21 Mai 2024
"Se Paulo é um teólogo, Lucas é um narrador. Ele escreve uma obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos – que pode ser considerada: 'uma história de histórias' (Lidia Maggi) realizada de forma cênica, com detalhes altamente simbólicos. Chama-se técnica de showing, aquela de expressar uma mensagem através de enquadramentos e dramatizações. E eis então o desdobramento da projeção de Lucas como uma progressiva desmasculização da relação religiosa: na primeira cena vemos o Templo de Jerusalém e, no seu interior, o sacerdote Zacarias que oficia a oferta do incenso (cf. Lucas 1,5-25), na segunda vemos a casa de uma mulher leiga e noiva numa pequena aldeia do interior da Galileia (cf. Lc 1,26-35)", escreve a teóloga e biblista italiana Rosanna Virgili, professora do Instituto Teologico Marchigiano, vinculado à Pontifícia Universidade Lateranense, em artigo publicado por Avvenire, 14-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A fé de Israel funda a masculinização na circuncisão. Mas Paulo derruba essa tradição: o que importa é ser uma nova criatura. E o mesmo faz o evangelista Lucas. Se o thémelion (o “fundamento”) da Igreja é Jesus Cristo, então a Igreja nasce de uma mulher pois Nela está a fonte, a sua cascata divina para a vida encarnada. Paulo não diz: “nascido de homem”, mas: “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher” (Gl 4,4). Apesar disso, no XI Concílio de Toledo se estabeleceu que o Filho deveria ser gerado e trazido ao mundo por utero patris para evitar a sua origem feminina. Afinal, a masculinização do nascimento já estava presente antes do cristianismo no mundo antigo do Mediterrâneo. Um caso marcante é o da deusa grega “de olhos esverdeados”, Atena, que, talvez por sua sabedoria, nasceu diretamente da cabeça de Zeus, o deus pai que a deu à luz depois de engolir Metis, a sua primeira esposa.
Também Paulo, portanto, que conhecia a cultura grega, poderia ter postulado que o Filho tivesse nascido da mente – ou do útero – do Pai. E um homem como ele que ostentava a plena identidade judia (2Cor 11,22: “São hebreus? Eu também sou! São israelitas? também eu! São descendência de Abraão? também eu”) poderia ter defendido – como faziam os chamados “judaizantes” – a necessidade de circuncidar aqueles que, entre os gentios, vinham para a fé cristã. É, de fato, justamente na circuncisão que se funda a "masculinidade" da fé de Israel. Em primeiro lugar porque é um aspecto que cabe, obrigatoriamente, apenas aos homens, e também pelo seu valor teológico bíblico: quem é circuncidado pertence ao povo escolhido dos filhos de Abraão.
A circuncisão é um sinal de exclusão que impossibilita não apenas aos gentios, mas principalmente às mulheres judias ter uma relação imediata com Deus. E é na circuncisão de Abraão e de seus filhos que se alicerça o patriarcado bíblico. A ponto de não importar se são judias ou não as mães dos filhos Abraão, desde que todos tenham sido gerados pela semente de seu membro circuncidado, isto é, marcado pela aliança com Deus. Se Paulo quisesse masculinizar as igrejas cristãs, teria podido simplesmente impor a circuncisão. Mas isso não aconteceu, pelo contrário, Paulo a contestou veementemente, pois dizia: “Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura” (Gl 6,15). Ele preparava assim o que se cumpriria no batismo cristão: “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,26-28).
Isso seria suficiente para documentar a desmasculização da Igreja desde as origens. E também Pedro e Tiago, “colunas” da Igreja de Jerusalém, inspirados pelo Espírito e pela Escritura, em ocasião do primeiro Concílio, concordaram com Paulo em negar a necessidade da circuncisão para os gentios antes do batismo (cf. At 15). E quanto à inversão que Jesus traz para o exercício do governo? Aos seus discípulos que lhe perguntavam ansiosamente quem era entre eles maior, o Mestre respondia: “Estou entre vós como diácono” (Lc 22,7). Uma renúncia ao poder e à dominação de que só as mulheres, naquela época, se demostravam capazes. Basta pensar na diaconia da sogra de Pedro, de Marta, de Maria de Magdala, de Joana esposa de Cusa e de Susana (cf. Mc 1,31; Lc 10,40; Lc 8,1-3).
Na relação entre Paulo e as mulheres, é famoso o versículo em que o apóstolo lhes impõe o véu durante as assembleias porque: “o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem. Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos anjos”. Pena que poucas pessoas leiam a continuação: “Todavia, nem o homem é sem a mulher, nem a mulher sem o homem, no Senhor. Porque, como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus" (1Cor 11,9-12). Mas há mais. Se Paulo é um teólogo, Lucas é um narrador. Ele escreve uma obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos –que pode ser considerada: “uma história de histórias” (Lidia Maggi) realizada de forma cênica, com detalhes altamente simbólicos. Chama-se técnica de showing, aquela de expressar uma mensagem através de frames e dramatizações. E eis então o desdobramento da projeção de Lucas como uma progressiva desmasculização da relação religiosa: na primeira cena vemos o Templo de Jerusalém e, no seu interior, o sacerdote Zacarias que oficia a oferta do incenso (cf. Lucas 1,5-25), na segunda vemos a casa de uma mulher leiga e noiva numa pequena aldeia do interior da Galileia (cf. Lc 1,26-35).
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
A trama é esta: se a Judeia tinha uma religião sacerdotal interpretada pelo masculino - Zacarias - ela, porém, falha porque é incapaz de mediar entre o povo - que espera e reza do lado fora do Templo – e Deus, que ali reside. O sacerdote acessa e preside as instituições do culto, tem as competências do ofício, observa pedantemente a Lei, mas está sozinho e não tem a fé! Lá a masculinização da religião do Templo produziu e defendeu um aparato que tornou mudo não apenas a si mesmo, mas também a Deus! Por falta de fé e ausência de testemunho. E tornava aquele sacerdócio estéril e insignificante e o via reduzido de canal de misericórdia a muro de separação entre Deus e seu povo. Razão pela qual Deus vai procurar a fé na casa de Maria e nas asas do anjo Gabriel sai das salas do Templo para cobrir de sombra o Altíssimo no seu ventre de terra. Do Templo para a casa: de um lugar totalmente masculino para um ambiente totalmente feminino que será a sede das igrejas cristãs.
Alguns dizem que o vício de Adão - do masculino - é falar pelos outros, enquanto a mulher tem o vício de ficar calada, de deixar falar por ela. Motivo que levou as mulheres a serem na Igreja apenas ouvintes e executoras da palavra dos homens. Não é assim no Evangelho de Lucas, mas o oposto: enquanto Zacarias sai do Templo fechado no seu mutismo, Maria dissolve o seu “aqui estou” num Magnificat, num caudal de palavras que inunda o mundo para dar voz ao grito dos pobres e cobrir a terra de justiça, de paz e de esperança. E se Paulo manda as mulheres ficarem caladas (1Cor 14,34), o faz depois de ter dito que, nas assembleias, elas também profetizam (1Cor 11,5).
Paulo desmasculiza a si mesmo deixando de buscar com os sacerdotes do Templo decretos de censura e repressão para aqueles que não observam a Lei. Quando apresenta Júnia – junto com o marido Andrônico – como aqueles “que se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo” e Febe como diácona de Cencreia, e Áquila e Priscila: “meus cooperadores em Cristo Jesus” e Maria, Trifena e Trifosa: “dedicadas à obra do Senhor” e Pérside: “a amada”! Todos anéis preciosos de comunhão eclesial (cf. Rm 16,1-16). Infelizmente, "Júnia" tornou-se, séculos mais tarde, "Júnias" porque era inaceitável que uma mulher fosse chamada de apóstolo, enquanto ainda hoje para Febe se reserva a tarefa de um genérico: “a qual serve”.
A obra de Lucas começa com Zacarias e termina com Paulo, que abandona o poder do Templo em favor de tornar-se diácono numa casa que não é sua (cf. At 28,30). Justamente como as mulheres que, no mundo bíblico, não herdando dos pais, eram ecônomas, ao serviço da casa, nunca proprietárias. E nem eram proprietárias dos filhos, mas os traziam ao mundo para garantir a descendência e a memória do nome dos pais. Isto é o que Paulo faz com o seu celibato: não gera filhos para si, mas se dirige aos Gálatas dizendo: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós!" (Gl 4,19). O apóstolo erroneamente considerado misógino não tem propriedade, mas vive da gratuidade, se coloca nas condições materiais e morais em que viviam as mulheres: vai morar num cômodo alugado em Roma e ali compartilha uma mesa de acolhimento, de palavra e de ágape fraterno. De pão eucarístico.
Desmasculinizar a Igreja hoje, portanto, não significa simplesmente dar às mulheres acesso, em virtude da sua igual dignidade batismal, a cargos institucionais que continuam a ser prerrogativas dos homens, mas responder à exigência de um autêntico testemunho cristão. Aquele que Luce Irigaray indica como: “uma relação que nunca é exclusiva de alguém, nunca pode ser apropriada por apenas uma pessoa” (All’inizio Lei era p. 14). A desmasculização comporta uma conversão, uma mudança de linguagem, de estilo, de costumes e de mentalidade, um novo rosto da Igreja que hoje surge com toda a sua urgência. Ser não apenas crentes, mas também credíveis, como dizia o juiz Livatino.
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“Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher”. A desmasculização pede uma conversão. Artigo de Rosanna Virgili - Instituto Humanitas Unisinos - IHU