católica Sayidat al-Nejat (Nossa Senhora da Salvação), onde onze anos antes dois padres e quarenta e seis fiéis haviam sido massacrados, cuja causa de beatificação está em andamento. Em seguida, o encontro com os líderes religiosos do país na planície de Ur, a extensão deserta onde as ruínas da casa de Abraão fazem fronteira com a torre em degraus do maravilhoso Zigurate sumério: cristãos de diferentes igrejas, muçulmanos, xiitas e sunitas, yazidis, finalmente se encontravam juntos sob a mesma tenda, no espírito de Abraão, para nos lembrar que a mais blasfema das ofensas é profanar o nome de Deus odiando o irmão. [...]
E, antes disso, estive na cidade sagrada de Najaf, o centro histórico e espiritual do Islã xiita, onde se encontra o túmulo de Ali, primo do Profeta, para uma reunião a portas fechadas muito importante para mim, porque teria representado um marco no caminho do diálogo inter-religioso e da compreensão entre os povos.
O encontro com o grande Aiatolá Ali al-Sistani vinha sendo preparado há décadas pela Santa Sé, sem que nenhum dos meus antecessores tivesse conseguido realizá-lo. Ele me recebeu fraternalmente em sua casa, o aiatolá Ali al-Sistani, um gesto que no Oriente é ainda mais eloquente do que declarações, do que documentos, porque significa amizade, pertencer à mesma família. Foi um bálsamo para minha alma e me fez sentir honrado: ele nunca havia recebido chefes de Estado e nunca havia se levantado, mas naquele dia, significativamente, comigo, ele o fez várias vezes, enquanto, com o mesmo sentimento de respeito, eu me apresentei sem sapatos em sua sala. [...]
Percebi sua inquietação com a mistura de religião e política, uma certa idiossincrasia, que sinto ser compartilhada entre nós, pelos “clérigos de Estado” e, ao mesmo tempo, a exortação comum às grandes potências para que renunciem à linguagem das guerras, dando prioridade à razão e à sabedoria. Lembro-me de uma frase dele em particular, que carreguei comigo como um dom precioso: “Os seres humanos são irmãos por religião ou iguais por criação.” [...]
Quando, no dia seguinte, perguntei à Gendarmaria o que se sabia sobre os dois homens-bomba, o comandante respondeu laconicamente: “Não existem mais”. A polícia iraquiana os havia interceptado e detonado.
Isso também me impressionou bastante. Esse também era o fruto envenenado da guerra.
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“No Iraque, escapei de um duplo atentado: mataram os sicários”. Comentário de Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU