08 Novembro 2024
No dia 1º de outubro, o Conselho Canadense de Igrejas (CCC, na sigla em inglês) e o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) realizaram o webinário “Teologia e inteligência artificial: perspectivas sistemáticas e denominacionais”.
O resumo é de Manuel David Morales, publicado em AI and Faith, 30-10-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O objetivo era analisar os desafios impostos pela IA generativa e pelo transumanismo para aspectos teológicos como a personalidade e a imagem de Deus, o significado da Encarnação e a Trindade.
O evento foi iniciado pelo Pe. Moussa Wahib, da Igreja Copta, que é copresidente do Grupo Fé e Ciência, do CMI. Em seguida, o Pr. Peter Noteboom, secretário-geral do CCC, e o Dr. Manoj Kurian, diretor da Comissão das Igrejas sobre Saúde e Cura, do CMI, deram as boas-vindas e agradeceram às pessoas participantes.
Depois, foram feitas cinco apresentações por especialistas, seguidas de um debate sob a moderação do Rev. Dr. Peter Kuhnert, do CMI.
Publicamos aqui uma síntese dos principais tópicos abordados.
Rev. Dr. Gayle Woloschak (Northwestern University)
- Aprendizagem de máquina é o processo de usar grandes quantidades de dados para melhorar o modo como as máquinas “aprendem” (melhoram o desempenho sobre alguns conjuntos de dados) para tarefas específicas, como filtragem de e-mail, reconhecimento de fala/padrões e análise de conjuntos de dados científicos.
- A IA utiliza computadores e máquinas para imitar as capacidades de resolução de problemas e de tomada de decisão da mente humana, que podemos encontrar em aplicativos de reconhecimento facial, no ChatGPT, em assistentes de voz e outros.
- O transumanismo revela visões da mente fora do corpo a ser “uplodeada” (instalada) em chips de computador ou até mesmo conservada em caixas específicas a fim de fazer parte de uma mente coletiva.
- Características únicas em pessoas (não presentes na IA) são: desenvolvimento da cultura, linguagem para fins de relacionamento, realização do ser e agência responsável, entre outras.
- Duas características adicionais que encontramos apenas nos humanos são a encarnação e a criatividade. A primeira é importante, e os Padres da Igreja, como Atanásio, o Grande, e Gregório de Nissa, a defenderam. A última pode ser concebida como um dom aos humanos como imagem de Deus.
- A tecnologia da IA é um produto da criatividade humana singular, enquanto a IA em si mesma não é criativa da mesma forma que os humanos. De fato, a tecnologia da IA também é um produto da criatividade humana singular, embora também seja propensa a vieses, dado os dados de entrada (input).
Bispo Dr. Heinrich Bedford-Strohm (Conselho Mundial de Igrejas)
- O problema crucial é até que ponto a produção tecnológica destinada a aprimorar os humanos é conciliável com a convicção de que os seres humanos são criados à imagem de Deus.
- De um ponto de vista biológica (como o que Yuval Harari reivindica), os seres humanos são vistos como uma série de algoritmos. No entanto, isso é bem diferente na visão cristã, na qual Deus nos dá domínio sobre as obras de suas mãos, embora ainda sejamos inferiores.
- Como foi apontado pelo teólogo Karl Barth, os seres humanos só podem ser compreendidos se forem interpretados a partir da humanidade de Jesus. Então, esse quadro revela duas características cruciais nos humanos: a relacionalidade e a vulnerabilidade.
- O sofrimento e a imperfeição precisam ser incluídos na imagem dos seres humanos; assim, a IA é um meio de aliviar o sofrimento, e não de nos aperfeiçoar.
- A passagem bíblica sobre a árvore da vida da qual não é permitido comer (Gênesis 3) é um símbolo da vontade amorosa de Deus de nos proteger do esforço para sermos eternos (aspiração que é comum em várias fantasias de IA).
- A conclusão é que a IA não tem um significado religioso, mas é apenas um instrumento para auxiliar e ajudar outras pessoas com responsabilidade.
Reverendíssimo Dr. Aristarchos Gkrekas (Universidade Nacional Capodistriana, de Atenas)
- A partir de uma perspectiva ortodoxa, Gênesis 2,7-9 oferece um relato do início da relação entre o Deus Trinitário e a humanidade.
- Deus criou a humanidade à “Sua imagem”; isto é, racional e autônoma, alma e corpo como uma unidade, e “semelhança”, ou a melhor semelhança possível da virtude por meio da vida em Cristo.
- Cristo é a encarnação da Palavra de Deus. Então, assim como a Igreja é o corpo de Cristo, os seres humanos podem experimentar a teose-deificação na vida da Igreja para finalmente receberem o dom da salvação e da imortalidade.
- Para o transumanismo, sustentado por uma visão apocalíptica da IA, uma realidade digital ofereceria aos seres humanos uma alegria e um bem-estar ilimitados, centrados em um paraíso e em um Éden tecnológico.
- Sob o marco acima, os (trans-)humanos serão capazes de fazer o download de sua consciência em máquinas, resultando em habilidades mentais aprimoradas e imortalidade por meio de uma replicação ilimitada e de melhorias físicas, como a autocura, a flexibilidade, a computação rápida etc.
- O transumanismo deifica a IA ao considerar uma possível superinteligência que teria uma capacidade perceptiva e um conhecimento muito maiores do que os seres humanos. Então, essa visão parece ser uma nova forma de gnosticismo, um gnosticismo digital ou algorítmico.
Dr. Cory Labrecque (Universidade Laval)
- De acordo com o Papa Bento XVI, precisamos considerar que a tecnologia não é neutra, porque revela as aspirações da humanidade em relação ao desenvolvimento a fim de superar as limitações materiais.
- A tecnologia deve ser concebida como uma ferramenta para auxiliar a humanidade. Se a tecnologia se tornar mais importante do que os usuários humanos, a ponto de supervalorizarmos o instrumento e elogiarmos a funcionalidade, surge o risco de desvalorizar a dignidade humana.
- Para o transumanismo, características humanas como a inevitabilidade do envelhecimento e da morte, capacidades intelectuais flutuantes e fragilidade emocional, entre outras, são vistas como deficiências.
- No entanto, a partir de uma perspectiva cristã, a limitação humana tem seu valor. Um exemplo paradigmático é a narrativa da Ressurreição, na qual Jesus ainda está ferido após sua ressurreição, ou seja, Jesus ressuscitado seria reconhecido pelas marcas de um corpo limitado.
- Em relação à inserção de tecnologias de IA nas relações humanos (por exemplo, robôs companheiros e avatares virtuais de entes queridos falecidos), há várias questões em aberto.
- Em todo o caso, qualquer discussão sobre IA em relacionamentos deve abordar os benefícios e as limitações do uso dessas tecnologias. Além disso, esses problemas também nos convidam a revisitar ideias teológicas tradicionais sobre cuidado e assistência, sobre o que constitui a personalidade humana e sobre o que há em nós que devemos nos esforçar para preservar.
Rev. Dr.ª Tracy Trothen (Queen’s University)
- As tecnologias de IA em relacionamentos não só têm efeitos físicos positivos, mas também emocionais, cognitivos, morais ou até mesmo espirituais. Há estudos sobre chatbots, como o Replika, que mostraram que eles têm efeitos positivos, tornando as pessoas menos solitárias.
- Determinar até onde devemos ir com a IA depende do que entendemos por “normal”; no entanto, a linha entre o normal e o além é tênue. Cirurgias cardíacas inicialmente eram chocantes, devido ao significado sagrado que aquele órgão tinha, mas hoje são normais. No futuro, esse seria o caso com os agentes de IA como os chatbots, para criar avatares de entes queridos falecidos.
- A dificuldade é encontrar agentes de IA que não sejam como nós nem como Deus, porque eles são como nós e nos lembram de algumas qualidades divinas. No fim, esse problema exige que nos afastemos de nós mesmos e realmente queiramos nos encontrar e conhecer uns aos outros.
- Uma abordagem mais relacional também pode ser útil para ir além das visões apocalípticas ou utópicas da IA, geralmente popularizadas em filmes como “O Exterminador do Futuro” e “Eu, Robô”.
- Como foi demonstrado com o Efeito Eliza, nos anos 1960, temos uma tendência a antropomorfizar os modelos de IA, motivados principalmente por querer entender com base em limites sólidos.
- Se as tecnologias de IA têm benefícios positivos, elas podem nos ajudar a cuidar uns dos outros (por exemplo, em clínicas, hospitais ou mesmo em nossas casas apenas). No entanto, o desafio é não abrir mão da nossa responsabilidade social de cuidar, que a Igreja também sustenta, nem de uma vida relacional.
Na discussão, várias ideias (não necessariamente convergentes) foram apontadas.
1. Seria importante ir além das visões apocalípticas da IA, a fim de buscar formas nas quais a IA poderia aprimorar, em termos de relacionalidade, o cuidado uns com os outros sem ignorar os nossos deveres. Além disso, uma visão útil da IA nos permite ter discussões adequadas na sociedade civil sobre suas possibilidades, limites, riscos e também regulamentações. No entanto, temos de estar cientes de que os dados que alimentam esses algoritmos podem ser tendenciosos, o que dificulta a obtenção de regulamentações.
2. Outro ponto importante é como devemos entender o que é “perfeito” no contexto das tecnologias de IA que buscam nos “aperfeiçoar”. Primeiramente, para o cristianismo, o significado de “perfeição” é um certo tipo de perfeição moral (Mateus 5,48), sendo diferente do significado usado no transumanismo. Por outro lado, a partir de uma abordagem mais prática, poderíamos mencionar que, na medicina, várias aplicações de IA buscam obter diagnósticos melhores e tornar os médicos melhores, mas há algumas coisas que precisam ser supervisionadas pela expertise humana. Em todo o caso, a partir de uma perspectiva da justiça social, também devemos nos perguntar quais aplicações médicas da IA são acessíveis a todos.
3. Em relação a imagens e vídeos falsos feitos usando a IA generativa, seria importante seguir em uma direção na qual possamos lidar com esse problema, que tem várias implicações sociais e políticas. Precisamos recorrer a recursos para verificar arquivos de mídia a fim de ter certeza de que foram gerados por IA ou não. Essas ferramentas não são perfeitas, mas torná-las disponíveis de forma fácil e gratuita para todos, ou mesmo regular os vídeos que são postados, seria um grande passo à frente.
4. Aspectos nos quais a imagem de Deus reside são a criatividade, o amor e a relacionalidade. Ainda mais, alguns painelistas alegaram que algumas dessas características são exclusivas dos humanos. Além disso, foi abordada a possibilidade de a IA substituir clérigos humanos, implicando que, a partir de várias histórias verdadeiras compartilhadas por alguns dos painelistas, parece que a melhor opção seria encontrar um equilíbrio. Seria válido (e até recomendável) usar robôs para a assistência, mas não para a substituição.
5. Também foram abordadas ideias sobre como lidar com possíveis crises futuras decorrentes da tecnologia. Primeiro, deve ser obrigatório incluir o reconhecimento de falhas na tecnologia, a fim que possamos antecipar quando erros serão cometidos. Além disso, dadas as potenciais implicações negativas em uma escala política e mundial dessas tecnologias, precisamos nos perguntar qual é a responsabilidade das comunidades de fé. Sabe-se que as Igrejas são uma forte fonte de marcos éticos; no entanto, pode ser importante encontrar estabilidade considerando diferentes éticas, para que possamos definir uma ética mais geral que seja capaz de ser aplicada e interpretada por meio dos direitos humanos e do direito internacional.
6. Por fim, os painelistas analisaram o impacto da IA no meio ambiente. Sabemos que grandes fazendas de dados que têm uma extensa pegada de carbono são necessárias para a IA. No entanto, também sabemos que existem importantes aplicações da IA para resolver problemas ambientais. Aqui, a recomendação é buscar um equilíbrio e avaliar as vantagens e as desvantagens da IA em termos de fabricação, uso e desenvolvimento da própria IA.
Reflexão Esse webinário foi uma iniciativa muito revigorante para discutir algumas das questões atuais da IA. Muitos de nós apreciamos isso. Aqui, enfatizo a importância de manter esses eventos em formato online, já que pessoas de outros países, e em particular do Sul Global, podem participar.
Além disso, dadas as implicações globais e transversais das tecnologias de IA, também parabenizo pela importância de debater a IA em um ambiente ecumênico e multidisciplinar.
Agora, a partir da minha perspectiva particular como astrofísico cristão que trabalha no Sul Global (México), devo chamar a atenção para o fato de que, em prol de uma perspectiva pluralista, alguns temas cruciais não devem estar ausentes nas discussões sobre IA.
- Primeiro, a importância e a relevância da democratização das tecnologias de IA. Aqui, movimentos como a Ciência Aberta (incluindo aspectos como dados abertos, códigos-fonte abertos etc.) são relevantes, porque ajudam a avançar sob a lente da equidade social. Além disso, uma pergunta crucial a ser feita é: como podemos interpretar e promover teologicamente essa virada no desenvolvimento da tecnologia de IA e na pesquisa básica?
- São necessárias análises éticas sobre como as megacorporações transnacionais de IA são propensas a manter estruturas de poder que, em muitos aspectos, marginalizam certas regiões em relação aos amplos benefícios obtidos da IA. Vivemos em uma era em que há um enorme desequilíbrio de poder entre o Norte Global e o Sul Global, mas, ao mesmo tempo, estamos mais conscientes dos limites da modernidade e da relevância da pluralidade e da relacionalidade no mundo.
- A fim de abordar problemas como os mencionados acima, é realmente importante evitar, a todo o custo, a geração de conhecimentos defeituosos, desleixados e incompletos sob esquemas neocoloniais como a “ciência paraquedista”. Qualquer discussão internacional sobre IA deve considerar um amplo espectro de especialistas em termos de suas etnicidades e, particularmente, aqueles que fazem pesquisas em países do Sul Global.
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Igrejas realizam webinário sobre Teologia e Inteligência Artificial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU