04 Dezembro 2024
É preferível ter um novo modelo de sacerdócio do que empurrar as mulheres para o modelo existente, diz o teólogo checo Tomáš Halík, que esteve na semana passada em Braga e Lisboa para várias conferências. Uma das vozes mais originais e destacadas da teologia cristã contemporânea, Halík tem vindo a construir uma obra em que aprofunda as razões do afastamento de muitas pessoas em relação à Igreja Católica e às formas institucionais do cristianismo. Depois de A Tarde do Cristianismo, o padre e teólogo, que chegou a ser pressionado para suceder a Vaclav Havel quando este deixou a Presidência da República do seu país, publicou agora O Sonho de Uma Nova Manhã, escrito em forma de cartas que dirige a um imaginário Papa Rafael, pastor universal de “todos os buscadores espirituais do nosso mundo”.
Citando Heidegger, que dizia que a técnica superava todas as distâncias, mas nunca criava proximidade, Halík critica a “falsa proximidade criada pela técnica”, dizendo que “a verdadeira proximidade entre as pessoas, a cultura da proximidade, é uma das missões do cristianismo no nosso mundo”. Na mesma linha, sugere que uma definição de oração pode ser a que remete para a experiência de que “nós e Deus não estamos separados”.
Na entrevista ao 7MARGENS, e sobre o diálogo ecuménico, Halík, 76 anos, diz que a questão da comunhão eucarística entre a Igreja Católica e outras Igrejas cristãs é “complicada” e exige “diálogo teológico”. Mas sobre a tarefa essencial de todos os cristãos não tem dúvidas: devem ser “o instrumento da unidade e da reconciliação de toda a Humanidade”.
A entrevista com Tomáš Halík, é de Clara Raimundo e António Marujo, publicada por 7Margens, 29-11-2024.
O seu novo livro é feito de cartas que escreve a um Papa imaginário… De que Papa precisa a Igreja depois de Francisco?
Antes de mais, o Papa Francisco encoraja-nos a sonhar… Então, eu, como padre obediente, fiz isso! [Risos] E num dos meus sonhos apareceu outro papa. E como compreendo que o Papa Francisco não tenha tempo suficiente para responder às minhas cartas e ouvir todas as minhas ideias e perguntas, e como também não queria incomodar a Poste Vaticane [Correios do Vaticano], tentei comunicar com o Papa a partir do meu sonho. E o Papa do meu sonho é o pastor universal. Não é apenas o chefe da Igreja Católica, mas é o pastor de todos os buscadores espirituais do nosso mundo. Porque esse é um segmento de pessoas que está a aumentar. Refiro-me àqueles que não estão totalmente identificados com nenhuma religião, os chamados “nones“, que não são não-crentes, não são pagãos, não são ateus dogmáticos… Há muitos buscadores espirituais, e creio que é tarefa da Igreja comunicar com estas pessoas. E não apenas para tentar empurrá-las para as estruturas existentes da Igreja, mas para ouvir e acompanhar. E esse é o sentido do processo sinodal: caminhar juntos.
Tomáš Halík na editora Paulinas, em Lisboa, junto ao seu mais recente livro, O Sonho de Uma Nova Manhã, que veio a Portugal apresentar. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Essas pessoas precisam de uma religião, do cristianismo, de uma Igreja?
Sim, penso que precisam. Mas de um cristianismo que não é apenas uma ideologia, de um cristianismo que é um caminho. E Jesus disse isso: “Eu sou o Caminho”. E nós somos seguidores de Jesus, por isso estamos no caminho. Portanto, a Igreja é uma comunidade de peregrinos, não uma comunidade de pessoas que são donas de todas as verdades. Estes donos de todas as verdades – o cristianismo ideológico – não são necessários. Não precisamos dessa forma de Igreja para o futuro, mas precisamos de uma Igreja sinodal e de um cristianismo sinodal. Penso que isso é necessário.
Estes buscadores espirituais, que andam à procura de respostas, são um “sinal dos tempos”? Nas suas conferências em Portugal, retomou essa expressão, que não está propriamente na moda…
Sim, por isso faço uma distinção entre os “sinais dos tempos” e o “espírito dos tempos”, ou zeitgeist. O zeitgeist é algo que está na moda: a opinião pública, as ideologias e por aí fora… É a linguagem deste mundo. Mas os sinais dos tempos são a linguagem de Deus através dos acontecimentos no nosso mundo, na nossa cultura, na nossa sociedade. Mas para reconhecer estes sinais dos tempos, para reconhecer este significado mais profundo nos acontecimentos, precisamos de uma abordagem contemplativa da realidade. É muito importante aprender a abordagem contemplativa da realidade, não só a superficial, ideológica, ou emocional, mas a de pensar o que está por trás, o que está no fundo. E esta é a minha mensagem neste livro e também nas palestras aqui em Portugal.
No livro, diz que também já apareceu nos seus sonhos uma papisa… É um absurdo a Igreja Católica continuar a não permitir o acesso das mulheres ao presbiterado?
Penso que as principais objeções à ordenação de mulheres não são teológicas, são mais psicológicas e culturais. E posso imaginar que algumas igrejas locais estejam dispostas a aceitar a mulher como presbítera, mas isso depende do papel da mulher na sociedade, na cultura. Há certamente algumas culturas em que o papel da mulher é bastante diferente do da nossa parte do mundo. Portanto, deve haver alguma descentralização da Igreja, porque devemos ter em conta o meio cultural. Mas penso que agora, depois do Sínodo [sobre a Sinodalidade, a tendência na Igreja não é apenas a ordenação – porque há também algum perigo de clericalização das mulheres – mas sim a de desenvolver alguns ministérios para as mulheres na Igreja. E já é possível pregar durante a eucaristia e fazer muitas coisas…
Também é bom falar mais sobre o papel do padre como ministério do que sobre o status, ordo. Sim, o sentido da renovação sinodal da Igreja é sair deste antigo sistema clerical para a Igreja como uma rede flexível de relações, novas relações, relações mais abertas, relações mais fraternas entre bispos, clérigos, leigos e mulheres. E também deveríamos repensar as relações da Igreja com outras Igrejas, outras religiões. Portanto, acho que o principal é repensar as relações. E é preferível ter um novo modelo de sacerdócio do que empurrar as mulheres para o modelo existente.
Os últimos tempos foram muito marcados por esta questão do papel das mulheres, e também pela crise dos abusos… Esses são os dois principais motivos que levam a Igreja a perder credibilidade?
Não serão os principais, mas são muito importantes. Penso que o motivo principal é o fato de a Igreja não ter sido capaz de responder ou de levar a sério a questão existencial das pessoas de hoje. A Igreja não tem sensibilidade suficiente para os problemas das pessoas e elas precisam também de uma linguagem diferente, de uma forma de comunicar diferente. Portanto, a linguagem da Igreja e a forma de comunicação dentro da Igreja, mas também fora dela, é o principal problema.
Mas no livro fala da crise dos abusos como uma doença grave do sistema…
A crise dos abusos foi a última gota, mas o povo já não estava satisfeito com a Igreja antes. Foi algo que se tornou visível e foi muito importante que o Papa Francisco tenha reconhecido que não foi apenas um fracasso dos indivíduos, mas um fracasso de todo o sistema do clericalismo. E eu chamo-lhe mais “triunfalismo”, porque se tratou de uma troca da Igreja na Terra com a Igreja celestial dos santos.
O triunfalismo é a imagem de que a Igreja já está completa, que tem as respostas para todas as perguntas. E houve uma troca da autoridade na Igreja, a autoridade espiritual, com o poder no sentido mundano. Por isso, deve haver sempre uma distinção entre o poder no mundo e a autoridade na Igreja, que deve servir. Isso é o ministério. E se é o poder, então o poder é poder absoluto, logo está corrompido. Assim foi a corrupção do poder: sim, houve este problema com a sexualidade e as relações de sexualidade na Igreja. Isso é parte do problema, mas não é todo o problema. O principal problema é o mau uso do poder. A autoridade deveria ser servir o ministério e não apenas ter o poder.
Tomáš Halík assina um dos seus livros, após a conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Nele, escreve que já sonhou que a Igreja Católica tinha uma papisa. Foto © António Marujo/7MARGENS
Esta é a crise mais importante depois da Reforma Protestante?
É a crise mais visível. Penso que foi também um processo de exculturação do cristianismo. O principal papel da Igreja é a evangelização, e a evangelização é a inculturação, para trazer o Evangelho como inspiração para o estilo de vida, para o modo de pensar das pessoas. Mas penso que a partir do século XIX houve um processo de exculturação, porque a Igreja do século XIX, o Magistério da Igreja, na época do Concílio Vaticano I, entrou em choque com a cultura moderna e a tentativa de lutar contra a filosofia moderna, a arte moderna, a cultura moderna, as filosofias políticas modernas. Mas estava errado. Por isso, a Igreja não pode aceitar tudo acriticamente, mas deve distinguir. Foi um “não” global, e não devemos dizer “sim” a tudo, mas deve haver esta cultura do discernimento espiritual, de que fala o Papa Francisco na tradição da espiritualidade jesuíta e do discernimento espiritual. É disto que precisamos.
Refere no livro que, ao longo da sua vida, viu Papas a serem transportados na liteira, mas também viu um Papa a lavar os pés de uma prisioneira muçulmana e a beijar as mãos de sobreviventes judeus do Holocausto… o que é que ainda não viu um Papa fazer e gostaria de ver?
Sim, durante a minha vida, já houve sete papas e tive a oportunidade de conhecer os três últimos pessoalmente… É difícil responder a esta pergunta. Penso que, se tiver de ser crítico em relação a alguma atitude do Papa Francisco, diria que ele deveria ser mais forte na sua oposição à agressão russa em relação à Ucrânia. Acho que, por vezes, é um pouco diplomático demais. Mas consigo entender isso…
Não se trata também de manter uma ponte de diálogo com o Patriarca Cirilo, do Patriarcado ortodoxo de Moscovo?
O Patriarca Cirilo é o antigo agente do KGB e não é realmente um homem de Deus. Acho que é apenas uma figura, um fantoche de Putin. Assim, não é para mim um representante muito fiável da Igreja Ortodoxa. O Patriarca Bartolomeu [de Constantinopla] sim; e há também alguns padres ortodoxos russos que são contra esta agressão, mas são reprimidos e perseguidos. Penso que não há hipótese de diálogo com Cirilo. Talvez ele se converta… Acreditamos em milagres, mas não podemos manipular e esperar milagres. Os milagres são sempre algo de excepcional!
Mas os cristãos, e os crentes em geral, não estarão a falhar neste campo? Não estarão demasiado ausentes em relação ao que se passa na Ucrânia ou em Gaza, por exemplo?
Há sempre algo de muito perigoso quando o nacionalismo se torna religião. O Papa Francisco diz que os cristãos não podem ser nacionalistas. É também essa a questão em Israel, penso eu. O nacionalismo é o egoísmo de grupo, é o egoísmo nacional. E os cristãos devem ter sempre uma visão mais ampla do que: “temos a responsabilidade pelas nossas nações, pela nossa cultura nacional, e assim por diante…”. Não podemos ser nacionalistas para matar os outros. A divinização das nossas nações é importante, mas a nação não é Deus. E sempre que o nacionalismo se tornou religião, foi muito perigoso.
Agora vemos também o lado sombrio da globalização. A globalização tem muitos aspectos positivos, mas também um lado sombrio, e agora vemos esse lado negro: a globalização do terror, a globalização das doenças… E assim, como reação à globalização, há um novo nacionalismo, extremismo político, fundamentalismo religioso, que se estiver ligado a uma espécie de cristianismo, é muito perigoso. E devemos dizer “não” a isto. É um problema na Rússia. Durante a minha juventude, vivíamos sob este poder soviético e pensávamos que o principal problema estava no marxismo, mas agora vejo que o principal problema do comunismo era a ligação do marxismo russo, do leninismo, com o messianismo russo. E este messianismo nacional já existia antes do século XIX, e depois da queda do comunismo; este messianismo nacional, o imperialismo russo como um messianismo nacional, é uma grande doença moral, e uma doença espiritual. Penso que se deveria refletir novamente sobre a questão da relação entre religião e política.
Um dos temas temas-chave das suas conversas com o Papa Rafael é a questão de como passar das mudanças exteriores na forma à transformação interior no coração das coisas. Acha que o Sínodo conseguiu essa transformação?
Foi um passo muito importante, foi um bom começo… Foi mais como um retiro espiritual, tentando mudar a mentalidade. E sim, antes de mais temos de mudar a mentalidade, e depois podemos mudar também as instituições, as estruturas institucionais. Por experiência própria, no meu próprio país [República Checa] e em alguns países [de regime ex-] comunista, aceitaram o Vaticano II apenas parcialmente. Aceitaram a reforma litúrgica, mas não mudaram suficientemente a mentalidade. Isso aconteceu porque o Vaticano II se realizou na época do comunismo e muitos padres e intelectuais no nosso país, e também em alguns outros países, não tinham acesso à literatura teológica contemporânea.
Sem conhecerem este contexto teológico do conceito, sem lerem [Karl] Rahner, [Joseph] Ratzinger, e assim por diante, não poderiam compreender completamente a mensagem. Então, mudaram a linguagem litúrgica, mas não mudaram suficientemente a mentalidade. E devemos começar por mudar a mentalidade. Há alguma dialética entre esta mudança interior, a mudança de mentalidade e as mudanças institucionais, mas penso que a prioridade está sempre no interior.
O cristianismo tem vindo a perder identidade? E o Sínodo é uma forma de a recuperar?
Penso que não, porque a identidade do cristianismo não é apenas uma lista de dogmas ou rituais. A identidade do cristianismo é Cristo ressuscitado que está presente na Igreja, na fé da Igreja, no testemunho dos cristãos. Está aí presente através do seu espírito e o espírito deve continuar. Depois, a identidade do cristianismo não é nada estática, é dinâmica. E assim, devemos sempre seguir este espírito de Deus, e devemos sempre perguntar o que o espírito está a dizer às Igrejas. E ele precisa desta abordagem contemplativa, desta escuta, porque o espírito pode falar-nos também através dos outros: através dos outros na Igreja, mas também através das pessoas fora da Igreja. Este é um dos princípios da sinodalidade: escutar.
Será que foi escutado neste Sínodo?
Tenho a certeza de que muitas pessoas tentaram escutar, e também houve muitas que não quiseram ouvir…
Escreve no livro que é também necessário integrar este espírito de sinodalidade nas relações entre culturas, nações, religiões… É possível pensar um Sínodo com outras Igrejas, ou mesmo com outras religiões?
Com certeza, acho que há próximos passos necessários. Escrevi esta semana uma carta ao Papa – não ao Papa Rafael, mas ao Papa Francisco – com algumas sugestões. E uma delas é que penso que o próximo passo no caminho sinodal deveria ser o Sínodo dos Teólogos, mas um sínodo ecumênico de teólogos. Deveríamos convidar alguns teólogos da Igreja Protestante, da Igreja Ortodoxa… e tentarmos juntos compreender quais são os sinais dos tempos hoje, e como é que a Igreja, como é que o cristianismo deve reagir a estes sinais dos tempos. O aniversário do primeiro Concílio Ecuménico em Niceia no próximo ano [1700 anos] é uma ocasião muito boa para convocar este sínodo. Deve haver alguma preparação, claro, e isso pode levar algum tempo. Mas acho que este é um passo muito importante, não só para a unidade dos cristãos…
A unidade dos cristãos poderia ser cumprida se tivermos um objetivo ainda mais amplo e ainda mais importante, que é a unidade escatológica de todas as pessoas. Não é suficiente pensarmos apenas na unidade entre os cristãos. A unidade dos cristãos deve ser o instrumento desta unificação ou reconciliação de toda a Humanidade, que é muito importante no nosso tempo, quando o mundo está dividido. É como uma utopia no nosso mundo, mas deveríamos ter algumas utopias provocatórias e sonhos…
Espera uma resposta do Papa em breve?
Acredito que sim! Talvez não chegue de imediato, mas penso que vai chegar. Recebi uma carta pessoal muito simpática do Papa, na sequência do meu livro anterior, A Tarde do Cristianismo. Depois de o ler, enviou-me a sua bênção, e isso foi um grande apoio para mim… E já sei que tem este novo livro na sua mesa – disse-me um dos seus colaboradores! Por isso, talvez me escreva, mas tenho de ser paciente. [Risos]
No livro, também escreve que “não é só a Igreja, mas toda a família humana que deve caminhar junta e os cristãos não deveriam ser aqueles que se atrasam e ficam para trás, mas aqueles que preparam e que abrem esse caminho”. Os cristãos têm-se atrasado muitas vezes?
Muitas vezes, muitas vezes… Houve a revolução industrial científica e os problemas sociais da classe operária no século XIX e a primeira encíclica social sobre estas questões foi a Rerum Novarum, 100 anos depois dos trabalhos de alguns economistas liberais e 50 anos após o Manifesto Comunista de Marx e Engels… A reação da Igreja em relação a este novo mundo pós-revolução industrial e a estes problemas da classe operária foi demasiado tardia. Se tivesse reagido 50 anos antes, talvez não existisse a mensagem comunista.
Também o Vaticano II foi a tentativa de reconciliação ou de integração de alguns valores do mundo moderno no cristianismo, mas surgiu numa altura em que a modernidade terminou. E assim perdemos, em primeiro lugar, no século XIX, uma grande maioria da classe operária, e nesta luta anti-modernista perdemos muitos intelectuais… Em 1968 houve a revolução cultural e temos perdido grande parte da juventude e agora estamos a perder as mulheres. É uma tragédia. Sim, às vezes as reações da Igreja demoram muito tempo. Em Roma, dizem: Pensiamo in secoli!. [Risos] Estão a pensar em séculos, mas a velocidade da civilização é um pouco diferente.
Também estamos atrasados no cuidado com a Casa Comum?
Sim, sim, claro. Se olharmos para alguns livros de moral cristã de há cerca de 60 anos, vemos que havia muito sobre moral sexual, sobre propriedade e assim por diante, mas praticamente nada sobre o pecado contra o ambiente. Estou feliz pelo fato de muitos cristãos sentirem agora essa responsabilidade pelo planeta, para a qual o Papa Francisco alertou na sua encíclica Laudato Si’. Este é um dos sinais dos tempos, porque para a geração jovem é algo muito importante. Se as pessoas dizem que a geração jovem é imoral, têm outro foco na sua consciência moral e nas suas atitudes morais… Mas um dos temas ao qual os jovens são muito sensíveis é a ética ambiental, e estou muito feliz que a Igreja, pelo menos agora, também seja sensível a isso.
Sugere no livro que a Igreja Católica deveria avançar para a comunhão eucarística com outras Igrejas… com algum limite ou de modo totalmente livre?
É uma questão bastante complicada e deve haver algum diálogo teológico sobre isto e sobre a forma como entendemos a Eucaristia. Mas devemos realmente ter sede desta unidade à volta da mesa do Senhor, e tentar ultrapassar as objeções. Deve haver uma abordagem com sensibilidade. É talvez uma questão para o próximo sínodo!
Desde Paciência com Deus até ao último A Tarde do Cristianismo, a sua teologia aponta para um cristianismo capaz de repropor um sentido para a vida; estamos ainda longe disso?
É preciso perguntar: “quem é o ‘nós’?”. Porque há muitos tipos de cristianismo, e sim, também os cristãos estão divididos… Não é apenas a divisão entre as Igrejas, mas ainda mais a divisão dentro das Igrejas. Portanto, há pessoas que são mais abertas, são mais flexíveis, e há pessoas que não são tão flexíveis… Às vezes, o ecumenismo intracatólico é ainda mais difícil do que o diálogo inter-religioso. Isso explica que eu consiga comunicar um pouco melhor com alguns muçulmanos que com alguns católicos… Portanto, há estas diferenças psicológicas, há as pessoas que têm uma mente aberta, há as pessoas que são apenas rígidas, há as pessoas para quem a religião é como forma de escapar ao mundo contemporâneo…
Há motivações muito diferentes: motivação religiosa, psicologia religiosa, atitudes religiosas, também dentro de uma Igreja. Mas, sim, a sinodalidade é também o caminho para uma espécie de diálogo, e pelo menos devemos tentar compreender-nos, ouvir-nos uns aos outros e tentar aceitar os outros. Isto não significa que aceitamos todas as atitudes e pontos de vista, mas devemos aceitar antes de mais a personalidade dos outros. Essa é a tarefa.
Toma a lenda do Golem, na sua cidade de Praga, para dizer que a diferença entre a verdade e a morte é muito curta, apenas uma letra… Na sua opinião, a Inteligência Artificial é também uma curta distância entre verdade e morte?
Pode ser, pode ser… Há muitos fenómenos do mundo que são ambivalentes: podem ser utilizados para o bem e para o mal. A técnica é uma boa serva, mas também pode ser um senhor perigoso. Depende de como a usamos. Lembro-me sempre da frase de Martin Heidegger, que dizia que a técnica superava todas as distâncias, mas nunca criava proximidade. E acho que há uma falsa proximidade criada pela técnica. As pessoas têm no seu celular tantos supostos amigos… são falsas proximidades. E a verdadeira proximidade entre as pessoas, a cultura da proximidade, é uma das missões do cristianismo no nosso mundo: criar esta proximidade, sermos vizinhos, sermos irmãos e irmãs. Gosto da lenda hassídica de um rabino que perguntou aos alunos: “Qual é o momento em que termina a noite e começa o dia?”. E um disse: “É o momento em que consigo distinguir os diferentes tipos de árvores”. E outro respondeu: “É o momento em que consigo distinguir o cão da ovelha”. Então, o rabino disse: “Não. É o momento em que conseguimos reconhecer na face de cada pessoa o nosso irmão, a nossa irmã. Quando não somos capazes de o reconhecer, ainda é de noite”. E eu acho que é verdade.
“A tradição da mística cristã sabe que o divino habita no humano”, escreve no seu livro. A mística, entendida nesta perspectiva, não deveria estar mais presente na formação do clero e dos cristãos, para não deixar morrer estruturas clássicas como as paróquias, como avisa no livro?
A vida espiritual – e, se quisermos dizer, a mística – é a experiência, a vivência com Deus. É muito importante e deve ser desenvolvida. A nossa fé não consiste apenas em aceitar alguns dogmas, mas em cultivar a nossa relação pessoal com Deus. E esse é o caminho que percorre toda a nossa vida. Há algumas crises, algumas noites escuras, alguns momentos de tentações. Mas devemos avançar, devemos continuar neste caminho para amadurecer a nossa fé. Sobretudo neste momento de crise, e nestas noites escuras na vida individual, e também na História, e em particular na História da Igreja…
Estes momentos são quando a face de Deus fica escondida durante algum tempo. Devemos ter paciência para passarmos por este período difícil nas nossas vidas, na vida da Igreja, na vida do nosso mundo, e resistirmos, vivendo-o como um tempo de maturidade, da pedagogia de Deus. É esse o sentido da história da Páscoa. Não há ressurreição sem morte. Por isso, penso que a verdadeira fé cristã deve, por vezes, morrer e depois ressuscitar. E isto aplica-se à Igreja. Por isso, devemos também passar por esta Sexta-Feira Santa até à Páscoa, à manhã de Páscoa. Não há ressurreição sem cruz. O caminho de Cristo na História e nas nossas vidas é a Incarnatio contínua, é a Passio continua, é a continuação da cruz e da ressurreição. E há na nossa vida, como na vida dos apóstolos, os momentos de luz no Monte Tabor, mas também as trevas no Getsemani. E ambos fazem parte da nossa existência cristã.
Por isso, devemos abraçar a totalidade e ver que Deus está presente em todas as coisas. Por isso, deveríamos superar este Deus objetivado, como o ser sobrenatural por detrás do mundo. Escrevi uma definição de oração que me parece muito bonita, que diz que a oração é a experiência de que nós e Deus não estamos separados. Penso que isso é muito importante. Nós e Deus não estamos separados, e a oração é a experiência dessa interligação entre Deus e o nosso ser. Vivemos em Deus, e Deus vive em nós através da ressurreição de Jesus, através da presença do seu Espírito. E penso que devemos desenvolver este caminho, esta perspectiva cristã.
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"A unidade dos cristãos deve ser o instrumento da reconciliação de toda a Humanidade". Entrevista com Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU