“Como o senso maternal se transformou em instintos de defesa armada? Grande é a decepção e grande é a derrota também para a Igreja”, diz biblista italiana

Rosanna Virgili ministrará a viodeconferência “Desmasculinização da Igreja. Reflexões a partir das origens cristãs” no Ciclo de Estudos O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja, promovido pelo IHU

Foto: Reprodução Vatican News

Por: Patricia Fachin | 16 Novembro 2024

O pedido do Papa Francisco à Comissão Teológica Internacional – CTI para desmasculinizar a Igreja tem sido tema de debate e interpretações por toda parte. Alguns enveredam a discussão para a questão ministerial, apesar do pontífice ter dito que este não é o caminho. Outros reivindicam ampliação da participação das mulheres em diferentes instâncias da Igreja ou a introdução de variadas ideias seculares na doutrina e no magistério, enquanto uma parcela deseja mudanças de tratamento nas relações humanas, para que sejam mais fiéis ao Evangelho. 

Para a biblista Rosanna Virgili, professora de Exegese no Instituto Teológico Marchigiano da Pontifícia Universidade Lateranense, “a desmasculização comporta uma conversão, uma mudança de linguagem, de estilo, de costumes e de mentalidade, um novo rosto da Igreja que hoje surge com toda a sua urgência. Ser não apenas crentes, mas também credíveis, como dizia o juiz Livatino”. Segundo ela, “a fé de Israel funda a masculinização na circuncisão. Mas Paulo derruba essa tradição: o que importa é ser uma nova criatura”. Ou seja, nova criatura em Cristo Jesus.

Rosanna Virgili (Foto: Reprodução Mosteiro de Bose)

Formada em Filosofia pela Universidade de Urbino, em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense e licenciada em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Rosanna Virgili tem publicado artigos e participado de eventos que discutem não só a participação das mulheres na Igreja e no espaço público, mas busca compreender a noção de feminino a partir do exame e da interpretação do texto bíblico. 

Em 2016, Virgili foi protagonista de um debate com o teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua. No texto que esclareceu alguns pontos da discussão, a biblista citou um trecho da obra do exegeta irlandês Jerome Murphy-O’Connor, Paolo e le donne [Paulo e as mulheres, editado pela Editora Paulinas, 2009], em diálogo com as teólogas Cettina Militello e Maria Luisa Rigato. O tema é a sentença de Paulo sobre as mulheres: “Paulo, sobre as mulheres, disse de tudo e também o contrário de tudo: ‘O juízo de Paulo sobre o lugar das mulheres na Igreja foi o campo de batalha no qual as questões eclesiais feministas foram e são objeto de confronto. A sua autoridade foi adotada tanto para reduzir as mulheres ao silêncio, quanto para promover o seu avanço no ministério’”. 

Segundo ela, a submissão das mulheres aos homens no passado, tal como visto em diferentes instâncias da sociedade, é decorrência de arbitrariedades dos sistemas religiosos no exame do texto bíblico. “Concordo plenamente com Mancuso quando ele diz que ‘a submissão feminina do passado não pode deixar de ter uma raiz também no texto bíblico’, e eu nunca sonharia em afirmar que ‘a submissão da mulher’ não foi fundamentada também sobre ele, ou, melhor, eu escrevi claramente que, muitas vezes, os textos foram arbitrariamente utilizados pelos ‘sistemas religiosos’; não há dúvida de que algo deve ter acontecido já que a ‘presença de autoridade das mulheres nas comunidades cristãs desapareceu totalmente quase de repente’”, esclarece. O ponto da crítica, no entanto, acrescenta, é o seguinte: “Eu critico, ao contrário, que Mancuso não faça a mínima menção à autocrítica que a própria Igreja Católica fez sobre esse modo de proceder em relação à Bíblia”.

Rosanna Virgili lembra que a paridade entre homem-mulher é fruto da modernidade, como exposto por Vito Mancuso no debate: "Foi a modernidade que fez evoluir a consciência ocidental à paridade homem-mulher e, portanto, que fez sentir a inaceitabilidade das expressões bíblicas, incluindo as de São Paulo". Entretanto, contrapõe Rossanna, “entre os séculos XVIII e XX, surgiram na Europa milhares de famílias religiosas femininas que se ocupavam do bem-estar social, quando os Estados ainda não sentiam em nada a responsabilidade social e não garantiam nem a saúde, nem a educação, nem o trabalho. Quanta profecia e ‘modernidade’ naquelas mulheres! E o que dizer das abadessas medievais que reivindicavam o direito à autonomia no governo das coisas espirituais e materiais? Ainda no primeiro século da era cristã, os Evangelhos se colocaram contra o poder masculino excessivo na instituição matrimonial, defendendo o direito da mulher de não ser repudiada por qualquer capricho do marido, ou de não ser apedrejada por causa de adultério (cf. Mt 19; Jo 8). Crimes contra as mulheres ainda atrozmente atuais que as Escrituras cristãs denunciam e repudiam muito fortemente há ao menos dois milênios! Por que não dizer também isso, ou, melhor, hoje, sobretudo disso?”

O fundamental nesta discussão, assegura a biblista, é que “o texto bíblico não deve ser curvado, mas entendido e desfrutado nas suas razões intrínsecas; naquela alma que é a Palavra de Deus que modela e transforma o seu Corpo nas várias sintaxes da história. Em um autêntico desejo de ‘florescimento do humano’, a Escritura, certamente, deve ser libertada e ‘posta para crescer’ – dizia Gregório Magno –, mas não jogada no lixo”.

Rosanna Virgili é uma das participantes do Ciclo de Estudos O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em 21-11-2014, ministrará a viodeconferência “Desmasculinização da Igreja. Reflexões a partir das origens cristãs”. O evento será transmitido na página eletrônica do IHU, no YouTube e no Facebook, às 10h. 

Mulheres na vida pública 

As reflexões da bibilista Rosanna Virgili não se restringem ao âmbito bíblico e eclesial. Ao contrário, buscam iluminar o debate público e a participação das mulheres na política. Neste ano, ela comentou, por exemplo, o resultado das eleições europeias para a representação no Parlamento Europeu. “Um dado chama a atenção: que os líderes dos partidos que a propagam são quase exclusivamente mulheres! Mas o que está acontecendo? Como é possível que sejam as mulheres a defender ideias e instâncias de fechamento étnico e de rejeição dos migrantes, de uma defesa extrema das fronteiras da nação a ponto de embarcar com total despreocupação em políticas de guerra, de legitimar a repressão, até mesmo a repressão violenta, de servir a economias que privilegiam os mais ricos e poderosos em detrimento dos pobres e dos despossuídos?”

No passado, apesar de as mulheres não atuarem na vida política como hoje, adverte, “colocavam uma barreira humana, moral, cultural e espiritual contra a bestialidade em que muitas vezes se reduzia um mundo androcêntrico, onde vigorava a lei do mais forte, a negação dos direitos humanos e civis. (…) Nós, mulheres cristãs, sonhávamos com a Pacem in terris, felizes por saber que a terra é somente de Deus e que ninguém pode se apropriar dela ou obrigá-la a gritar pelo sangue derramado do irmão. Que a política é a arte de transformar o inimigo em próximo”. 

 

Em oposição às políticas contrárias aos migrantes, a biblista questiona: “O que aconteceu, então, com as mulheres? E como o senso maternal se transformou em instintos de defesa armada, de sede de poder, de um estilo de comportamento desdenhoso e vulgar? Grande é a decepção e grande é a derrota também para a Igreja”.

Leia mais