Arboricídio em Porto Alegre: a transformação de áreas verdes em cimento. Entrevista especial com Paulo Brack

Corte e poda de árvores em Porto Alegre é efeito do crescimento de novos empreendimentos e enfraquecimento da legislação ambiental. “Existe uma espécie de caixa preta de sigilos ou falta de transparência nestas intervenções [ambientais], que acaba se naturalizando nos tempos atuais”, afirma o biólogo  

Foto: Agapan

Por: André Cardoso e Patricia Fachin | 22 Dezembro 2024

O polêmico Projeto de Lei 301/2024, que versa sobre o manejo arbóreo de Porto Alegre, “é semelhante a um autolicenciamento”, critica Paulo Brack na entrevista a seguir concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail. A proposta, explica, visa “agilizar” a poda e corte de árvores na capital gaúcha “em benefício das empresas de transmissão e distribuição de energia elétrica”. 

O PL, aprovado em regime de urgência na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, “foi submetido sem discussão nenhuma com o Conselho Estadual de Meio Ambiente ou outros setores da sociedade” e aguarda a sanção do governador Eduardo Leite. 

A iniciativa, segundo Brack, faz parte da devastação ambiental em curso em Porto Alegre. Na atual gestão municipal, exemplifica, 432 árvores foram cortadas no Parque Harmonia. A “situação inédita”, assegura, foi “uma decisão sem base técnica nenhuma, com o secretário da pasta afirmando inverdades, rebaixando a importância da área, por meio de declaração como: ‘a maior parte das árvores é exótica’ ou ‘a área é de aterro’”. A área pública, informa, “foi devastada e aterrada com a construção sem fim de prédios, quase um shopping a céu aberto. Dezenas de espécies de aves perderam seu habitat e não se sabe onde foram parar...  As áreas dos parques e sua orla adjacente viraram meros trechos de concessão”. 

Depois da enchente que afetou a capital gaúcha em maio deste ano, lamenta, “a prefeitura segue redobrando a negligência com a estrutura ambiental de resiliência da cidade”. 

Paulo Brack (Foto: Reprodução | YouTube)

Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS (Consema/RS).

Confira a entrevista.  

IHU – Quais são as normas atuais para o manejo arbóreo no RS?

Paulo Brack – Antes do Projeto de Lei 301/2024, que se concentra no manejo de vegetação, envolvendo fundamentalmente podas e supressões de árvores, não havia uma normatização clara para determinar o licenciamento das podas e a retirada de vegetais arbóreos. A questão, entretanto, estava sendo tratada desde o último grande evento de um temporal extraordinário, em 16-01-2024, entre empresas como a CEEE-Equatorial, o governo do Estado, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM) e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Os vendavais, em meados de janeiro deste ano, implicaram na interrupção por alguns dias, no abastecimento de energia elétrica, com destaque à capital estadual, tendo sido associados à queda de árvores e galhos e à interferência com a fiação elétricas de transmissão e distribuição de energia elétrica. 

Por meio do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, nós reclamamos, via ofício de 7 de fevereiro deste ano, ao MPRS, mostrando que havia sido firmado um acordo sem a participação da sociedade, com normas que facilitariam o tal manejo, hoje evidentemente representado pela nova lei que chancela as mutilações drásticas nas copas das árvores. 

O InGá solicitou que fossem consultados setores técnicos e entidades ligados ao tema da arborização bem como a população, já que o assunto requer um debate de maneira mais ampla e profunda, o que não ocorreu. 

Porto Alegre possui uma legislação, a Lei Complementar 757/2015, que determina restrições e compensações. Esta, porém, foi sendo flexibilizada. Hoje, não há mais controle no cumprimento das normas que sobraram desta lei. Basta ver, por exemplo, o cenário que chamamos de arboricídio em muitos bairros, onde milhares de árvores sofrem mutilações ou são eliminadas. Não raro, proprietários de imóveis cimentam a base dos indivíduos arbóreos, o que fragiliza sua condição vital e provoca maior chance de queda total ou de galhos, somado ao fato de temporais cada vez mais frequentes.  

IHU – Que mudanças o PL 301/2024 sugere para o manejo arbóreo?

Paulo Brack – As principais mudanças tratam de agilizar [o manejo arbóreo] em benefício das empresas de transmissão e distribuição de energia elétrica, para exercerem, sem maior controle, as podas de copas e cortes totais de árvores, em um processo de facilitação semelhante a um autolicenciamento. Na nova lei, existe também uma alegada intenção de determinar que os municípios com mais de 20 mil habitantes tenham que implementar um Plano Municipal de Arborização Urbana em no máximo cinco anos, com a participação da sociedade em sua elaboração. 

Mas, a intenção não parece ser sincera, pois, contraditoriamente, o PL do executivo estadual foi submetido à aprovação em regime de urgência, sem discussão nenhuma com o Conselho Estadual de Meio Ambiente ou outros setores da sociedade. Tampouco houve um eventual aperfeiçoamento da proposta e, inclusive, se desconsiderou um PL anterior, para o tema da arborização, com propostas interessantes, encaminhado pelo deputado Matheus Gomes [PSOL], à Assembleia. Assim, faltou, no PL aprovado, qualquer indicação de restrições de corte de exemplares arbóreos raros, tombados ou ameaçados de extinção.

Outro aspecto perigoso, neste projeto do governo, é o uso de recursos de compensações hoje enquadrados como Reposição Florestal Obrigatória (RFO), a fim de recuperar, em parte, aquilo que foi objeto de licenças para supressões de árvores em empreendimentos, podendo agora ser utilizados por prefeituras para elaborarem planos municipais de arborização urbana. Ou seja, um recurso nobre não mais concentrado em replantios, mas a ser utilizado para outras finalidades, como a contratação provável de empresas que irão elaborar estes planos, sem a garantia de seu uso adequado por parte dos municípios. 

Por sinal, nem ao menos se garante a informação à população quanto ao número de árvores que estão sendo previstas para cortar ou podar. Existe uma espécie de caixa preta de sigilos ou falta de transparência nestas intervenções, que acaba se naturalizando nos tempos atuais.

IHU – Quais espaços de Porto Alegre foram mais afetados por este "extermínio de árvores"?

Paulo Brack – As denúncias de cortes de árvores se espalham pelas ruas da cidade. São milhares de árvores podadas ou suprimidas, não só em ruas, áreas verdes privadas, mas também em praças e parques públicos. Os parques estão sem gestores públicos locais há quase quatro anos, ou seja, a partir do governo de Sebastião Melo [MDB]. 

A população fica sem saber com antecedência o que está previsto para ser cortado, não tendo chances de se pronunciar e tentar contestar decisões nem sempre amparadas em estudos técnicos e que podem afetar árvores tombadas, por exemplo, que já são verdadeiros patrimônios dos cidadãos de Porto Alegre. Existem alguns casos emblemáticos de mutilações quase total das copas das árvores em muitas ruas da cidade, dando supremacia extrema ao item fiação aérea da rede e distribuição de energia elétrica, onde cada fio, nas alegadas normas das empresas, deve estar a dois metros de distância dos galhos e folhas das árvores, o que implica em impactos tremendos na copa, debilitando a saúde dos vegetais, a paisagem, a fauna e o microclima mais ameno das áreas urbanas.

Além das vias públicas, submetidas a podas ou cortes, tem um processo acelerado de supressões em terrenos particulares. Recentemente, foram suprimidas mais de 300 árvores na Vila Conceição, na zona Sul, próximo ao Parque Municipal Natural Morro do Osso, para implantação de um projeto habitacional. Não foram obedecidas a presença de uma zona de amortecimento desta unidade de conservação e a existência de condicionantes elaboradas por técnicos para o licenciamento e implantação do empreendimento. 

IHU – Moradores do bairro Jardim Sabará, na zona leste, acionaram o Ministério Público por conta de uma obra do Grupo Zaffari que teve derrubada de árvores e todo um impacto na flora da região. Pode comentar sobre este caso e outros semelhantes que vêm ocorrendo na capital e no estado?

Paulo Brack – Este empreendimento, com área maior do que a do Parque Farroupilha, ou seja, uma área com mais de 50 hectares, não apresentou Estudo de Impacto Ambiental. Sem um licenciamento ambiental que incorpore obrigatoriamente os aspectos de impactos sobre fauna, flora vizinhança, sem um estudo que faça referência à presença da Mata Atlântica nesta área de Porto Alegre e sem discussão do tema no Conselho Municipal de Meio Ambiente, todo este processo é profundamente irregular, e deveria ser suspenso até uma análise mais pormenorizada. Do ponto de vista microclimático, teremos mais ilhas térmicas em Porto Alegre.

IHU – Qual a situação em termos de devastação ambiental dos parques de Porto Alegre, como Harmonia, Redenção, Marinha? A privatização destes espaços acelerou este processo?

Paulo Brack – O Parque Harmonia teve a autorização pela prefeitura para o corte de 432 árvores, situação inédita, implicando em uma decisão sem base técnica nenhuma, com o secretário da pasta afirmando inverdades, rebaixando a importância da área, por meio de declaração como: “a maior parte das árvores é exótica” ou “a área é de aterro”. Na primeira afirmação, não é verdade que a maior parte das espécies é exótica, como o próprio laudo da empresa apontou. Segundo, o verde urbano tem funções ecológicas e serviços ecossistêmicos, independentemente de a arborização ser nativa ou não. Por fim, o aterro é normal, já que a margem do Guaíba é bem dinâmica, com ilhas e faixas de bancos de areia que se formam a cada poucos anos, após as cheias do rio-lago. 

Neste parque, ocorriam 85 espécies de aves, mais de duas dezenas de áreas úmidas, sendo algumas migratórias. Infelizmente, a área do Harmonia foi devastada e aterrada com a construção sem fim de prédios, quase um shopping a céu aberto. Dezenas de espécies de aves perderam seu habitat e não se sabe onde foram parar...  As áreas dos parques e sua orla adjacente viraram meros trechos de concessão.

O Parque Marinha segue o mesmo caminho de transformação de áreas verdes em áreas de cimento e prédios. Os parques vão perdendo áreas verdes públicas, com foco na concessão/privatização, com prejuízos à biodiversidade urbana e também na cultura de se apreciar a natureza, as aves, as borboletas, as plantas etc.

IHU – Qual a relação entre os últimos governos da cidade e a "morte das árvores" na capital? Existe uma política de transformação urbana por trás destas ações?

Paulo Brack – A partir do governo de Nelson Marchezan Jr., a então Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAM) teve reduzido o número da equipe de técnicos. A partir de 2017, as zonais da SMAM foram fechadas, pelo menos, quatro zonais de arborização e manutenção de praças e parques em diferentes bairros da cidade. O Viveiro municipal ficou abandonado por três anos, esperando ser fechado.

Entretanto, o InGá entrou na justiça para manter o viveiro ativo, o que foi exitoso, parcialmente, já que o serviço de viveiro foi terceirizado, apesar da gestão técnica ficar na Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre – SMAMUS. O Orquidário do Parque da Redenção foi fechado em 2017. O prefeito da época também tentou eliminar totalmente os decretos de tombamentos de quase mil exemplares de árvores no município de Porto Alegre.  Entretanto, o Ministério Público Estadual obteve, na justiça, a manutenção dos decretos referentes às árvores tombadas. 

Infelizmente, as compensações dos recursos decorrentes de supressões de árvores dadas pela LC 754/2015 foram sequestradas pela Prefeitura em maio de 2024, alegando usos urgentes para enfrentar a grande enchente de Porto Alegre.

IHU – Que revisões precisam ocorrer em Porto Alegre para garantir o planejamento urbano integrado, considerando a preservação da vegetação?

Paulo Brack – As licenças para a implantação de empreendimentos devem obedecer a Lei Federal 6938/1981, que criou a Política Nacional de Meio Ambiente, que define a obrigatoriedade de realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e apresentar Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), com audiências públicas obrigatórias ao licenciamento. Ou seja, não mais aprovar empreendimentos, como esses, sem a realização de EIA-RIMA. 

Há uma distorção enorme no processo de licenciamento adotado pelo governo municipal, inclusive o Supremo Tribunal Federal deve derrubar as leis referentes ao autolicenciamento. Foi desviado, de forma que consideramos irregular, o processo de licenças ambientais, estando concentrado, equivocadamente, no Conselho do Plano Diretor Urbano e Ambiental, passando por cima das obrigatórias licenças ambientais (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação) exclusivas da SMAMUS

O Conselho Municipal de Meio Ambiente deve ser comunicado quanto a estes empreendimentos de grandes proporções, recomendando-se que se discuta estas situações graves e dê pareceres na Câmara Técnica de áreas Naturais e Paisagem Urbana, situação que ocorria até 2016. 

IHU – Como a arborização urbana contribui para o enfrentamento das mudanças climáticas e para a proteção da biodiversidade?

Paulo Brack – O papel essencial da arborização começa pelo conforto térmico, fornecedora de sombra, evitando-se a existências de ilhas térmicas, nas quais falta a cobertura verde tão importante nos dias atuais. Também captura e armazena CO2, com balanço maior de liberação de oxigênio. As árvores são atenuadoras da poluição sonora e do ar, mantenedoras da umidade relativa do solo das áreas verdes, auxiliando a qualidade do ar necessária para a saúde, disponibilizando frutos e abrigo à fauna, desempenhando papel importante na conservação da biodiversidade urbana, agregadora de beleza paisagística, entre outras tantas funções ecológicas e contribuições para uma cidade mais arborizada para a população. A arborização também é um patrimônio associado à cultura e ao turismo. 

IHU – O que tem sido feito no RS desde a enchente de maio deste ano para o enfrentamento de novos desastres climáticos?

Paulo Brack – Lamentavelmente, a prefeitura segue redobrando a negligência com a estrutura ambiental de resiliência da cidade, que depende da manutenção de muito verde na orla do Guaíba. Verifica-se, por exemplo, a continuidade de atividades incompatíveis, como aterros e urbanização sobre banhados da várzea do [rio] Gravataí, em Porto Alegre, que atuam como atenuantes das enchentes. 

A orla está sendo “refeita” com equipamentos e projetos megalomaníacos, com muito cimento e impermeabilização do solo, o que nega, flagrantemente, a grande possibilidade de um novo evento de grandes enchentes e sequência de danos à cidade e à população. 

Não se vê a reestruturação do sistema de defesa e drenagem, a começar pela recuperação das comportas, das casas de bomba e dos diques. O fato da enchente não pode ser utilizado como oportunidade ainda maior de agilização de licenças para mineração, depósitos de resíduos provenientes das cheias e obras rápidas, sem planejar outras formas mais resilientes de ocupação do solo. As margens do Guaíba e dos demais cursos de água no município não devem ser submetidas a aterros, concreto e construções. Mas quem controla isso? 

IHU – Que mudanças ou aperfeiçoamentos na legislação ambiental e na fiscalização são necessários tendo em vista as mudanças climáticas?

Paulo Brack – A legislação ambiental brasileira sempre foi considerada boa. Infelizmente, o período neoliberal desestruturante dos regramentos ambientais, trabalhistas e dos direitos dos mais desvalidos se agravou após a crise financeira de 2008. A flexibilização das leis ambientais e demais regramentos infralegais abrem ainda mais o caminho para “passar a boiada”. Os problemas extrapolam em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, onde a economia mundial e hegemônica, inclusive no Brasil, não adotou uma mudança necessária para os novos tempos de emergência climática e vem investindo em um imaginário de pequenas mudanças paliativas, como no caso da ilusória transição energética justa, num modelo econômico ambientalmente insustentável e profundamente injusto.

Leia mais