22 Dezembro 2024
A atualidade atravessa questões humanitárias que, longe de serem novas ou particularmente exóticas, necessitam de uma urgente reflexão, verificando-se o diálogo inter-religioso um importante e basilar escopo do debate. Faustino Teixeira, um dos grandes especialistas e investigadores em teologia, religião e literatura do Brasil, medita nesta entrevista sobre o papel das instituições no estabelecimento e na preservação da paz religiosa, bem como revela que caminhos – teológicos ou não – são essenciais para esse fim.
A entrevista é de Maria Pinho, publicada por IPM Monthly, 03-10-2024.
A carreira de Faustino Teixeira na área da Teologia e das Ciências da Religião é vasta e inspiradora. Começando pelo princípio, o que é que o contribuiu para se dedicar a estas áreas?
Tudo foi uma bela coincidência. Tive a chance de poder cursar simultaneamente aqui em Juiz de Fora, Minas Gerais, os cursos de filosofia e ciências da religião simultaneamente: a filosofia pela manhã e as ciências da religião à noite. Isto na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Sempre estive motivado a lidar com as ciências humanas: um traço que vem da influência familiar. A vocação para a teologia também veio estimulada por um grupo de estudantes, de âmbito nacional, que se reuniu quatro vezes por ano sob a supervisão do teólogo João Batista Libânio. Concluí os dois cursos em 1977. Veio em seguida a chance de continuidade dos estudos com o mestrado. O projeto era um mestrado em ciências sociais na USP, mas por incentivo de um grande amigo, que se tornou meu orientador, o teólogo João Batista Libânio, acabei por me transferir para o Rio de Janeiro, onde fiz o meu mestrado em teologia, entre 1978 e 1982, assumiu igualmente a docência no ensino religioso e teológico.
Fui em seguida para o doutorado de teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma, onde fiz meu doutorado em teologia dogmática, abordando o tema das Comunidades Eclesiais de Base. Defendi uma tese em 1985: uma tese de 1.100 páginas. Retornei à PUC-Rio como professor de teologia, permanecendo ali até 1992. Um pouco antes, em 1989, fiz um concurso para a Universidade Federal de Juiz de Fora e comecei a lecionar numa universidade pública o tema de teologia das religiões. Com o tempo, passei a ministrar cursos de pós-graduação em ciências da religião: diálogo inter-religioso, teologia do pluralismo religioso e mística comparada das religiões. Fiz a sequência do pós-doutorado em teologia na mesma Pontifícia Universidade, com a supervisão de Jacques Dupuis (1997-1998). Estava concentrado no tema da teologia e do pluralismo religioso. Tive ainda a oportunidade de fazer um estágio sênior em Veneza, com os franciscanos, no Instituto Ecumênico São Bartolomeu, sob a supervisão de Marco Dal Corso (2015-2016).
Eu me aposentei na UFJF em 2017. Desde então, ministro cursos on-line sobre literatura e religião, tendo-me ocupado com os seguintes autores: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Fernando Pessoa. Os cursos livres e gratuitos são oferecidos pelo Instituto Humanitas da Unisinos - IHU, gerido pelos jesuítas. Estou igualmente envolvido em projetos de debates de filmes no IHU: Filmes em Perspectiva e num portal de espiritualidade: Paz e Bem.
O diálogo inter-religioso é também um dos escopos de sua investigação, tópico, de resto, deveras pertinentes e nevrálgico na atualidade. Enquanto professor e investigador, em que medida é que as universidades restritas para o fortalecimento do pluralismo religioso e para o incentivo ao diálogo teológico entre diferentes opiniões?
O diálogo inter-religioso tem sido, de fato, objeto de minhas reflexões há décadas. Tenho um carinho muito especial pelo tema e fico feliz de observar que o tema vem ganhando cidadania nas universidades do Brasil. Não é um tema muito presente nas faculdades de teologia, infelizmente. Nessas faculdades, abre-se um pequeno espaço para o ecumenismo, em disciplinas de dois créditos, na maioria das vezes. Agora, nas ciências da religião, percebe-se um interesse mais vivo pelo tema do diálogo inter-religioso.
Há aqui no Brasil alguns programas, como na cidade de Recife, na universidade católica, gerida pelos jesuítas, onde o tema ganha muita importância. Não há como falar hoje em teologia ou ciências da religião sem levar em conta o tema do pluralismo religioso. Trata-se de um paradigma fundamental neste século XXI. Tive uma grande alegria e tipo de ter sido orientado por uma das maiores autoridades mundiais sobre o tema, o jesuíta Jacques Dupuis, que no fim da vida, infelizmente, sofreu muitas dificuldades com a Congregação para a Doutrina da Fé, sobretudo quando esteve sob a presidência do cardeal Ratzinger. Vejo que no campo da Igreja católica, encontramos ainda muitas dificuldades para avançar na reflexão sobre o tema, e Papa Francisco é um maravilhoso portador de coragem para levar à frente essa discussão e, sobretudo, essa experiência de abertura ao mundo do outro.
O diálogo inter-religioso não é raro, pois envolve aspectos que não só envolvem aspectos teológicos, mas culturais e políticos. Como é que a Teologia pode ajudar a construir pontes entre essas dimensões distintas?
No processo de minha reflexão sobre o diálogo inter-religioso houve vários momentos de discernimento. Trabalhei inicialmente especificamente com o tema estrito do diálogo entre as religiões. Publiquei dois livros sobre o tema e vários artigos. Aos poucos, fui-me dando conta de que a perspectiva do diálogo inter-religioso era ainda restrita, uma vez que excluía de sua portada a questão do diálogo de espiritualidades ou do diálogo inter-convicções, que não se restringia ao campo das religiões.
Faço sempre uma distinção precisa entre espiritualidade e religião. A espiritualidade tem a ver com qualidades do espírito humano, como a hospitalidade, a compaixão, a fraternidade, a cortesia e a atenção. O que percebemos com clareza é que muitas pessoas são portadoras de espiritualidade mesmo não adotando uma religião em particular, essas pessoas devem estar envolvidas pelo desafio do diálogo. Mais recentemente, fui-me dando conta que mesmo o diálogo de espiritualidade restringe-se ao âmbito do humano, e hoje, com a nova consciência planetária e a percepção do desafio da Terra, nos damos conta que estamos inseridos numa teia vital, muito mais ampla que uma teia humana. Assumimos, então, a perspectiva do diálogo inter-espécies, que é um diálogo que amplia a consciência do “nós”, para além do humano. Trata-se da nova consciência de habitabilidade na Terra, que implica a abertura para “assembleias de habitabilidade multiespécies”, para utilizar uma rica expressão da antropóloga Anna Tsing. Hoje temos viva a consciência de que somos todos, humanos e não humanos, envolvidos numa mesma teia de habitualidade, numa dinâmica inter-relacional singular e promissória. Vejo com muita clareza hoje que não pode haver diálogo autêntico sem essa abertura planetária.
Vivemos, de fato, numa época em que a globalização parece paulatinamente concurso a políticas, culturais e também religiosas. Na sua perspectiva, quais são os principais desafios para o diálogo inter-religioso hoje, e como é que eles poderão ser surpreendidos ou superados?
Vivemos tempos muito difíceis, envolvidos por dificuldades precisas no âmbito da “pegada” humana sobre a Terra. O que mais verificamos, por toda parte, é um “desgaste da compaixão”, para utilizar uma expressão precisa do fotógrafo brasileiro, Sebastião Salgado. Vivemos num tempo de “perturbação” da Terra, que hoje vem sendo nomeado como o tempo do Antropoceno. Estamos diante de riscos tremendos que podem abreviar o tempo do ser humano na Terra, especialmente com o drástico aumento climático e outras tantas catástrofes que ocorrem em razão de nossa presença necrófila na Terra. O que falta é uma reverência fundamental para com todos os seres, envolvida aqui também na Terra. O diálogo inter-religioso firma-se como passo fundamental em favor do respeito à dignidade dos outros, dignidade da sagrada das outras tradições religiosas. Vivemos, infelizmente, tempos de afirmações identitárias, onde cada tradição religiosa firma-se tranquilamente no seu território e exclusão de sua comunhão o mundo da diferença. O grande desafio é vencer essa altercação e buscar caminhos dialogais, que possam respeitar a honradez essencial do outro. O diálogo se faz na busca comum de uma fraternidade, em profundo respeito com o mistério abissal que está presente no território do outro. Há que “tirar as reservas” para avançar com respeito no mundo da alteridade.
Neste mundo dito globalizado, mas também cada vez mais polarizado, em que a migração (forçada ou livre) é uma realidade crescente, encontrar-se-á o pluralismo religioso sob ameaça?
Evidentemente. O diálogo vem sempre ameaçado quando as polarizações se firmam de forma cega. No caso, o que predomina é a “solidão dos que têm razão”. O polo identitário vem agudizado e os outros demonizados, seja através de sua anulação pela palavra ou mesmo pela violência viva. Trata-se do domínio dos fundamentalismos. Eu sempre digo que atualmente a violência nasce nos púlpitos, sendo gerada pelos próprios pregadores religiosos, que perfilam uma identidade traçada pela exclusão. Como diz com razão José Saramago, estamos diante do “fator Deus”, do uso estendido do nome de Deus para implementar a violência contra as outras tradições religiosas. Não há salvação para a humanidade a não ser quando puder considerar a pluralidade como um valor indiscutível e irrevogável. Como disse recentemente o Papa Francisco, “a diversidade é bela”. Há que se abrir com atenção e generosidade para esse desafio essencial.
Haverá possibilidade de o pluralismo religioso ser compatível com este certo proselitismo que parece querer instalar-se?
Não há possibilidade de convivência entre o pluralismo e o proselitismo religioso. Num mundo plural, há que ultrapassar a tônica proselitista, que se funda numa ideia problemática de que somente uma dada tradição religiosa é portadora da verdade, e que todas as outras tradições devem se encaminhar para ela. É o que eu chamo de “teologia do acabamento”, quando as outras tradições entram com a “vontade de Deus”, e a religião considerada verdadeira chega com uma resposta. É como se os povos estivessem vindo apenas com as mãos voltadas para Deus, mas que a resposta à sua ânsia estaria em outro lugar. Isso para mim é negar a alteridade essencial, o respeito sagrado à verdade diversa do outro. Em entrevista concedida pelo Papa Francisco ao jornalista e editor Eugenio Scalfari, em julho de 2013, ele sublinhou que o proselitismo é um “solene disparate”. Cresceu que o caminho que se abre para os cristãos, e também para os outros amigos, é o do conhecimento mútuo, da escuta comum, da hospitalidade e do conhecimento honesto do mundo que nos circunda. Diz ainda que o mundo “vem percorrido por estradas que nos avizinham e distanciam, mas o mais importante é que essas estradas nos conduzem ao bem”. Portanto, o valor máximo está na experiência do amor, do ágape. Ainda nesta entrevista, Francisco sublinhou que o ágape é “o único caminho indicado por Jesus para encontrar a via da salvação e das bem-aventuranças”.
Desse modo, no seu entender, é que as instituições acadêmicas e a investigação científica podem contribuir ativa e socialmente para a paz religiosa?
Penso que as instituições acadêmicas têm um papel fundamental de criar espaços precisos e garantidos para uma reflexão sadia e eficaz sobre o diálogo das culturas e das religiões. É uma grande contribuição que essas instituições podem fornecer aos formadores de opinião. Sabemos muito bem hoje em dia que não pode haver paz no mundo sem paz entre as religiões, e que a paz entre as religiões pressupõe o diálogo inter-religioso. É o que afirmou com sabedoria o teólogo Hans Küng, que exerceu um trabalho fabuloso, por várias partes do mundo, na defesa de uma paz mundial. Um trabalho semelhante vem sendo feito por importantes lideranças religiosas como o Papa Francisco e o Dalai Lama.
Sei que, a despeito da sua formação teológica – ou, quem sabe, dela derivada –, nutre um fascínio pela Mística. Poderá a Mística ser, com justiça, o caminho para o entendimento mútuo e a tolerância? Se sim, em que medida?
A mística inter-religiosa foi sempre uma das minhas maiores paixões. Dentre minhas últimas publicações encontra-se uma trilogia que envolve a mística inter-religiosa: Malhas da mística cristã; Mística islâmica e Mística zen budista (todos os livros publicados pela editora Appris). O grande encanto provocado pela mística é o de nos facultar a humildade face ao Mistério Maior, ao grande Enigma que envolve a nossa vida e caminhada. Trata-se de um Mistério que pode ser nomeado de várias formas, e ser vívido de maneiras variadas. A mística é marcada principalmente pela liberdade. Os grandes místicos foram verdadeiros arautos da liberdade, nunca se deixando aprisionar pelos territórios religiosos. Eles têm diante de si a grande paisagem de um Mistério Inaudito, diante do qual todas as narrativas são movidas e limitadas. Os místicos nos ajudam a treinar essa humildade, bem como uma busca que não se satisfaz com as paisagens garantidas e asseguradas. Eles são movidos por uma sede que é insaciável. Movido pela mística, o Papa Francisco pôde assinalar em entrevista com pe. Antonio Spadaro, ocorrida em 2013: “Se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem de incerteza, então não está bem (…). Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para uma dúvida. devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas”. Não há dúvida de que a mística fornece esse “agnosticismo” essencial, essa dúvida que favorece a colocação das tradições em busca permanente, sempre à escuta dos caminhos inusitados e alvissareiros do Mistério sempre maior.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A espada na pedra”: a teologia e o diálogo inter-religioso nos nossos dias. Entrevista com Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU