“Salvamos aqueles garotos do mar. Estavam impassíveis, acreditavam que iam morrer”

Foto: UN News

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03 Dezembro 2024

“Há muitos anos faço projetos na prisão e conheci algumas histórias realmente pesadas. Mas aqui é diferente: você toca a fronteira entre a vida e a morte. Mais algumas horas e aqueles garotos teriam ido parar no fundo do mar”. Kento, rapper e escritor, usa a música para falar aos detentos das instituições juvenis.

A entrevista é de Valeria D'Autilia, publicada por La Stampa, 30-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini

Ele se depara com a dor e a esperança. Deveria estar acostumado, mas certas histórias doem. Como aquela dos 48 migrantes resgatados pelo Ocean Viking no coração do Mediterrâneo e desembarcados ontem em Brindisi. A bordo desse navio também estava ele. “O fato de que nós, no Ocidente, podemos aceitar até mesmo a simples eventualidade de que essas pessoas possam morrer assim é monstruoso, incivilizado, desumano”.

Eis a entrevista. 

A presença de um artista em um navio de resgate é definitivamente insólita.

Não apenas foi a primeira vez para mim, mas, pelo que sei, foi a primeira vez na Itália que uma pessoa que faz música é convidada para um projeto como esse. Tenho colaborado com a SOS Mediterranée há alguns anos, mas desta vez tive a chance de fazer parte da tripulação. Resgatamos 48 pessoas, mas poderíamos ter resgatado 480 se tivéssemos ficado na área da operação. O decreto Piantedosi diz que, uma vez que o resgate tenha sido realizado, é preciso se deslocar para um porto seguro. Fica claro que essas são normas obstrutivas.

O que se lembra daqueles momentos?

Entrei em um dos três botes que foram baixados na água. Vimos o barco de patrulha da Líbia apontando em nossa direção com uma manobra arriscada que assustou os garotos e colocou em risco a operação. O que mais me impressionou, após o resgate, foi vê-los quase impassíveis. No dia seguinte, um deles, de apenas 15 anos, me disse: ‘Sabe, estávamos calmos porque tínhamos a certeza de que não nos salvaríamos. Tínhamos aceitado a morte'.

O que mais contaram?

São quase todos menores desacompanhados, alguns ficaram na Líbia por anos. Isso significa que chegaram lá ainda crianças. Há também aqueles que foram feitos prisioneiros. Isso nos faz pensar no inferno que eles devem ter passado para aceitar partir em um barco superlotado, tão frágeis quanto papel de seda. Eles me descreveram situações de extrema pobreza: se errarem na colheita, toda a família morre, pois esse é o único meio de subsistência. Mas você também morre se escolher a cultura errada: se você plantar amendoim, e se houver uma superprodução naquele ano, ninguém o comprará. Ou você arrisca sua vida porque sua vaca morre. Eles também relembraram seu cativeiro na Líbia, trabalhando como escravos. Dependendo de um pedido de resgate que ninguém podia pagar.

Como foi passar cerca de três dias no mar com esses garotos?

No começo, eles estavam com frio, não sabiam onde estavam. Depois, a equipe foi extraordinária em tratar o corpo e o espírito. Havia também primos entre eles, mas se criou um vínculo profundo entre todos eles. A bordo desses navios, as pessoas facilmente se tornam irmãos.

Você também descobriu que muitos deles adoram rap.

Eu não esperava, mesmo: fizeram freestyle e improvisaram sobre minhas bases. Uma noite, fizemos um verdadeiro show juntos. Tornou-se uma jam session. Em minha carreira, tive o privilégio de passar por grandes palcos, mas esse foi o mais emocionante. A energia, o entusiasmo e a vida que emanavam desses garotos são indescritíveis. Eles se sentiram vivos novamente, nascidos das águas. Sinceramente, eu me senti da mesma forma.

Uma música também nasceu.

Terminei de escrevê-la na noite anterior ao desembarque, fala dessa experiência. Posso antecipar uma frase porque ela significa muito para mim: ‘Traga bom vento'. Além disso, vindo do mundo da música, essas situações estão nos antípodas em comparação com tudo o que cerca o espetáculo, o efêmero. Foram momentos fortes, também levará algum tempo para mim. Não escondo que chorei.

Agora você voltará a Roma.

Na verdade, primeiro vou para Siracusa. Embora eu seja um cidadão italiano em território italiano, as autoridades locais não me deixaram desembarcar em Brindisi. Como o porto de partida do navio era Siracusa, o porto de desembarque também tinha que ser. Evidentemente, decidiu-se seguir os procedimentos à risca.

Que futuro você imagina para esses migrantes?

Meu medo é que eles pensem que tudo ficará bem. Em vez disso, a provação deles ainda não acabou. Espero que eles tenham sorte, pelo menos uma vez na vida. Quando os vi desembarcar, muitos deles estavam com um sorriso. E agora eu só espero que a Itália não encontre uma maneira de tirá-lo deles.

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