14 Dezembro 2024
Em uma sociedade pós-capitalista, a IA poderia ser vista como um veículo de emancipação. Em uma organização socialista da produção, onde os meios de produção são socializados e o trabalho é orientado para as necessidades humanas em vez do lucro, a inteligência artificial poderia liberar os trabalhadores de tarefas repetitivas e árduas, proporcionando mais tempo livre para o desenvolvimento pessoal e criativo. A chave, portanto, está na questão de quem controla a tecnologia e para que fins ela é utilizada.
O artigo é de Cristian Arão, doutor em filosofia, membro da Estratégia Latino-americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), publicado por Outras Palavras, 12-12-2024.
Enorme potencial da nova tecnologia está capturado por megacorporações. Por isso, ela produz desemprego, precarização, insegurança e… ressentimento! Tudo isso é essencial à vitória de Trump e à ascensão do (neo)fascismo.
A reeleição de Donald Trump em 2024 não foi apenas um ato político; foi um grito vindo do abismo. A maré de votos que o levou de volta à Casa Branca nasceu de feridas abertas, muitas das quais causadas pelo avanço inexorável de tecnologias como a automação industrial e os algoritmos das redes sociais. Não foi um voto por esperança, mas por revanche. A conjunção de máquinas e algoritmos transformou a economia, destruiu identidades e, com isso, reacendeu as chamas do ressentimento que alimentaram sua vitória.
Este artigo é a primeira parte de uma análise feita em dois textos que revela como a inteligência artificial contribuiu para a vitória do Partido Republicano nas eleições estadunidenses de 2024. O artigo seguinte se ocupará dos impactos dos algoritmos das redes sociais enquanto este avaliará a relevância da IA nas indústrias e como isso tem afetado a classe trabalhadora dos Estados Unidos.
A implementação da inteligência artificial em diversos setores está contribuindo para a eliminação de empregos, especialmente aqueles que envolvem tarefas repetitivas e rotineiras. Exemplos recentes incluem a substituição de operadores de caixa por sistemas de pagamento automatizados e a automação em fábricas que reduz a necessidade de mão de obra humana. Essas mudanças não só afetam os trabalhadores diretamente envolvidos, mas também têm implicações para a qualidade do trabalho restante, muitas vezes caracterizado por baixos salários e condições precárias.
A promessa de que a automação criará novos postos de trabalho tem sido um argumento constante em debates sobre o futuro do trabalho. No entanto, a realidade é mais complexa. Embora novos empregos estejam sendo gerados em áreas como desenvolvimento de inteligência artificial e manutenção de sistemas automatizados, a transição para essas novas funções não é simples. A criação de novos postos não necessariamente compensa a quantidade de empregos perdidos, e a habilidade e qualificação exigidas para os novos empregos frequentemente estão fora do alcance de muitos trabalhadores que foram deslocados.
A dificuldade de recolocação é acentuada pelo fato de que a IA é capaz de automatizar funções em uma variedade cada vez maior de áreas. Desde o atendimento ao cliente, com chatbots avançados, até a análise de dados complexos, a automação está tornando obsoletos muitos empregos tradicionais e criando um cenário no qual a adaptação e a requalificação são essenciais, mas muitas vezes difíceis de alcançar.
A Quarta Revolução Industrial, um conceito cunhado por Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, está configurando uma era de transformação tecnológica que redefine profundamente a indústria e o mercado de trabalho. Schwab introduziu o termo para descrever como a convergência de novas tecnologias está criando mudanças de magnitude e complexidade inéditas. A também chamada Indústria 4.0 é marcada pela integração de tecnologias digitais, físicas e biológicas, que estão provocando uma transformação rápida e abrangente na forma como produzimos, consumimos e vivemos.
O livro que detalha essas mudanças oferece uma visão esperançosa sobre o potencial das novas tecnologias para melhorar a eficiência, impulsionar a inovação e criar novas oportunidades econômicas. A esperança do autor reflete uma crença na capacidade da tecnologia de resolver muitos dos problemas contemporâneos e de impulsionar um crescimento econômico sustentável. No entanto, apesar dessa perspectiva, Schwab também reconhece que a Quarta Revolução Industrial apresenta riscos significativos, especialmente no que diz respeito ao impacto sobre o mercado de trabalho e à ampliação da desigualdade social.
Sobre as duas perspectivas (otimismo e pessimismo), Schwab se coloca em algum lugar no meio (pendendo para o otimismo), mantendo a esperança sobre a supremacia do talento sobre o capital. Em que pese sua expectativa, Schwab ressalta que a evidência até o momento sugere que a Quarta Revolução Industrial está criando menos postos de trabalho em comparação com as revoluções anteriores. As tecnologias emergentes, como a inteligência artificial, a automação e a robótica, têm o potencial de substituir muitos empregos que eram anteriormente realizados por seres humanos. Isso se traduz em uma redução das oportunidades de trabalho disponíveis e em um aumento na insegurança no mercado de trabalho. Este fenômeno está exacerbando o fosso entre aqueles que possuem capital e aqueles que dependem exclusivamente do trabalho para a sua subsistência.
O impacto da automação e da digitalização é profundo e multifacetado. Enquanto a automação é frequentemente vista como uma força que pode expandir as capacidades humanas, permitindo um aumento da cognição e da criatividade, a realidade é muitas vezes mais complexa. A automação não apenas substitui tarefas rotineiras, mas também pode levar à precarização do trabalho e à redução das oportunidades de emprego de qualidade. Schwab observa que mesmo áreas associadas tradicionalmente à criatividade, como a escrita e outras formas de expressão intelectual, estão começando a ser afetadas pela automação. Isso sugere que as mudanças tecnológicas não estão apenas redefinindo os setores industriais, mas também transformando as esferas da criatividade e da inovação.
O livro também destaca uma tendência preocupante: a fragmentação do mercado de trabalho em segmentos de alta e baixa competência. Schwab prevê que o mercado de trabalho se dividirá cada vez mais entre empregos de alta competência e altos salários e aqueles de baixa competência e baixos salários. Esta polarização pode resultar em uma economia altamente desigual, onde a maioria dos trabalhadores está restrita a empregos mal remunerados e com pouca segurança, enquanto uma minoria altamente qualificada desfruta de oportunidades de emprego bem remuneradas e de maior status.
Por esses motivos, nota-se que a crença num futuro em que o talento humano será um ativo mais valioso do que o capital carece de uma base empírica sólida e pode não refletir completamente a dinâmica complexa do mercado de trabalho em evolução. À medida em que o trabalho é progressivamente substituído por tecnologias e capital, pode haver uma redução significativa nas oportunidades de emprego, especialmente para aqueles com menor qualificação. Essa substituição pode intensificar a polarização econômica e social, criando uma economia em que o acesso a empregos de alta qualidade se torna cada vez mais limitado.
A Inteligência Artificial, especialmente por meio do aprendizado de máquina (machine learning), desempenha um papel central nessa transformação. As máquinas e algoritmos alimentados por IA são capazes de aprender a partir de grandes volumes de dados, o que lhes permite melhorar continuamente seu desempenho sem a necessidade de intervenção ou reprogramação frequente. Isso torna as máquinas não apenas capazes de realizar tarefas específicas, mas também de se adaptarem a novos cenários e desafios, algo que anteriormente era uma prerrogativa do trabalho humano.
Um dos principais fatores que possibilita essa substituição é a automação avançada. A Indústria 4.0 combina sistemas ciberfísicos, sensores inteligentes e redes interconectadas, criando um ambiente onde máquinas são capazes de operar de maneira autônoma, com supervisão mínima. Esse nível de automação permite que tarefas repetitivas ou perigosas sejam executadas com alta eficiência, o que, em muitos casos, torna desnecessária a presença humana.
Além disso, a substituição da mão de obra por máquinas se dá pela precisão e redução de erros proporcionadas pela tecnologia. Máquinas controladas por IA podem executar tarefas com alta precisão, minimizando a probabilidade de falhas que seriam comuns com operadores humanos, especialmente em ambientes de produção repetitiva ou de alta complexidade. Isso tem grande impacto em setores como a manufatura, a logística e até mesmo a saúde, onde a automação reduz custos e melhora os resultados.
Outro fator importante é o custo-benefício a longo prazo. Embora o investimento inicial em tecnologias de automação e IA seja elevado, os custos de operação e manutenção ao longo do tempo são significativamente menores do que os custos associados a trabalhadores humanos. Máquinas não precisam de salários, benefícios, pausas ou condições de trabalho favoráveis. Elas podem operar de forma ininterrupta, 24 horas por dia, sete dias por semana, algo que nenhuma força de trabalho humana pode alcançar, aumentando substancialmente a produtividade.
A capacidade de adaptabilidade também contribui para o avanço da automação. Enquanto os seres humanos precisam passar por longos períodos de treinamento para se qualificarem em novas tarefas, sistemas de IA podem ser reconfigurados rapidamente para aprender novas funções e executar diferentes tarefas. Isso reduz o tempo e o custo associados à transição entre diferentes tipos de trabalho.
Nos Estados Unidos cidades inteiras no Rust Belt (cinturão da ferrugem) — como Akron, Flint, Youngstown e Gary — assistiram à sua desintegração. Máquinas, mais eficientes e incansáveis, substituíram operários. Nas fábricas de automóveis, nas linhas de montagem de eletrodomésticos e nos armazéns logísticos, robôs e sistemas inteligentes assumiram os postos que outrora sustentavam gerações.
Em estados como Michigan, Ohio e Indiana, o que sobrou foi uma paisagem marcada por edifícios abandonados e uma população deslocada.
Para cada máquina que entrou em operação, uma família perdeu um provedor. Para cada sistema automatizado, uma comunidade perdeu sua coesão. O progresso técnico, anunciado como inevitável, parecia uma sentença de morte para o modo de vida tradicional.
Onde outrora havia trabalho, hoje há vazio. A inteligência artificial, em sua eficiência fria, gerou uma paisagem econômica onde a desesperança se espalhou como um contágio. Sem oportunidades, sem um propósito definido, muitas comunidades passaram a questionar seu lugar no mundo. A perda de identidade profissional — “o que somos sem o trabalho?” — transformou-se em angústia existencial.
Ressentimento, assim, tornou-se inevitável. Não era apenas contra as máquinas, mas contra tudo que simbolizava o sistema que as trouxe: elites urbanas, políticas de globalização e até mesmo a promessa falha de que a tecnologia serviria a todos. Trump capturou esse sentimento. Ele não prometeu apenas restaurar empregos, mas devolver a dignidade perdida, ainda que fosse uma promessa impossível.
Entre os mais atingidos estavam os homens. Para muitos, o trabalho manual era mais do que sustento; era uma afirmação de masculinidade. O desemprego, portanto, representou algo maior do que a falta de renda. Foi a quebra de um modelo cultural que associava o provedor masculino ao núcleo familiar. Sem empregos, sem propósito, sem papel definido, muitos homens recuaram para um espaço de vulnerabilidade — mas também de raiva.
A perda de poder econômico apenas agravou a situação. Famílias que antes tinham estabilidade viram-se à mercê de benefícios governamentais insuficientes. As mulheres, em alguns casos, assumiram papéis econômicos mais fortes, mas isso não compensava a erosão de uma estrutura familiar baseada em papéis tradicionais. Em meio a essa reconfiguração, a promessa de Trump de restaurar a “grandeza” ressoou como um apelo desesperado ao passado.
A automação não veio apenas para substituir trabalhadores; ela veio para reconfigurar sociedades inteiras. Em 2024, Trump navegou nas ondas dessa revolução silenciosa, transformando a raiva difusa em capital político. Ele prometeu reverter o irreversível, e foi isso que conquistou corações e mentes. Não porque acreditassem que ele poderia, mas porque ele reconhecia, em suas palavras e postura, o peso desse luto coletivo.
Em última análise, a automação e a inteligência artificial não são apenas forças econômicas; são forças existenciais. Elas questionam quem somos enquanto constroem um futuro que, para muitos, é inacessível. Até que esse dilema seja resolvido, o ciclo de ressentimento e política reacionária continuará. Trump foi apenas o início. A máquina está ligada, e seus ecos ainda ressoarão por gerações.
Ainda no século XIX Marx já alertara que o objetivo da automação é substituir “aparelhos humanos” por “aparelhos de ferro”. Desse modo, substituir o trabalhador por um aparelho real sem as limitações humanas é o Santo Graal do desenvolvimento capitalista. É nesse contexto que a máquina, anteriormente um meio de trabalho, torna-se um concorrente ao trabalhador.
A inteligência artificial segue a tendência do desenvolvimento tecnológico do capitalismo de automação e redução da quantidade de trabalhadores. Como particularidade apresenta um agravamento dessa tendência ao conseguir “dar vida” aos aparelhos fazendo com que as máquinas consigam realizar funções em quase todas as áreas da sociedade. O problema que surge disso é que o sistema capitalista precisa de trabalhadores. Dessa contradição surgem crises ocasionadas pelo aumento do desemprego e da precarização.
Essa circunstância escancara a necessidade de repensar nossa relação com a tecnologia bem como nosso modo de produção. Marx argumenta que sob o capitalismo o ser humano serve a máquina, inclusive imitando seu funcionamento. Explora-se a natureza e o trabalho humano para produzir coisas com o intuito de manter o mercado saudável e aumentar fortunas que já se avizinham dos trilhões de dólares. A IA torna-se uma preocupação nesse contexto, porque serve para essa finalidade. Em outras circunstâncias, essa tecnologia poderia ser usada para liberar a potencialidade humana, propiciando mais tempo livre.
Aristóteles, em sua obra Política, especula que, se as ferramentas pudessem funcionar sozinhas, como os autômatos mitológicos ou as estátuas de Dédalo que se moviam por conta própria, não haveria necessidade de escravos para realizar o trabalho servil. Essa observação, feita em um contexto de sociedade escravocrata, vislumbrava uma utopia tecnológica onde a produção não dependeria da força humana. Marx retoma esse “sonho” aristotélico no capítulo 13 de O Capital afirmando que ele só poderá se realizar se o desenvolvimento tecnológico for verdadeiramente emancipador em uma sociedade onde os meios de produção estejam nas mãos dos trabalhadores, e não dos capitalistas.
Somente em uma sociedade que valorize o bem-estar coletivo acima do lucro e da exploração será possível direcionar a IA para fins verdadeiramente humanos e emancipatórios. Isso exigirá uma transformação profunda nas estruturas econômicas e sociais, onde o foco esteja na equidade, na justiça social e no desenvolvimento humano integral. Sem essa mudança de paradigma, a inteligência artificial continuará a ser uma ferramenta a serviço de interesses concentrados, perpetuando desigualdades e alienando ainda mais o ser humano do seu próprio potencial criativo e libertador.
Sob uma perspectiva marxista, a introdução da inteligência artificial no processo produtivo não pode ser dissociada da dinâmica de acumulação de capital e da relação entre capital e trabalho. A automação promovida pela IA intensifica o que Marx chamou de “substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto” — em outras palavras, o trabalho humano é progressivamente substituído por máquinas, reduzindo o valor social atribuído ao trabalho enquanto aumenta o poder do capital sobre o processo produtivo.
No curto prazo, a implementação de IA pode gerar ganhos de produtividade para as empresas, que conseguem produzir mais com menos trabalhadores. No entanto, ao longo do tempo, essa tendência leva a crises de superprodução e subconsumo, uma vez que a redução da força de trabalho significa também a redução do poder de compra da população trabalhadora. Marx já previu que a automação intensificada resultaria em um “exército industrial de reserva” cada vez maior, ou seja, uma massa de trabalhadores desempregados ou subempregados, cuja precarização reforça o poder do capital ao deprimir os salários e as condições de trabalho.
Por outro lado, em uma sociedade pós-capitalista, a IA poderia ser vista como um veículo de emancipação. Em uma organização socialista da produção, onde os meios de produção são socializados e o trabalho é orientado para as necessidades humanas em vez do lucro, a inteligência artificial poderia liberar os trabalhadores de tarefas repetitivas e árduas, proporcionando mais tempo livre para o desenvolvimento pessoal e criativo. A chave, portanto, está na questão de quem controla a tecnologia e para que fins ela é utilizada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
IA, ferramenta da ultradireita? Artigo de Cristian Aran - Instituto Humanitas Unisinos - IHU