15 Outubro 2024
Os gritos, os corpos queimados e aquele sofrimento infinito que te despedaça. A história de Deir al-Balah, de Rita Baroud, uma estudante de Gaza.
O artigo é de Rita Baroud, estudante palestina, publicado por Repubblica, 14-10-2024.
Nesta terra cheia de dor, no centro de Deir al-Balah, onde o sofrimento parece nunca ter fim, Gaza acordou para um novo pesadelo. Não passa um dia sem que esta cidade se afogue num mar de sangue e destruição, e hoje não foi diferente. Foi mais assustador – foi o amanhecer do inferno.
No Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, num pátio onde se reuniam aqueles que já não tinham casa, aconteceu algo que vai além da imaginação. As tendas das famílias deslocadas foram consumidas pelas chamas após serem atingidas pelos bombardeios militares israelenses. O fogo destruiu tudo, sem piedade.
"Nossa carne é barata para vocês? O que é mais brutal do que ver nossa carne queimando em uma transmissão ao vivo? O que é preciso para vocês fazerem alguma coisa?"
— FEPAL - Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) October 14, 2024
Jornalista Yousra Aklouk fala ao mundo após palestinos serem queimados vivos no massacre em hospital de Gaza. pic.twitter.com/yF0AAyCGqb
Eu estava acordado, observando a noite interminável se desenrolar. O som das explosões literalmente me ensurdeceu, o chão abaixo de mim tremia a cada detonação. O céu acima de Deir al-Balah iluminou-se com chamas espessas e gritos agudos podiam ser ouvidos de longe. São gritos aos quais estou acostumada e que aos poucos vão deixando uma ferida profunda no meu coração que nunca vai sarar. Uma explosão após a outra, e o fogo se espalhou com uma velocidade vertiginosa, consumindo mais de trinta tendas, devorando corpos, devorando o ar, deixando para trás apenas cinzas e gritos.
O fogo era incontrolável. As equipes da defesa civil não conseguiram chegar ao local; as estradas foram bloqueadas e os recursos eram quase inexistentes. Não havia água nem equipamento para apagar as chamas. Mas o povo não desistiu. Os deslocados tentaram com todas as suas forças apagar o fogo com cobertores destinados a aquecê-los nas duras noites de inverno, em mais uma ironia macabra. O fogo venceu: cobertores e corpos queimaram e só restaram a fumaça e o som inaudível da agonia.
Não é a primeira vez que o exército israelense ataca esta área; é o sétimo. Como se estivessem determinados a apagar todos os vestígios de vida aqui. Eles sabiam que este lugar era o lar de pessoas deslocadas, que fugiam da morte. Eles sabiam que os jornalistas se reuniam aqui em grande número para cobrir os massacres. Pela primeira vez, vi jornalistas chorarem como crianças, chorarem com uma dor indescritível, chorarem por uma cena demasiado esmagadora para ser compreendida.
Até agora, o número de mortos chegou a quatro, mas os números já não importam. Cada minuto que passa significa almas perdidas. O número de feridos ultrapassou quarenta. Entre os mortos estão crianças e mulheres: seus corpos derreteram no fogo como velas. Foram reduzidos a nada, a meros restos que já não se assemelham aos seus rostos ou aos seus sonhos. Os corpos desapareceram, os mortos não têm mais corpos e alguns ainda estão desaparecidos. O incêndio não deixou nada para trás, nem mesmo o próprio hospital, que sofreu grandes danos.
Liguei para meu amigo Mohammed, que mora perto do Hospital dos Mártires de Al-Aqsa. Sua voz tremia, como se ele estivesse chorando sem emitir nenhum som. Ele me disse com a voz entrecortada: “Eu estava lá. Tentamos apagar o fogo, mas não conseguimos fazer nada. Havia um homem levantando as mãos, gritando por socorro, mas ninguém conseguia alcançá-lo. Observamos enquanto ele queimava lentamente, o fogo o consumindo enquanto estávamos indefesos.” Suas palavras estavam cheias de dor e eu me senti impotente. Eu não tinha nada a dizer. Como você consola alguém que testemunhou esse pesadelo? Como você descreve essa dor? Ficamos em silêncio por um longo tempo, até que a ligação terminou.
O que tornou esta noite ainda pior é que não foi a única tragédia. Em Nuseirat, ocorreu outro massacre. A Escola Al-Mufti foi atingida por bombardeios brutais, resultando em 22 mortes, incluindo 15 crianças e uma mulher. Mais de 80 ficaram feridos, alguns em vida ou morte, e os números continuam a aumentar.
Esta noite foi cheia de sangue e destruição – 62 mortos em apenas algumas horas, 200 feridos, como se Gaza estivesse presa num ciclo interminável de tormento contínuo. Desde o início desta guerra, em 7 de outubro, até agora, o número de mortes atingiu. 42.289 e quase 100.000 ficaram feridos. Estes números não são apenas estatísticas – são vidas, histórias, famílias que perderam tudo.
🇵🇸🇮🇱 Israel bombardeou esta noite um acampamento cheio de famílias em Gaza, queimando-as vivas. A internet está cheia de imagens chocantes que aqui não publicaremos. Quando tempo mais vai durar a paciência do mundo ante um holocausto que se desenvolve diante os olhos de todos? pic.twitter.com/DciRCLavrW
— geopol.pt (@GeopolPt) October 14, 2024
Desde a madrugada acompanho as notícias, mudo de canal e sinto um profundo constrangimento. Como a mídia pode tratar tal evento com tanta frieza? Alguns canais mencionam este incidente horrível numa só frase, nada mais: “Um incêndio irrompeu nas tendas de pessoas deslocadas no Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, no centro de Gaza”. E é isso. Como se fosse um incidente passageiro, algo trivial. Como toda essa dor pode ser reduzida a apenas uma linha? Onde está a humanidade na cobertura mediática?
Isto não é apenas um incêndio. Não se trata apenas de chamas consumindo as tendas. Isto é um massacre, um genocídio sistemático contra civis inocentes, outro crime que se acrescenta à longa lista de crimes cometidos por Israel contra o nosso povo. Como o mundo pode permanecer em silêncio? Como podem estas almas, ardendo dia após dia, serem esquecidas?
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O inferno de fogo de Deir al-Balah e a voz do meu amigo Mohammed: “Eu vi um homem queimando lentamente”. Artigo de Rita Baroud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU