28 Novembro 2024
"A defesa dos valores democráticos, dos direitos e da liberdade de consciência, da preciosidade da fé na vivência histórica e civil tornam o texto das Igrejas Ortodoxas helênicas uma alternativa ao provável recuo para posições histórico-sociais passadistas da atual liderança da Igreja russa", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 26-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre os “danos colaterais” do consenso acrítico de Kirill à guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia está o cancelamento de Os fundamentos da concepção social da Igreja Ortodoxa russa?
As contradições em alguns pontos do texto aprovado pelo Conselho dos Bispos em 2000 são um prenúncio da remoção de um documento muito importante para o então Patriarca Aleixo II? A dialética entre o texto russo e o texto aprovado pelas Igrejas Ortodoxas após o Concílio de Creta (2016) – Pela vida do mundo. Em prol de um ethos social da Igreja Ortodoxa (janeiro de 2020) – resultará em uma negação mútua?
Perguntas legítimas, dadas as contradições, as modificações e os esquecimentos da atual liderança ortodoxa russa em relação a alguns pontos específicos como a guerra, a relação Igreja/Estado, o nacionalismo e o patriotismo. Elementos que impulsionam a evacuação do núcleo do texto, ou seja, a revisão da relação “sinfônica” entre Igreja e Estado, a negação de um espaço dialético entre religião e política, o fim de um diálogo sobre o assunto entre tradição católica e ortodoxia eslava.
Podemos começar pela contradição mais evidente que diz respeito à legitimidade da guerra. No capítulo três (Igreja e Estado) no nº 8, são mencionados muitos âmbitos de colaboração entre Igreja e Estado. Dezesseis são enumeradas. Mas também são citados três casos em que os ministros do culto e as estruturas eclesiásticas não podem dar seu consenso ao Estado: envolver-se na luta política e fazer parte das investigações dos serviços secretos que exigem o segredo em relação à autoridade eclesial; e se acrescenta a condenação da “conduzir de uma guerra civil ou de uma guerra de agressão externa”. Como estado independente, a Ucrânia foi agredida pelas tropas russas. Mesmo negando a sua autonomia de Estado por causa da unidade (questionável) das 'Rus (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia) cai-se no caso de guerra civil. Kirill nunca se preocupou em dar uma resposta e uma explicação.
Falando aos participantes do Fórum Internacional de Culturas Unidas (São Petersburgo, 11 de setembro de 2024), teve a audácia de dizer: “Não estamos impondo nada a ninguém, não estamos ocupando ninguém, não estamos escravizando ninguém. Estamos seguindo com calma o nosso caminho histórico”.
O texto conciliar afirma: “A guerra é um mal. Ela é causada, assim como o mal no homem em geral, pelo abuso pecaminoso da liberdade dada por Deus” (cap. 8, nº 1) e, embora compartilhando a possibilidade do conflito militar no caso de defesa e restauração da justiça, se pede o respeito dos prisioneiros e das populações civis inimigas”. A Igreja se oferece como mediadora nos conflitos e “se opõe à propaganda da guerra e da violência, bem como às várias manifestações de ódio, capazes de provocar conflitos fratricidas” (cap. 8, nº 5).
Como julgar, então, as expressões dirigidas aos participantes do Fórum para a Proteção dos Valores Tradicionais (25 de setembro de 2024): “Hoje observamos com grande preocupação como a ideologia neonazista, de natureza anticristã, está sendo retomada e imposta na Europa. Esse fato nos incentiva a buscar formas de desnazificação, bem como a contribuir para o fortalecimento do mundo russo por meio do desenvolvimento de laços espirituais, científicos e sociais, principalmente entre os povos eslavos fraternos.”
Após a queda do poder soviético, as antigas nacionalidades reconquistaram seu espaço. O texto de Os fundamentos, referindo-se à Rússia, lamenta o desaparecimento de estados multiétnicos, “especialmente aqueles com uma história e cultura comuns”. Mas admite que a divisão é justificada quando se registra uma evidente opressão e apenas se a maioria dos cidadãos se manifestar a favor da independência (cap. 16, nº 1).
O caso ucraniano se enquadraria nessa categoria. Dois anos de guerra, em um contexto de evidente disparidade de poder militar, evidenciam isso. Mas Kirill, por meio do Mandato (documento) do concílio mundial do povo russo, ignora a vontade dos ucranianos e fala da “trindade” dos povos da 'Rus: “Uma vez terminada a operação militar especial, todo o território da atual Ucrânia deverá pertencer à zona de influência exclusiva da Rússia. A possibilidade da existência nesse território de um regime político russofóbico, hostil à Rússia e ao seu povo, bem como de um regime político dirigido por um centro externo hostil à Rússia, deve ser absolutamente descartada”.
É difícil considerar essa posição como coerente com o que o documento social afirma: “No caso de conflitos interétnicos (a Igreja) não toma partido por esta ou aquela parte, exceto nos casos em que uma das partes tenha perpetrado uma evidente agressão ou uma flagrante injustiça” (cap. 2, nº 4).
Os fundamentos defendem o patriotismo cristão, especialmente quando a maioria da comunidade civil é ortodoxa, mas especifica: “É contrário à ética ortodoxa fazer distinções de caráter moral entre nações e humilhar qualquer nação, seja ela ética ou civil. Ainda mais são contrários à ortodoxia os ensinamentos que colocam a nação no lugar de Deus ou degradam a fé a um dos aspectos da autoconsciência nacional” (cap. 2, nº 4).
É difícil conciliar essa afirmação com o que Kirill propõe em seu recente livro Pela Santa Rússia. Patriotismo e Fé. Nele, o patriotismo “é fidelidade ao plano divino” e “não é pecado dar a vida por ele, porque isso confirma a verdade de Deus na terra”.
Na comemoração litúrgica de Cirilo e Metódio (24 de maio), Kirill enfatiza: “Das nossas atividades eclesiais - pelo menos da terra pela qual somos responsáveis perante Deus e perante a história - depende o futuro da fé ortodoxa e, portanto, o futuro daquele sistema de valores no qual somente a personalidade humana pode realmente se desenvolver”.
No já mencionado Fórum das Culturas Unidas, o Patriarca se pergunta: “Por que falo com tanta confiança sobre nosso país marcado por Deus? Sim, porque suportar tanto sofrimento e permanecermos nós mesmos é um milagre de Deus”. Depois de passar pelas revoluções e a perestroika “nessa capacidade de preservar o que é mais importante, vejo uma certa escolha de Deus. O Senhor está conosco, Ele não abandona a nossa 'Rus”.
Transformar a Rússia no povo escolhido e a etnia russa como guardiã da fé ortodoxa provocaram o duro juízo de mais de 500 teólogos ortodoxos que escreveram em um documento de março de 2022: “Condenamos como não ortodoxo e rejeitamos qualquer ensinamento que busque substituir o Reino de Deus visto pelos profetas, anunciado e inaugurado por Cristo, ensinado pelos apóstolos, recebido como sabedoria da Igreja, enunciado como dogma pelos Padres e vivido em toda santa liturgia, por qualquer reino deste mundo, seja da santa 'Rus, da santa Bizâncio ou de qualquer outro reino terreno, usurpando assim a própria autoridade de Cristo de entregar o Reino a Deus Pai e negando o poder de Deus de enxugar toda lágrima de todos os olhos”.
Nas relações entre o Estado e a Igreja, a liderança ortodoxa russa escolhe cada vez mais não a dialética legítima, mas o consenso acrítico e idólatra. O texto de Os fundamentos escreve: “Ao mesmo tempo, os cristãos devem evitar absolutizar o poder e devem se precaver de não reconhecer os limites de seu valor puramente terreno, temporário e transitório, condicionado pela presença do pecado no mundo e pela necessidade de contê-lo” (cap. 3, nº 2).
“Ao mesmo tempo, é evidente para a consciência cristã que qualquer ordenamento humano, incluindo o poder soberano de um Estado, é relativo diante de Deus Todo-Poderoso” (cap. 16, nº 1).
Aqui, em vez disso, está o elogio irreprimível de Kirill a Putin por ocasião do aniversário deste último (24 de outubro): “você defende a pátria com a máxima responsabilidade, cuida do desenvolvimento e do patrimônio cultural secular, age com sabedoria e determinação, é uma inspiração para todos; a bênção de Deus desça sobre você todos os dias de sua vida ‘até o fim dos tempos’, como costumamos dizer. Queira Deus que o fim dos tempos também signifique o fim de sua permanência no poder”. Embora essa última expressão tenha desaparecido dos textos oficiais, permanece como evidência de uma admiração quase idólatra pelo autocrata do Kremlin. Poucas semanas antes, ele havia exclamado: “Não é um milagre de Deus que, em tempos tão difíceis, tenhamos um presidente ortodoxo e crente, que não hesita em ir à igreja [...] que professa abertamente sua fé, que em sua personalidade combina intelecto, vontade política e responsabilidade perante Deus e perante as pessoas em virtude de sua fé?”
O Mandato do concílio mundial do povo russo afirma: “O significado mais elevado da existência da Rússia e do mundo russo fundado por ela, sua missão espiritual é ser um ‘baluarte’ – a referência é ao Katéchon de 2Ts 2,6, aquele que impede a vitória do anticristo (ndr) – para defender o mundo do mal. Sua missão histórica é frustrar a cada oportunidade as tentativas de estabelecer uma hegemonia universal no mundo e de subjugar a humanidade a um único princípio maligno”.
A contraposição de valores, “metafísica” e teológica ao Ocidente e às Igrejas cristãs que nele operam está agora presente nas muitas intervenções do Patriarca Kirill. Cito algumas delas. Por que (os ocidentais) se voltaram contra nós? “Eu respondo da seguinte forma: a Rússia ousou - e ousou porque é uma grande potência independente - seguir um caminho diferente de civilização. Hoje, mesmo nos países cristãos, está se abandonando Cristo, Deus, a Igreja” (20 de novembro).
“Forças externas tentam de muitas maneiras dividir um povo historicamente unido, abolir a cultura russa, arrancar as pessoas de suas raízes ortodoxas, destruir o nosso patrimônio histórico” (30 de outubro).
“Não consigo encontrar nenhuma outra razão (para o conflito, ndr) que não seja o fato de que a Rússia e, pela graça de Deus, a Bielorrússia e nossa Igreja oferecem ao mundo, incluindo o mundo ocidental, uma alternativa para o desenvolvimento da civilização. Se no Ocidente há um entendimento absolutamente errado de liberdade como permissividade, se lá, sob o disfarce de slogans de liberdade, o direito das pessoas de cometer pecado não é apenas incentivado, mas legislado, então esse é o caminho para o fim” (8 de setembro); etc.
Os temas mencionados são relevantes na estrutura geral de Os fundamentos. A defesa dos direitos humanos e da liberdade de consciência, já frágeis no texto, bem como a orientação ecumênica, ainda subordinada ao “retorno” de todos os cristãos à ortodoxia russa, expõem o documento a interpretações passadistas.
As amnésias e as remoções de Kirill o esvaziam completamente, invalidando o esforço de uma redefinição da relação com o Estado, que é o verdadeiro cerne do texto. A decisão mais importante do Concílio de 2000 foi a aprovação do documento.
“O ponto central da doutrina social da Igreja Ortodoxa é a revisão completa da tradição multissecular da relação com o Estado”, escreveu Anatoli Krassikov em seu comentário no Il Regno (Attualità, 16[2000],508). Em vez disso, a esperança está voltando por uma “sinfonia” que permita “construir um organismo social cujo corpo é confiado às autoridades dos leigos e cuja alma é representada pelo clero”. Uma hipótese que até agora se mostrou infrutífera e que Kirill volta a propor em meio a uma guerra de agressão com centenas de milhares de mortos e feridos, vários milhões de refugiados e a destruição de regiões inteiras.
De forma bem diferente, fala de “sinfonia” o documento conciliar das Igrejas Ortodoxas depois de Creta Pela vida do mundo. Em prol de um ethos social da Igreja (cap. 2, par. 14): “Com o tempo, essa cooperação para o bem comum foi consagrada na tradição ortodoxa sob o termo ‘sinfonia’ nas novelas do imperador Justiniano. Esse mesmo princípio esteve em vigor na constituição de muitos estados nacionais ortodoxos no período pós-otomano. E mesmo hoje, o princípio da sinfonia pode continuar a guiar a Igreja em suas tentativas de colaborar com os governos em prol do bem comum e de lutar contra a injustiça. Entretanto, não pode ser invocado como justificativa para a imposição da ortodoxia religiosa à sociedade em geral ou para promover a Igreja como poder político”.
A defesa dos valores democráticos, dos direitos e da liberdade de consciência, da preciosidade da fé na vivência histórica e civil tornam o texto das Igrejas Ortodoxas helênicas uma alternativa ao provável recuo para posições histórico-sociais passadistas da atual liderança da Igreja russa.
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Kirill termina com a doutrina social? Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU