03 Outubro 2023
Há dez anos, 369 migrantes perderam a vida em um naufrágio na costa da ilha de Lampedusa, na Itália. Desde então, a política de migração da União Europeia, no Mediterrâneo, tem sido marcada por decretos de bloqueio, criminalização de ONGs humanitárias, violações de direitos humanos e um aumento sem precedente de naufrágios e mortes no mar. "A década da vergonha", denuncia a ONG SOS Mediterranée.
(Foto: SOS Mediterranee)
A reportagem é publicada por RFI, 02-10-2023.
Em 03-10-2013, ao largo da ilha italiana de Lampedusa e em frente às câmeras de televisão, 369 pessoas morreram quando o barco em que viajavam, vindo da Líbia, virou. Naquele momento, o mundo soube que o Mediterrâneo havia se transformado em um cemitério de migrantes a céu aberto.
"Eu estava me segurando em uma barra e duas pessoas estavam puxando meu cinto por trás. Meu cinto quebrou e eu perdi minhas calças. As pessoas afundaram com minhas calças nas mãos", explica um sobrevivente da tragédia.
Após o terrível naufrágio, a Itália lançou a Mare Nostrum, operação de busca e resgate para pessoas em perigo no mar. Mais de 150.000 vidas foram salvas. Porém, apenas um ano depois, na ausência de apoio da UE, a operação foi substituída pela operação Triton, não mais para salvar vidas, mas para controlar as fronteiras. E nos últimos dez anos, a multiplicação de naufrágios transformou a Mare Nostrum (como é chamado o Mediterrâneo) em uma operação "Mare Mortum".
O Ocean Viking é o navio da ONG SOS Mediterranée, cuja equipe de profissionais humanitários realiza resgates em massa de pessoas em perigo nas águas internacionais do Mediterrâneo.
"Os números de mortalidade nunca foram tão altos desde 2017, o que significa que estamos nos níveis máximos da chamada onda migratória. A Organização Internacional para as Migrações registra 2.569 mortes este ano, mais do que o número de todo o ano de 2022, quando foram contabilizadas 1.417 mortes", explica Sophie Beau, fundadora e diretora da organização.
"Este ano, a Tunísia foi o principal ponto de partida. Isso é algo novo, porque até agora era a Líbia. O ano de 2023 foi marcado por um grande número de travessias entre as costas da Líbia, da Tunísia e da Itália. O eixo migratório mais mortal do mundo", diz Beau.
Outro acontecimento infeliz deste ano é um decreto das autoridades italianas que dificulta ainda mais o trabalho de resgate das organizações humanitárias. "Antes, costumávamos esperar dias e dias, até três semanas, para poder desembarcar. Agora somos imediatamente designados para um porto seguro, mas ele fica longe do local do resgate. Tivemos que ir até Hong Kong, para portos que ficam a 1.500 quilômetros de distância do local do naufrágio. Passamos até cinco dias para chegar ao porto. E o mesmo no caminho de volta. Não estou falando apenas do Ocean Viking. Isso acontece com todos os navios de resgate. É impossível otimizar nossa capacidade de resgate porque estamos em trânsito antes de desembarcarmos os sobreviventes. Além disso, o combustível é muito caro. E algumas ONGs não podem mais operar por motivos financeiros", reclama Sophie Beau.
Segundo um acordo assinado em 2017 entre a UE e a Líbia, a guarda costeira do país norte-africano deve impedir que os migrantes ancorem na Europa.
"O tempo todo, os barcos estão tão sobrecarregados que é preciso brincar constantemente com a estabilidade do pequeno barco quando coloca uma pessoa para fora. O barco está sempre à beira de virar", diz Jérome, da equipe de busca e resgate da SOS Méditerranée. Nos últimos meses, ele foi um dos líderes de missões de resgate para salvar barcaças improvisadas em perigo ao longo da costa da Líbia.
"Quando a guarda costeira líbia chega extremamente rápido, ela cria ondas e você pode ver o terror nos olhos das pessoas. E não importa o quanto digamos a elas para ficarem sentadas para manter a gravidade, fiquem, fiquem sentadas! Mas elas não conseguem deixar de se levantar e querer pular na água. E a guarda costeira líbia passa deliberadamente por nós para criar ondas, para gerar caos", denuncia o socorrista.
A guarda costeira da Líbia também atira para o alto para impedir que o Ocean Viking salve a vida dos migrantes que estão afundando no oceano. Na ponte, entre radares e gráficos, Anita coordena a rota do Ocean Viking e os resgates de migrantes em águas internacionais no Mediterrâneo.
"Geralmente ficamos sabendo por meio de e-mails. Os e-mails são enviados para as autoridades italianas e nós recebemos uma cópia. Se podemos, dizemos às autoridades que nosso navio tem a capacidade de ajudar, com a Cruz Vermelha a bordo, com um hospital, com médicos e uma equipe de resgate com três lanchas. Outra forma de ver se há pessoas em perigo é usar binóculos", explica Anita, que navega profissionalmente há 15 anos e em 2018 foi voluntária.
Ela reconhece que o mais complicado é a coordenação com as autoridades, às vezes com vários países ao mesmo tempo, como Itália, Malta ou Líbia. "Às vezes eles dão respostas diferentes a você, às vezes ignoram nossas ligações. A autoridade competente depende da área em que estamos. Podemos prestar assistência, mas a responsabilidade é deles e o que eu preciso é que eles coordenem. Então, se nos sentimos ignorados e deixados em alto mar nas mesmas condições que essas pessoas em perigo, você se pergunta: será que não há ninguém aqui que não esteja ouvindo?", reclama Anita, que também diz que a guarda costeira líbia dispara "mais vezes do que eu gostaria e são imprevisíveis".
A guarda costeira da Líbia recebe treinamento e financiamento da UE. Por meio de uma série de acordos informais assinados pelo bloco com a Turquia, a Líbia e a Tunísia, os principais portos de partida, a UE delega a países terceiros o controle dos fluxos migratórios por meio da detecção e expulsão de migrantes para além das fronteiras europeias.
"Essa política de externalização do controle migratório permite que a UE delegue grande parte do trabalho sujo a países terceiros, de modo que a violação mais grave dos direitos humanos ocorre fora de vista, em países onde, além disso, na maioria das vezes, nem a legislação nem o sistema judiciário atendem aos critérios mínimos de um Estado de Direito", diz Giulia Gelot, jurista, defensora dos direitos humanos e autora do livro Quand la frontière devient une prison (Quando a fronteira se torna uma prisão, Editora Croquant, 2023).
O passadiço elevado do Ocean Viking permite uma visão de 360° das embarcações em perigo. "Alguns dos barcos que encontramos tinham soldas que já estavam se rompendo", explica o socorrista Jérôme.
"Eles estão praticamente afundados na água. As pessoas estão sentadas na borda flutuante do barco com menos de um centímetro de espessura. Suas nádegas estão na água. Elas estão se segurando com as mãos que estão na água. E nesse tipo de banheira mal construída, há água entrando o tempo todo, há gasolina se misturando com a água do mar. E isso cria uma mistura muito, muito corrosiva para a pele", explica Jérôme.
As pessoas se queimam. Os socorristas alertam imediatamente a equipe médica e de recepção que aguarda a chegada dos sobreviventes no Ocean Viking.
"O sal do mar junto com a gasolina causa queimaduras muito graves. Portanto, as pessoas precisam ir rapidamente para o chuveiro para bloquear a queimadura que está ocorrendo. Fazemos uma seleção olfativa, sentimos o cheiro de um por um para detectar quem deve ir para o chuveiro primeiro. Eles também ficam doentes devido à desidratação, pois não comem nem bebem água há dias. Há também pessoas feridas e aquelas que precisam ir ao hospital são evacuadas de helicóptero", explica Carla, gerente de operações.
Depois de passar meses, ou até anos, na Líbia, as pessoas resgatadas no mar geralmente se encontram em um estado de saúde delicado devido à violência extrema que sofreram lá e às terríveis condições de detenção. A equipe médica a bordo se depara com inúmeros casos de ferimentos a bala ou faca, fraturas múltiplas, sinais de tortura, doenças de pele e infecções respiratórias.
"Muitas das mulheres que passam pela Líbia são estupradas", explica Carla, por isso eles também oferecem apoio psicológico inicial e triagem para doenças sexualmente transmissíveis. "Também oferecemos ajuda aos homens, porque os homens também são estuprados, mas isso é menos comentado. Isso nunca é dito em público", acrescenta a gerente de operações.
"Aqueles que arriscam suas vidas no mar não invadem, eles buscam a vida", disse o Papa Francisco recentemente em Marselha. "O Mediterrâneo é o grito afogado dos irmãos e irmãs migrantes", acrescentou Jorge Bergoglio. Migrantes que, às vezes, Jérôme consegue resgatar das garras da morte.
"Um náufrago que resgatamos nos contou que, quando zarpou de Túnis, teve de passar por cadáveres flutuantes. Ele era da Costa do Marfim e morou em Túnis por quatro anos, aprendeu árabe, trabalhou até que um dia o presidente tunisiano disse que pessoas como ele eram um perigo para a identidade nacional. Então, da noite para o dia, ele foi deixado na rua com seus dias contados para fugir. Ele tinha a opção do deserto - porque há invasões no momento, eles colocam até 500 pessoas em um caminhão e as abandonam no meio do deserto, sem água ou comida - ou a opção do mar para poder fugir", diz o socorrista.
A visita do Papa ao porto de Marselha coincidiu com o décimo aniversário da tragédia em Lampedusa, onde ele também estava presente no momento em que ela ocorreu.
No porto francês, diante de sacerdotes, políticos e do presidente francês Emmanuel Macron, o pontífice condenou a propaganda alarmista sobre o fenômeno da migração e pediu para regulá-lo com responsabilidade europeia. "O Mediterrâneo, de berço da civilização a túmulo da dignidade", lamentou.
"Não há mais dignidade nas pessoas que resgatamos. Trinta ou quarenta pessoas amontoadas em uma barcaça de seis metros por três metros de largura. E elas passam dias no mar. As pessoas costumam me dizer: 'Oh, que trabalho difícil você faz, você pode se orgulhar de si mesmo! Mas eu não tenho orgulho. Na verdade, tenho vergonha de tudo. De todas as pessoas que não salvamos, de todas as pessoas que não conseguem entrar na contabilidade e ainda estão lá. E há muito mais do que resgatamos. E enquanto estamos conversando, há pessoas lá. A emergência ocorre todos os dias, todas as noites. E enquanto estamos conversando, algumas delas estão se afogando", conclui Jérôme.
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Após naufrágio que matou 369 migrantes, UE viveu “década da vergonha”, denunciam ONGs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU