30 Novembro 2024
Em entrevista, o especialista detalha como foi a aprovação das regras básicas para o início do processo de regulamentação do Mecanismo de Crédito do Acordo de Paris, ocorrida durante a COP29. Ele avalia que, no caso do Brasil, o mercado precisa enfrentar as inconsistências e denúncias para ganhar ‘consistência e confiança’.
Após nove anos, os países deram os primeiros passos para regulamentar o Mecanismo de Crédito do Acordo de Paris (Nome oficial para o mercado de carbono global, que funciona por meio da compra e venda de créditos de carbono gerados a partir de projetos baseados na redução de emissões de gases de efeito estufa. A proposta, que consta no artigo 6 do acordo, enfrentou vários entraves na última década, como discussões e denúncias em todo o mundo sobre projetos que desconsideram comunidades tradicionais e a ausência de legislação nos países.
O mundo busca executar esse trabalho desde o Protocolo de Kyoto, tratado assinado em 1997, que estabeleceu o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) (O mecanismo foi criado no âmbito do Protocolo de Kyoto e é uma versão do que hoje conhecemos como mercado de carbono. Por meio do MDL, países em desenvolvimento podem implementar projetos que reduzam a emissão de gases de efeito estufa e vender essas reduções para países desenvolvidos), criado para estimular o uso de energias limpas e renováveis, e que já considerava a venda de créditos de carbono de países do Sul Global, para países do Norte Global (O Norte Global inclui países da Europa Ocidental e da América do Norte, enquanto o Sul Global abrange os países considerados emergentes, como os da Ásia, África e América Latina). Depois, no Acordo de Paris, os países concordaram em estabelecer um novo mecanismo, incluindo todos os signatários e entidades privadas.
O artigo 6 é uma das partes do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas, tratado internacional assinado em 2015. Ele estabelece a criação de um mecanismo de crédito de carbono, permitindo que países, empresas e indivíduos negociem créditos gerados a partir da redução de emissões de gases de efeito estufa.
O artigo 6 contém três itens principais: 6.2, 6.4 e 6.8. Na 6.2, o artigo prevê a cooperação entre os países para promover a mitigação das emissões, permitindo negociações de créditos entre eles, sempre com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Na 6.4, o texto sugere que o mercado de carbono seja regulamentado e gerido pela Convenção das Nações Unidas. Na 6.8, a proposta aborda ações não mercadológicas, como a cooperação por meio de financiamentos climáticos.
Neste ano, entre 11 e 22 de novembro, durante a 29ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP29), os países concordaram com as metodologias e regras básicas para o funcionamento do mercado, que inclui três cenários, dispostos nos itens 6.2, 6.4 e 6.8 do artigo: o comércio de um país com outro país, de empresas com países ou de acordos para financiamentos climáticos, quando.
No momento, as transações ocorrem dentro de acordos voluntários (Também conhecido como “mercado voluntário”, é formado por empresas e indivíduos que escolhem comprar créditos de carbono para compensar suas próprias emissões e demonstrar compromisso com a sustentabilidade), com empresas que vendem e compram créditos gerados a partir de projetos feitos sem supervisão governamental, sendo avaliados e aprovados por organizações certificadoras. Agora, os governos dos países poderão participar do comércio, com a vigilância do Órgão Supervisor (Em inglês, a sigla usada é SBM [Supervisory Body of the Mechanism]). É uma associação composta por 12 membros das Partes do Acordo de Paris, responsável por discutir e gerir o funcionamento do mercado de carbono global. (SBM, sigla em inglês) do Mecanismo, composto por 12 membros dos países (O quadro é composto por dois membros de cada um dos cinco grupos regionais das Nações Unidas, um membro dos países menos desenvolvidos e um membro dos pequenos Estados insulares em desenvolvimento. Os integrantes incluem ministros e diretores que representam suas nações, todos especialistas na área de mudanças climáticas) que fazem parte do Acordo de Paris.
Na COP29, ficou determinado que o Órgão Supervisor será responsável por verificar quais projetos de créditos serão aceitos em negociações. Dessa forma, um país poderá vender seus créditos para que outro consiga atingir suas metas de cortes de emissões, por exemplo. Ou uma empresa poderá comprar créditos e alcançar suas próprias metas, como já ocorre no mercado voluntário.
Além disso, entre as metodologias aprovadas, está a necessidade de fazer a consulta livre, prévia e informada para comunidades indígenas, considerar os seus conhecimentos, o uso de linguagem simples e acessível, a permissão de variadas fontes de dados, incluindo as locais, e a criação de um plano de monitoramento constante dos projetos propostos, com inventários e a identificação dos órgãos que farão as exportações dos créditos.
Agora, o Órgão Supervisor deve se reunir para fazer novas definições e regulamentar o mecanismo, adicionando metodologias específicas para cada tipo de setor, como o do uso da terra (O setor de uso da terra refere-se às atividades humanas que envolvem a transformação ou o manejo da terra para diversos fins, como desmatamento), de energia e indústria e os diferentes projetos em cada um deles . Em 2025, serão realizados quatro encontros, sendo o próximo previsto para ocorrer entre 10 e 14 de fevereiro.
Alexandre Prado, líder em mudanças climáticas do WWF-Brasil, organização ambientalista internacional, acompanha as discussões sobre os projetos florestais de carbono e as decisões das COPs. Durante a sua trajetória, há mais de duas décadas, ele estuda, analisa e desenvolve pesquisas dentro da pauta ambiental e climática. Ele esteve presente na COP29 e explica, nesta entrevista, as decisões tomadas e as dificuldades para chegar até este momento.
A entrevista com Alexandre Prado é de Jullie Pereira, publicada por Infoamazônia, 28-11-2024.
O que você destaca dos textos aprovados para a criação do mercado de carbono global?
O que foi aprovado ali é uma estrutura para você fazer novas discussões de metodologia e de normas de remoções (Remoções de carbono referem-se a processos ou práticas que removem dióxido de carbono (CO₂) da atmosfera e o armazenam de forma segura, ajudando a mitigar as mudanças climáticas. Esses processos podem ser naturais ou artificiais). [de carbono]. Por que isso importa? Porque, a partir daí, você tem um órgão subsidiário, que se chama SBM, e esse órgão subsidiário pode aplicar e fazer novas normas, o que é um item superimportante. Isso porque os que existiam até agora eram anteriores, do período ainda de Kyoto.
Depois que começou o Acordo de Paris, você não estabeleceu mais novas normas, esperando que houvesse nas conferências esse tipo de discussão. Então, é ótimo, porque é óbvio que agora você pode aplicar novas diretrizes e aprendizados que ocorreram nesses últimos 10 anos para fazer esse mercado funcionar de uma forma mais consistente.
Não quer dizer que não poderia ser melhor, sempre pode, né? Mas, considerando que é um acordo de 190 países, foi um bom sinal. Agora, com isso, o livro de regras do Acordo de Paris foi fechado e está em plena implementação, o que é um bom sinal. Um bom resultado da COP.
Então, foram desenvolvidas as regras gerais, mas isso tudo ainda precisa ser mais detalhado pelo Órgão Supervisor?
Isso. Tem algumas coisas que ele ainda vai precisar fazer. Então, por exemplo, muitas das regras que existiam no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) já passam automaticamente para o novo mecanismo. Então, não é que você começa do zero, você já tem um rol de metodologias e setores.
Então, por exemplo, aqui em São Paulo, já há muitos anos, o aterro sanitário foi fechado, mas em lugares como Manaus, provavelmente, ainda há aterros a céu aberto. Quando você passa perto de um aterro sanitário — não sei como é em Manaus —, você vê aquelas chamas. Isso é metano saindo do lixo, né?
No Brasil, nosso lixo tem muito material orgânico, muita comida que vai parar no lixão. Esse lixo gera muito metano e, se você não liberar esse gás, o aterro pode explodir. Por isso, é necessário deixar uma válvula de escape, mas isso obviamente emite metano para a atmosfera, que é um gás altamente poluente.
Aqui em São Paulo, há quase 15 anos, em 2008, o prefeito da época fechou o aterro sanitário, criando um sistema fechado. Quando você passa perto, você não vê as chamas porque é tudo controlado. Nesse sistema, o metano gerado é capturado e utilizado para gerar energia.
Na época, esse projeto gerou créditos de carbono. Por quê? Para financiar o projeto, foi necessário calcular o quanto de metano seria emitido no sistema aberto e comparar com o que foi evitado ao implementar o sistema fechado. Essa diferença é transformada em créditos de carbono. Essas metodologias já existem, estão consolidadas e entram automaticamente no novo mecanismo.
No entanto, há metodologias que ainda não existem, como o chamado carbon storage [armazenamento de carbono], que consiste em enterrar carbono no subsolo marítimo. Esse método é muito usado pelo setor de petróleo e gás. Quando eles exploram um poço de petróleo, por exemplo, o reservatório subterrâneo que antes estava cheio de petróleo fica vazio. Há cerca de 15 ou 20 anos, começaram a injetar carbono nesses reservatórios vazios. Isso não só ajuda a esgotar o petróleo restante, como também permite armazenar carbono.
Essa técnica, conhecida como CCS [Carbon Capture and Storage], não era permitida no mecanismo anterior. No novo mecanismo, a princípio, pode ser utilizada, mas ainda é necessário desenvolver metodologias específicas. É preciso determinar, por exemplo, o tempo de permanência do carbono, como será o monitoramento e outros detalhes técnicos.
Portanto, o novo mecanismo aproveita muitas coisas do anterior, mas ainda há setores específicos que precisarão desenvolver metodologias detalhadas. Isso é algo que ainda não está completamente definido dentro da convenção.
Qual foi o histórico para essa tratativa final? Quais entraves esse artigo passou para se consolidar?
Quando foi estabelecido o Protocolo de Kyoto (Elaborado em 1997, é um tratado internacional de compromissos para a redução da emissão dos gases de efeito estufa) e entraram as discussões sobre as formas de remoção [de carbono] possíveis, ele ficou muito centrado nos países do Anexo I, que são os países desenvolvidos.
Então, ele estava limitado a um número menor de países, em torno de 30 países, 35 mais ou menos, e países desenvolvidos que têm recursos institucionais, financeiros e capacidade para conversar e fazer esse mecanismo robusto. Mesmo assim, houve muitas críticas. As críticas, nesse sentido, acho que todas elas são muito bem-vindas como um processo de aprendizado. Mercado de carbono hoje parece que é igual fazer arroz com feijão, mas não era assim — era quase um bicho-papão. Então, tem muita complexidade.
Isso foi ganhando robustez ao longo do tempo. Quando houve o Acordo de Paris foi estabelecido que todos os países tinham que participar de metas de redução de emissão, o que não existia antes. Antes, eram só os países desenvolvidos que tinham metas. A partir do Acordo de Paris, todos os países têm metas, que hoje chamamos de NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada].
Antes de você estabelecer que todos os países têm um compromisso, é necessário criar um mecanismo de apoio para que um possa ajudar o outro, já que o que queremos, no final, é que a temperatura do planeta não passe de 1,5ºC.
Agora, você tem em torno de 150 países em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, além de países mais pobres, como Bangladesh e Gana, que enfrentam outras dificuldades além das que o Brasil enfrenta — e que são muito maiores do que as que existem na Europa ou nos Estados Unidos. Então, quando você fecha o Acordo de Paris e começa a trazer todo mundo para dentro, é preciso ter essa conversa sobre quais são as novas metodologias, quais setores vão entrar e quais não vão.
É por isso que é tão importante avançar agora, considerando, de novo, que ainda existem muitas dúvidas, principalmente no [inciso] 6.2, que trata da relação país a país. Mas, agora, você tem uma clareza maior para realizar esse tipo de troca. Por isso, dizemos que ele possibilita o início da implementação, de fato, de um sistema internacional de comércio de emissões, o que é algo bem interessante quando estamos discutindo o aporte de recursos para atividades que emitem menos carbono.
A gente acompanha alguns casos de projetos que estão sendo investigados por falta de consulta ou transparência. As novas regras têm relação com as questões éticas dos projetos?
Nos itens do artigo 6º, você tem três itens principais: o 6.2, o 6.4 e o 6.8.
O 6.8 é o modelo mais Fundo Amazônia, com doações, investimentos para manutenção de florestas, etc. O 6.4 envolve o setor privado, e, conforme as metodologias atuais, não é possível fazer projetos de REDD+, por exemplo, que é um dos maiores problemas que vocês têm aí na Amazônia, porque não está regulado dentro do mecanismo.
Mas lá [no artigo 6] você pode, por exemplo, fazer projetos de restauração florestal, desde que a área tenha sido desmatada, segundo a metodologia atual, até 1989. Isso não se aplica ao caso da Amazônia, mas é relevante para estados da região litorânea brasileira, como os que abrigam a Mata Atlântica. Nesse contexto, há agora um mecanismo que não existia antes, que considera aspectos socioambientais e direitos humanos. As comunidades impactadas têm o direito de acessar e apresentar reclamações diretamente ao corpo de supervisão que opera sob a UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas].
Isso é uma novidade no 6.4, criada principalmente devido às denúncias de impactos em comunidades locais ocorridas em vários países. Já no 6.2, a preocupação é maior. Esse item regula negociações entre países. E o que isso significa?
Significa que ainda há muitas indefinições. O 6.2 não tem o mesmo nível de detalhamento que o 6.4. Enquanto o 6.4 exige várias condições e é baseado em experiências acumuladas, o 6.2, por ser uma negociação entre países, deixa cada país livre para decidir quais informações quer ou não divulgar, devido à soberania nacional.
Essa falta de detalhamento é algo que precisa ser observado nos próximos anos, especialmente em relação à implementação dessas negociações de país para país. Essa indefinição foi um dos motivos pelos quais a aprovação do artigo 6º demorou tanto. Alguns países defendiam que o 6.2 deveria ter exigências iguais às do setor privado, enquanto outros achavam que isso não fazia sentido, pois se trata de negociações entre governos, que não precisam fornecer tantos detalhes quanto empresas.
Essa disputa levou anos, e, quando o acordo foi fechado na semana passada, o resultado ficou no meio-termo. Não ficou tão claro e transparente.
De que forma a Amazônia se insere nisso?
Acredito que, nos próximos anos, especialmente para os estados da Amazônia que devem usar esse tipo de mecanismo, será essencial prestar muita atenção às denúncias. O cuidado aqui não é evitar denúncias, mas sim entendê-las, investigá-las e aplicar as correções necessárias.
Como o mercado está em ascensão e em crescimento, corrigir os erros o mais cedo possível é fundamental. Não se trata de negar os problemas, mas de reconhecê-los. Sabemos que há impactos em comunidades, pressão sobre populações ribeirinhas e problemas como a grilagem. Esses erros precisam ser corrigidos para que o mercado ganhe consistência e confiança.
Se as dúvidas sobre a credibilidade do produto forem muitas, os compradores não vão querer investir. Como qualquer mercado, a confiança é o pilar para que ele exista de forma consistente ao longo dos anos. Se ele começa com desconfiança, a capacidade de atrair compradores diminui muito.
Por isso, quanto mais entendermos que há problemas e trabalharmos para corrigi-los, melhor será para nós, enquanto país e participante desse mercado.
Como o novo mecanismo pode ser vantajoso para a Amazônia?
Eu acho que, de novo, essa história que a gente tem da nossa experiência de implementação desses projetos, e agora os judiciais mais recentes no caso dos estados da Amazônia, mostra muito claramente a necessidade de recursos para manter a floresta em pé. Sabemos que isso não é barato e que precisamos encontrar uma forma de internalizar esse custo socioambiental dentro da economia como um todo.
Essa é uma das maiores dificuldades, um dos maiores gaps [lacunas], uma das principais falhas do sistema capitalista como um todo: como trazer para a noção de custos, naquilo que compramos e vendemos, os impactos que geramos, seja no meio ambiente, seja nas comunidades.
Por isso, acho que todas as denúncias devem ser encaradas com muita seriedade e vistas como oportunidades para avançarmos nesse processo. Todas elas são muito importantes. Aqui no Brasil, temos as denúncias, que eu valorizo muito, e o outro lado, que tenta negar a existência dos problemas. Por outro lado, há quem diga que o Brasil será a “Arábia Saudita do carbono”. Mas, antes disso, precisamos melhorar o produto.
Hoje, há muitas denúncias, e isso dificulta que compradores confiem e queiram adquirir um produto que, desde o início, já apresenta problemas e pode se deteriorar rapidamente. Por isso, precisamos reconhecer que existem falhas e trabalhar para corrigi-las.
Qualquer estado ou região que esteja desenvolvendo esse tipo de projeto deve levar essas questões muito a sério. Quando conseguirmos resolver o grosso desses problemas, esses projetos poderão, sim, gerar recursos significativos para as comunidades.
O Brasil poderia melhorar, especialmente com o PL [do Carbono] sendo aprovado na Câmara, garantindo que os recursos cheguem, de fato, às comunidades que mantêm a floresta em pé. Essa é uma das falhas que ocorreram nos últimos anos. Existem casos de projetos em que as comunidades recebiam cerca de 1 ou 2 dólares por tonelada, enquanto os créditos eram vendidos por 20 dólares.
A maior parte dos recursos – cerca de 80% – ficava com os intermediários, que, apesar de desempenharem um papel importante ao intermediar as relações comerciais, não são responsáveis pela manutenção das florestas. Eles não podem ficar com uma parcela tão desproporcional, já que as comunidades têm as obrigações reais.
Sabemos que manter a floresta é o modo de vida dessas comunidades, mas os contratos são de longo prazo – 30, 50 ou até 60 anos. Quando assinam esses contratos, as comunidades assumem compromissos de décadas. Por isso, o Brasil precisa corrigir esse modelo o mais rápido possível, garantindo que os recursos cheguem a quem realmente mantém a floresta em pé.
Com isso, é possível que essas pessoas valorizem seu modo de vida de forma a competir com outras atividades econômicas, como as que promovem desmatamento, especialmente em regiões de alta pressão, como no sul do Amazonas, na BR-319, Apuí e outras áreas.
O ideal seria que essas comunidades recebessem recursos financeiros ao longo de décadas para manterem a floresta em pé. Assim, quando um setor vinculado ao desmatamento surge com propostas, seja para vender madeira ou para criar gado, as pessoas possam recusar, porque já estão recebendo um recurso suficiente para garantir uma boa qualidade de vida.
Dessa forma, a floresta permanece preservada, e as comunidades podem manter seu modo de vida sem precisar recorrer a atividades destrutivas. Acho que há muito potencial para isso, mas precisamos realizar essas melhorias e lidar com as críticas recebidas nos últimos anos.
Qual a sua avaliação sobre o PL que foi agora para sanção, considerando, inclusive, que o setor agropecuário foi deixado de fora do texto?
Eu acho que deixar o setor agropecuário de fora é uma pena por dois motivos. É uma pena porque ele é responsável por quase 75% das emissões no Brasil. Ou seja, a maior parte das nossas emissões está vinculada à mudança de uso da terra, que é relacionada ao agro. Isso significa que é um sistema que já nasce focado em apenas 25% das emissões, com um limite no seu potencial de mudança.
É lamentável porque a nossa NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) se aplica à economia como um todo. Assim, um mecanismo que poderia apoiar mudanças no padrão de produção de diferentes setores deixou de fora justamente aquele que é o maior responsável pelas emissões.
Outro ponto negativo é que o agro no Brasil tem uma importância econômica muito grande. Todos sabemos disso, e também sabemos do seu peso político no Congresso. Este poderia ser o momento para o setor agropecuário brasileiro olhar para si mesmo e reconhecer que precisa de melhorias em metodologias e mais pesquisas, assumindo uma postura proativa.
Embora o setor de processos industriais seja prioritário, como ocorre em outros países, o agro brasileiro se apresenta como muito sustentável, moderno e verde. De certa forma, isso é verdade: o Brasil é uma potência agrícola. Mas, ao mesmo tempo, o setor está vinculado ao desmatamento.
Se o setor tivesse a postura de dizer: “eu reconheço os desafios e problemas do setor, mas estou disposto a participar desse processo e desse mercado, entendendo que há dúvidas que precisam ser sanadas”, ele poderia estar presente no mecanismo.
O que quero dizer é que, na discussão sobre o mercado de carbono no Brasil e no sistema de comércio de emissões, o setor prioritário, de fato, são os processos industriais, como as indústrias. Por quê? Porque essas indústrias já estão sendo taxadas em outros mercados internacionais.
Na Europa, por exemplo, isso já acontece há muitos anos. Empresas como a Vale, a ArcelorMittal e outras do setor de mineração na Amazônia, que exportam para a Europa, precisam neutralizar suas emissões aqui no Brasil. Caso contrário, pagam uma taxa de carbono muito mais alta na entrada do mercado europeu. Para essas empresas, é crucial ter um mercado de carbono no Brasil, pois a mudança local é economicamente mais vantajosa.
Portanto, o padrão inicial é começar priorizando os processos industriais. Agora, se o setor agropecuário tivesse sinalizado que quer participar, que está disposto a fazer parte desse processo e a desenvolvê-lo em conjunto, e não à parte, ele poderia ter aproveitado uma excelente oportunidade.
O agro perdeu uma narrativa poderosa: mostrar que é tão moderno que estaria disposto a ser o primeiro setor agropecuário do mundo a ser regulado. Isso seria um grande passo para reafirmar o compromisso do Brasil com a sustentabilidade e a liderança global em questões ambientais.
Essas discussões estão avançadas também nas outras nações? Que outros países podem estar liderando esse debate no momento?
A gente concorre com todos os outros países florestais e também com os países que têm uma atividade agrícola importante. Esses são itens que, para nós, que estamos olhando os dados relacionados ao uso da terra, são muito relevantes.
Por exemplo, em relação aos países florestais, competimos com outros países da bacia amazônica que também estão desenvolvendo esse tipo de trabalho: Colômbia, Guiana, Suriname, Peru, Bolívia, entre outros. Além disso, competimos com países tropicais na África e no Sudeste Asiático, como Indonésia, Malásia, Gana, Congo e Nigéria, que possuem grandes blocos de florestas tropicais.
Estamos concorrendo com todos eles e, infelizmente, estamos atrasados em relação a esses países. Isso é lamentável porque demoramos muito para desenvolver o nosso mercado nacional. A lei sobre isso está em discussão há 15 anos, desde 2009, quando foi prevista. Perdemos muito tempo para fazer essa regulação, e agora, com a aprovação, precisamos, de fato, realizar a regulamentação do que foi definido. Isso não acontece de uma hora para outra. Ainda vai demorar. Enquanto isso, os outros países já estão à nossa frente.
Não existe espaço vazio no mercado. Durante o governo anterior, especialmente no período do governo Bolsonaro, houve um estímulo ao desmatamento. Isso fez com que o Brasil perdesse sua narrativa no cenário internacional. Como é que alguém vai querer comprar créditos de carbono para manter a floresta em pé quando o presidente do país estimula o desmatamento? A resposta é: não vai.
Com isso, perdemos quatro anos em que o Brasil, que até então era líder nesse processo, deixou de ocupar esse espaço. E, como sabemos, quando você sai, os outros ocupam o lugar. Recuperar essa posição não é fácil, mesmo sendo o país com a maior floresta tropical do mundo. Existem outros países com florestas tropicais que aproveitaram o espaço que deixamos. Agora, estamos lutando para recuperar essa posição, mas a tarefa não é simples porque estamos atrasados.
Esse é um ponto crítico relacionado à proteção de florestas. No setor agropecuário, a situação é similar. Competimos com outros países que já estão desenvolvendo seus mercados nacionais, como os Estados Unidos e os países da Europa. Eles estão mais avançados porque já começaram a trabalhar suas metodologias de uso da terra.
No caso do Brasil, o agro ficou de fora dessa conversa, o que é uma pena. Existe uma expectativa equivocada de que o agro vai ganhar “rios de fortuna” com o carbono do solo. Mas não é tão simples assim. É preciso entender quem são os potenciais compradores. Geralmente, esses compradores são estimulados a adquirir créditos de carbono gerados na região onde atuam.
Isso também acontece na Amazônia. Empresas no Pará, por exemplo, são incentivadas a implementar processos dentro do próprio estado, sem perder recursos para o Amazonas, Amapá ou Acre. Esse comportamento é natural e já é observado no Código Florestal de 2012, especificamente no artigo 44, que previa o pagamento por serviços ambientais. Muitos estados desenvolveram suas legislações estaduais, e um ponto comum é a exigência de que a compensação de áreas desmatadas seja feita dentro do mesmo estado, da mesma bacia hidrográfica ou do mesmo bioma.
Esse princípio também se aplica ao sistema internacional de comércio de emissões. Indústrias europeias, por exemplo, são estimuladas a compensar suas emissões dentro da Europa, assim como as dos Estados Unidos buscam compensar dentro do próprio país. O que sobra para nós é competir globalmente pelos compradores que não conseguem compensar internamente.
No caso do uso da terra, onde o Brasil tem maior potencial de geração de créditos, há uma concorrência global significativa. Emirados Árabes Unidos, por exemplo, têm uma meta de restauração de 75 milhões de hectares em sua NDC. No Brasil, nossa meta é de cerca de 24 milhões de hectares. Embora lá não sejam florestas como as nossas, eles também estão trabalhando para alcançar seus objetivos internamente, o que reduz a demanda por créditos externos.
É por isso que o mercado de carbono não é uma “fortuna garantida”. Cada estado ou país buscará maximizar seus próprios benefícios, e os compradores priorizarão países com maior robustez de entrega e confiabilidade. O Brasil ainda está atrasado nesse aspecto, e recuperar essa posição exigirá esforço, planejamento e regulamentação adequada.
Como você saiu dessa COP?
Eu saí triste e aliviado. É um sentimento um pouco ambíguo. Triste porque essa COP tem uma importância enorme na discussão sobre financiamento climático, que é super relevante. Há uma lógica nas últimas duas COPs e também na próxima, no Brasil, que segue um ciclo derivado do Acordo de Paris. Esse acordo [de efetivar o texto estabelecido no Acordo de Paris] começou a ser implementado a partir de 2020, após ser elaborado e assinado em 2015.
De 2015 a 2020, houve uma discussão sobre as regras, com exceção do artigo 6, que ainda precisava de ajustes. Mas o acordo engloba todos os setores e medidas, tanto para redução de emissões quanto para adaptação, além de questões relacionadas a finanças e bancos. É uma discussão cheia de detalhes, e cada detalhe importa. Por isso, o processo é demorado, envolvendo 190 países.
A lógica [desse acordo] é a seguinte: o Acordo de Paris foi assinado em 2015 para começar a ser implementado em 2020. A cada cinco anos, ocorre uma avaliação e as metas de redução de emissões são revisadas e ampliadas. Não se pode retroceder, apenas avançar, de modo a pressionar países e setores a reduzir as emissões gradualmente. O objetivo é limitar o aumento da temperatura a 1,5°C, o que é crucial para a vida no planeta.
A primeira revisão aconteceu no ano passado, pois as novas metas precisam estar prontas para 2025. Na ocasião, foram analisados os compromissos assumidos em 2015, o que foi implementado até agora e o “gap” — ou seja, o déficit em relação ao que é necessário para alcançar o objetivo de 1,5°C. Esse déficit de ambição é preocupante, especialmente considerando os impactos que já estamos vivendo, como as secas severas na Amazônia.
Após essa avaliação, a lógica segue: sabemos o tamanho do déficit em ações, então precisamos discutir o tamanho do financiamento necessário para preencher esse buraco. Essa foi a discussão deste ano. No próximo ano, o foco será aumentar a ambição dos países, pois, sabendo quanto dinheiro está disponível, pode-se propor ações mais ousadas.
O problema é que o valor aprovado, 300 bilhões de dólares, parece muito, mas é insuficiente. Quando dividido entre cerca de 150 países elegíveis para receber esses recursos e, posteriormente, pelo número de habitantes — cerca de 6 a 7 bilhões de pessoas —, o impacto por pessoa se dilui bastante. Assim, fica difícil comprometer um aumento significativo na ambição das metas.
Essa é a tristeza: como o Brasil vai aumentar sua ambição para evitar que a temperatura ultrapasse 1,5°C com tão poucos recursos disponíveis? Por outro lado, fiquei aliviado porque houve um acordo. Não é um acordo ideal, mas é melhor do que nenhum.
Estamos diante de uma situação de “se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come”. A ausência de acordo, especialmente em um contexto de fragilidade no multilateralismo e na governança global, tornaria o processo ainda mais lento e problemático. A última vez que isso aconteceu foi na COP de Copenhague, em 2009, e levou anos para que os países recuperassem a confiança mútua.
Naquela época, tínhamos um cenário político diferente, com governos mais progressistas que compreendiam a importância de manter o aumento da temperatura dentro do limite de 1,5°C. Afinal, quem paga a conta do aquecimento global são as populações mais pobres e vulneráveis. Hoje, infelizmente, essa não é a realidade política dominante.
Se fragilizarmos ainda mais esse processo multilateral, deixaremos essas populações sem qualquer proteção social ou ambiental. A Convenção do Clima é a reunião dos países que assinaram o tratado para reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, estabelecido em 1992. Anualmente a convenção se reúne na Conferência das Partes, a COP. É o maior processo multilateral do planeta e o único lugar onde essas discussões podem ser feitas de forma consistente e profunda. É ali que temos a chance de negociar e lutar, mesmo que a desigualdade entre países ricos e em desenvolvimento ainda seja evidente.
Perder a confiança nesse processo deixa um vazio perigoso. Por isso, é triste que o valor aprovado seja tão baixo, o que limita o aumento de ambição necessário para o próximo ano e dificulta a contenção do desastre climático que vivemos diariamente. Mas, ao mesmo tempo, é melhor do que não ter nada. É um alívio misturado com tristeza — uma situação ambígua, de fato.
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‘Erros precisam ser corrigidos’, diz Alexandre Prado, do WWF-Brasil, sobre mercado de carbono do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU