23 Setembro 2024
"Não há dúvida de que as experiências que giram em torno de Medjugorje também apresentam elementos de riqueza e intensidade, tanto no plano da prática de culto quanto no plano da vida dos sujeitos. Mas o fundamento desses frutos está claramente fundamentado no ritmo semanal das mensagens, que criam uma expectativa em relação aos videntes e às próprias mensagens", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado no seu blog Come Se Non, 22-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gostaria de propor algumas reflexões sobre a recente nota do Dicastério para a Doutrina da Fé, “A Rainha da Paz”, que traz, como subtítulo, uma referência à “experiência espiritual” ligada a Medjugorje. Percebo, desde os primeiros números, o esforço positivo do texto para se afastar de um modo clássico de pronunciamentos romanos. Obviamente, o preço pago por essa evidente novidade parece bastante alto. Isso não porque se deva necessariamente permanecer nas formas clássicas de expressão do magistério, mas porque as novas formas, como a que aparece claramente aqui, exigem formulações límpidas e deliberações não contraditórias. O texto aponta, já nas primeiras linhas, que essa “história” deve encontrar um fim. Mas o fim só é possível se forem ditas coisas lineares, e não se nos contorcermos em afirmações e negações sobre os mesmos temas. O documento tem uma estrutura muito clara (mas, em minha opinião, inadequada): após uma breve (mas não irrelevante) introdução, trata primeiro dos “frutos” e depois das “mensagens”. Quase como se quisesse sugerir que os frutos não dependem das mensagens e que as mensagens não condicionam os frutos. Mas vamos examinar melhor as três passagens.
Nos dois primeiros números tenta-se orientar a leitura geral, tanto pela exclusão de temas quanto pela especificação do uso dos textos. O fato de especificar não ser necessária a perfeição moral dos “videntes” e que com o termo “mensagens” sempre é preciso entender “supostas mensagens” é uma afirmação bastante ousada. O culto público no qual, no final, o “nihil obstat” é afirmado, é baseado nas mensagens, cuja ligação com Maria é deixada com um ponto de interrogação do tamanho de uma casa. Isso pode ser suficiente? É possível se safar com uma afirmação aparentemente marginal, mas decisiva (e repetida no n. 37), que supõe como toda a segunda parte do texto, integralmente dedicada ao exame das “mensagens”, estar ligada a uma “presunção” (tanto no sentido cognoscitivo quanto moral)? Igualmente problemática é a apresentação da objetividade dos conteúdos positivos das mensagens, enquanto os negativos são assim definidos “de acordo com a opinião de alguns”. Por um lado, mensagens e videntes são apenas “supostos”, mas, pelo outro, o positivo é apresentado como objetivo, enquanto o negativo parece ser apenas o fruto da opinião de alguns.
Não há dúvida de que as experiências que giram em torno de Medjugorje também apresentam elementos de riqueza e intensidade, tanto no plano da prática de culto quanto no plano da vida dos sujeitos. Mas o fundamento desses frutos está claramente fundamentado no ritmo semanal das mensagens, que criam uma expectativa em relação aos videntes e às próprias mensagens. Separar os frutos dessa mediação “supostamente de autoridade” é um erro de método bastante grosseiro. É verdade que, dessa forma, o documento introduz uma novidade notável de linguagem e procedimento. Mas é igualmente verdade que essa novidade parece mais “ficar em cima do muro” do que fornecer uma chave hermenêutica para o fenômeno. É possível proclamar coisas falsas e produzir vida evangélica? É assim que deveríamos nos acostumar a pensar?
Uma análise tão detalhada das mensagens tende a fazer esmaecer, ao longo do texto, aquela advertência inicial que tinha a intenção de enfatizar a “suposta” qualidade das mensagens. A longa listagem das diferentes tipologias de mensagens, uma vez assumida em uma Nota de um Dicastério Romano, tende a produzir um objeto de autoridade, enquanto na realidade trabalha com textos desprovidos de qualquer autoridade. Não é a primeira vez que isso acontece nos últimos anos. Como não lembrar o longo trabalho dedicado por uma seção da então Congregação à “reforma do Missal de 1962” que produziu em março de 2020, no auge da pandemia, dois documentos fantasmas que logo foram esquecidos? Por que dedicar categorias tão altissonantes (pneumatologia, cristologia, comunidade, espiritualidade...) a textos sem nenhuma autoridade? Aqui, uma certa distorção de visão, que parte dos frutos e chega às mensagens, leva a justificar um “culto público”, apesar da alarmante precariedade de muitas mensagens. Quase como se a vida santa, eventualmente gerada, fosse independente das palavras anunciadas e dos sujeitos que afirmam referi-las à Gospa.
Gostaria de concluir em dois planos. O primeiro é a das consequências do documento, que permanecem na ambiguidade das premissas. Por um lado, de fato, os números 38, 39 e 40 dizem uma coisa e também o seu oposto: o nihil obstat sobre o culto é afirmado, mas qualquer futura mensagem está sujeita a controle. Deixa-se livre cada fiel para aderir ou não a esse “culto”, mas, ao mesmo tempo, recomenda aos pastores e aos fiéis a fecundidade dessa experiência espiritual. Chega ao ponto de afirmar, no nº 38: “foi possível registrar que, em meio a uma experiência espiritual, muitos frutos positivos ocorreram e não se difundiram no Povo de Deus efeitos negativos ou arriscados”. No entanto, essa exclusão de efeitos negativos ou arriscados é contradita pela faculdade deixada a cada bispo diocesano de “apreciar o valor pastoral” dessa experiência, ou não o fazer.
No segundo plano, parece-me ser possível detectar, mais uma vez, uma tendência semelhante do Dicastério sob a Prefeitura do Card. Fernandez. O desejo de seguir “novos caminhos” parece totalmente apreciável. Mas os efeitos dessa “remodelação” mais uma vez nos deixam bastante perplexos. Aconteceu com as “não bênçãos” de Fiducia supplicans, aconteceu com o superpoder das fórmulas em Gestis verbisque, e acontece também com essa “história” de Medjugorie, onde a tentativa de separar os frutos das mensagens, e as mensagens dos frutos, chega não a uma solução, mas a uma não-solução. Roma se pronunciou e tudo continua como antes. No mesmo jardim, a lagartixa encontra o inseto, a vaca a grama e o gato o rato. Nesse jardim, até mesmo o Filho “uno e trino” não é afinal um erro tão grande. Basta que aumente o número de dos rosários e das peregrinações e tudo pode ser suportado.
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Supostas mensagens e frutos sem raízes. A nota sobre Medjugorje e os seus problemas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU