09 Outubro 2024
Como investigadora de crimes de guerra veterana, Donatella Rovera tem grande experiência em países em conflito, mas reitera por mais de uma vez: nunca viu nada parecido a Gaza. O preço que os civis palestinos pagaram sob as bombas israelenses, durante este ano, é o mais alto que já observou em qualquer outro lugar. Repete que Israel sabe o que está fazendo e que a comunidade internacional consente.
Rovera enumera a série de crimes que ela e outros colegas da organização em que trabalha, a Anistia Internacional, conseguiram registrar na guerra devastadora que Israel trava na Faixa de Gaza, após os ataques do Hamas de 7 de outubro de 2023: de bombardeios indiscriminados a ataques desproporcionais para impedir que a ajuda humanitária chegue à população civil.
Tel Aviv não permite a entrada de investigadores como ela no enclave palestino, então, busca aproveitar sua experiência anterior lá e na Cisjordânia ocupada para fazer o trabalho remotamente, com o apoio de quem está na área e materiais como as imagens de satélite e as fotografias dos restos de munições entre os escombros. “É muito trabalhoso, mas é possível”, afirma em conversa com El Diario.
A entrevista é de Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 07-10-2024. A tradução é do Cepat.
Da Ucrânia ao Sudão, a lista de países em conflito nos quais você trabalhou é longa. Qual é o seu balanço deste ano de guerra em Gaza?
Tem ocorrido operações militares israelenses muito brutais em Gaza, mas isto é completamente sem precedentes, em Gaza e no mundo inteiro nos tempos modernos. Mais de 40.000 pessoas morreram em Gaza. Estamos falando de dezenas de milhares de crianças, mulheres, idosos, homens que não eram combatentes. Nos tempos modernos, nunca vimos uma porcentagem tão alta de civis mortos, um número tão alto de trabalhadores humanitários, de profissionais da saúde...
O preço que os civis pagaram neste conflito é muito mais alto do que já vimos em qualquer lugar outro. É um território com 60 km de comprimento e entre 6 e 12 km de largura, é muito pequeno e tem uma densidade populacional muito alta. As imagens de satélite não mentem, são fatos. Não há outro território em guerra com tal porcentagem de destruição de casas, locais comerciais, espaços públicos, infraestruturas, ruas, hospitais. Não há nada protegido.
Isto está acontecendo com o consenso da comunidade internacional: há países que falam e não fazem nada e outros países que nem sequer falam e apoiam esse nível de uso da força militar de forma completamente desproporcional. Na guerra, nem tudo é permitido. Existem leis. Atingir alvos militares é permitido, mas isto é algo que nunca vimos antes em termos de porcentagem de destruição e de habitantes mortos.
Existe também o fato de se impedir a entrada de ajuda humanitária. As pessoas não têm nada para comer, nem água limpa para beber, pois não há permissão. Não há absolutamente nenhuma razão objetiva para isto. Vidas estão sendo destruídas hoje e no futuro, porque existem crianças que nascem fragilizadas. Muitas pessoas estão morrendo de doenças que não tem nada a ver com a guerra e que poderiam ser facilmente curadas. Contudo, não é possível porque tem alguém que decide que não entre o que é necessário para salvá-las. Já vi isto em vários lugares, mas não neste nível.
Apesar do alto número de mortos e da destruição generalizada, Israel costuma dizer que o que está atacando em Gaza são alvos militares.
As mais de 10.000 crianças [mortas] não eram alvos militares. Israel tem uma forma de agir e não é a primeira vez. Eu estive investigando em Gaza, no início dos anos 2000. A mesma coisa acontecia na guerra de 2008-2009. Era em um nível menor do que agora, mas o fato de atingir uma casa cheia de civis e depois dizer “ah, sentimos muito” acontece há décadas.
Quando se bombardeia um mercado, uma escola que abriga deslocados ou uma casa cheia de gente à noite com o objetivo de matar um ou dois combatentes, e com um determinado tipo de bomba, sabe-se, matematicamente, que isto matará muitos civis. Israel segue utilizando esse método anos depois, por isso não é credível. Sabe perfeitamente o que está fazendo e continua com isto porque a comunidade internacional o permite.
Israel também costuma justificar os massacres com o argumento de que o Hamas utiliza civis como escudos humanos.
O quartel-general do Mossad fica localizado em um bairro residencial no norte de Tel Aviv. E é assim em outros países. Nem tudo é permitido na guerra. Quando se sabe que existe um alvo militar, é preciso calcular a proporcionalidade. Os ataques desproporcionais, mesmo que haja um alvo militar, são um crime de guerra.
Israel possui munições extremamente precisas, utilizou-as algumas vezes, mas não na maioria. Utiliza bombas com uma grande quantidade de explosivos e de um impacto muito maior, sabendo perfeitamente que vai matar muito mais gente porque a população está como sardinha em lata. Não é uma surpresa. Escolhe agir dessa forma. Gaza é um dos locais mais densamente povoados do mundo e agora a maioria da população está confinada em poucos lugares. Lugares onde Israel bombardeia.
Israel viola o direito internacional ao bombardear assim. Os países que vendem armas para Israel violam o direito internacional porque sabem perfeitamente como estão sendo utilizadas. Nós investigamos casos muito claros em que não havia alvo militar. Israel não demonstrou o contrário. Identificamos o uso de bombas de fabricação estadunidenses. Os Estados Unidos não só violam o direito internacional, como também as suas próprias leis que proíbem a venda de armas a países que não estão cumprindo o direito internacional. Em uma situação assim, não se deve enviar armas, mas agem assim.
Existe uma impunidade a longo prazo. É o que vemos também na forma como os soldados israelenses se comportam, filmando-se enquanto estão cometendo crimes de guerra, destruindo propriedades de civis. Mostram o seu rosto e o publicam nas redes sociais com o seu nome. É evidente que não estão preocupados em ser levados a julgamento. A nível internacional, não houve qualquer tipo de sanção por parte dos países que têm influência e que a poderiam utilizar, como com a Rússia ou outros países. O resultado é que esta impunidade gera mais violações.
Como investigadora, conseguiu entrevistar muitas vítimas este ano. Há alguma história de que se lembre de modo especial?
É muito difícil. Todos os dias há histórias de pessoas que fazem tudo o que podem para proteger os seus filhos e não conseguem. Médicos que têm suas casas bombardeadas e seus filhos mortos. Uma enfermeira que está trabalhando no hospital e seus filhos chegam mortos. São todos os dias. Ninguém está a salvo em qualquer lugar. É pior do que muitos dos conflitos em que trabalhei.
Você conhece bem a Cisjordânia, onde a violência dos colonos israelenses disparou neste último ano. Como analisa a situação lá?
O movimento dos colonos israelenses aproveitou a oportunidade e, em questão de semanas, conseguiu coisas na Cisjordânia que vinha tentando fazer há mais de 20 anos. Eles têm um apoio muito maior.
Trabalhei lá por mais de 25 anos. Os colonos inclusive me agrediram junto com outras pessoas enquanto tentavam retirar os palestinos de pequenas aldeias ao sul de Hebron e de outros lugares. Apesar de tornar a vida dessas comunidades impossível, não conseguiram tirá-los. Obrigaram povos inteiros a sair. Essas comunidades não existem mais. Há uma impunidade total e uma expansão brutal das colônias que nada tem a ver com a defesa.
A ocupação é completamente ilegal, dura desde 1967. O direito internacional permite a ocupação militar por períodos muito curtos, não por décadas. São mudanças muito difíceis de serem revertidas porque são fatos consumados.
A guerra está se estendendo para o Líbano, onde Israel também afirma que ataca alvos militares. O que vocês observam nesta intensificação dos ataques?
As possibilidades de investigar no Líbano são muito limitadas neste momento. Estamos muito preocupados porque observamos que embora tenha havido um número significativo de locais bombardeados por Israel que eram efetivamente alvos militares, muitos civis morreram. No ataque com pagers, as explosões ocorreram em qualquer lugar: eram alvos militares, mas havia civis ao redor, então, novamente é uma questão de proporcionalidade.
O perigo é muito alto. Agora, fala-se de uma invasão terrestre ao Líbano, que seria a quarta. Sempre que isso acontece, as consequências para a população civil são muito graves. Existem tensões que envolvem o Irã, o Iraque e a Síria, não apenas o Líbano. Tudo isto coloca em perigo civis em todos os lugares, inclusive em Israel.
Há pesquisas que sugerem que Israel, além de crimes de guerra, está cometendo crimes contra a humanidade. Você concorda?
É algo que estamos pesquisando dos dois lados, também por parte dos grupos palestinos nos ataques de 7 de outubro, em que também cometeram crimes graves, crimes de guerra e, potencialmente, crimes contra a humanidade. Outro crime, várias semanas atrás, foi matar seis reféns. Não se pode também esquecer que o Hamas, a Jihad Islâmica e outros grupos palestinos cometeram crimes muito graves de acordo com o direito internacional. Continuaram lançando foguetes indiscriminados contra Israel que podem matar qualquer pessoa. Por isso, pedimos um cessar-fogo. Temos de pôr fim a esta situação para proteger a população civil, que está em risco.
Israel também enfrenta um processo judicial por genocídio. Qual é a posição da Anistia Internacional acerca do uso deste conceito?
Provar um genocídio é algo muito complexo. Na Anistia Internacional não somos um tribunal. Estamos investigando a questão. Parece-nos que é necessário investigar a possibilidade de que seja um genocídio, mas essas determinações não são feitas de modo tão rápido. Precisam de um tempo. Nós não somos e não substituímos um tribunal, mas efetivamente é algo que precisa ser investigado.
Como você vivenciou o dia 7 de outubro? Era possível imaginar esse nível de destruição e violações de direitos humanos?
O dia 7 de outubro foi surpreendente em vários aspectos. O alcance dos crimes cometidos por grupos armados palestinos em um dia foi enorme. Ao mesmo tempo, o que surpreendeu é que tenham conseguido cometer esses crimes. Tiveram a possibilidade de cortar a cerca entre Gaza e Israel em muitos lugares e entrar. Os israelenses dessas cidades [do outro lado] nos dizem que telefonaram e ninguém apareceu.
Era muito evidente que, com o que aconteceu, a reação de Israel seria desproporcional. Já havia sido antes por muito menos. Agora, a maior parte de Gaza está destruída, mataram dezenas de milhares de civis e não há qualquer perspectiva de solução. Quanto mais durar, mais danos os civis sofrerão. Não existe uma solução militar. É necessário um acordo político. Há uma ocupação militar ilegal e isso tem de ser resolvido com acordos baseados no direito internacional, não com combates militares.
O fato de a comunidade internacional ser tão irresponsável ao permitir que o direito internacional seja violado desta forma, durante tanto tempo, desacredita o direito internacional não só neste conflito, mas em todo o mundo. O que dizer a outro país que lança ataques indiscriminados contra civis, quando se permite a Israel agir assim? Sempre haverá essa desculpa. É uma sabotagem do direito internacional em todo o mundo. E é criminoso e irresponsável.
Com todos esses atropelos constantes ao direito internacional, com exemplos como o da Rússia na Ucrânia...
Mas lá, sim, existem sanções.
Sim. O direito internacional é cada vez mais letra morta?
É evidente que esta falta de ação da comunidade internacional e este apoio a ações ilegais não fortalece o direito internacional.
No momento, não se enxerga o fim. O que a comunidade internacional deveria fazer para pressionar Israel, além do embargo de armas que você mencionava?
Sanções. Trazer a Gaza o que é necessário. Apoiar os esforços do Tribunal Penal Internacional (TPI). Certos políticos, inclusive do Governo dos Estados Unidos, expressaram desaprovação e até ameaçaram o procurador do TPI por solicitar mandados de prisão para líderes do Hamas e para o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel.
A influência deve ser usada para forçar Israel a permitir que os investigadores da ONU, o TPI e as organizações internacionais, como a Anistia Internacional, bem como os jornalistas, possam entrar em Gaza. Israel não quer um cessar-fogo. Não há nenhum tipo de pressão para que se chegue a um. Contudo, é a única forma de proteger a população civil.
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“Israel sabe o que está fazendo em Gaza e o mundo o permite”. Entrevista com Donatella Rovera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU