11 Julho 2017
Hoje, 7 de julho, é o 10º aniversário da carta apostólica do Papa Bento XVI intitulada Summorum Pontificum. Esse documento permitiu ao clero celebrar a missa de acordo com o missal de 1962, do São Papa João XXIII e instruiu que os bispos autorizem os fiéis leigos a celebrarem essa “forma extraordinária” da missa quando assim desejarem.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 07-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Bento sabia que tal decisão seria polêmica. Depois do encerramento do Concílio Vaticano II, as “guerras litúrgicas” estiveram entre os conflitos ad intra mais desagradáveis, como Bento reconheceu em uma carta [1], emitida na mesma data, em que explicou a decisão tomada. A missiva mostra o cuidado pastoral que Bento trouxe ao seu trabalho, o seu toque humano real, na medida em que se ocupou de dois temores que se contrapunham diretamente à publicação do seu documento.
O primeiro temor que Bento abordou é “o temor de que seja aqui afetada a autoridade do Concílio Vaticano II e que uma das suas decisões essenciais – a reforma litúrgica – seja posta em dúvida. Tal receio não tem fundamento”.
Isso é verdade, mas não a verdade completa. Existem aqueles que têm feito da forma extraordinária o símbolo de uma pauta eclesial que, certamente, vai contra grande parte do que o Vaticano II alcançou realizar. Se vemos um bispo que gosta de vestir a ‘cappa magna’, ou se reconhecemos um seminarista com um barrete de padre, podemos apostar que eles provavelmente inclinam-se no sentido de uma visão triunfalista da Igreja e se alinham a uma postura teológica mais rígida do que exigia o concílio.
Com certeza isso nem sempre é o que acontece. Alguns apenas gostam da música que acompanha a missa latina – e eu sou uma dessas pessoas. Desde o fim do concílio, não se ouvem Palestrina, Mozart ou Byrd, e grande parte da música produzida na Inglaterra é de entristecer. Não é preciso ser um aficionado no rito antigo para desfrutar deste grandioso reportório musical. Eu gostaria que mais igrejas executassem cerimônias assim; é um gosto litúrgico meu, gosto que, sei, é compartilhado com não muito mais pessoas.
Existem alguns católicos que se consideram tradicionais, muito embora, como acontece com os cristãos fundamentalistas, são em geral mais recentes em suas interpretações do que eles mesmos percebem. Estas pessoas podem não questionar explicitamente a autoridade do Vaticano II, mas desgostam quando o Papa Francisco começa a falar sobre fazer da misericórdia algo mais efetivo na vida da Igreja. Não há uma ligação necessária entre esse tipo de cristão e uma devoção ao antigo rito. É possível gostar da missa tradicional e da teologia do Cardeal Walter Kasper, mas para muitos a missa antiga se tornou o símbolo de um tipo de catolicismo integralista que associamos não com o Vaticano II, mas com os papas Pio IX e Pio X, um catolicismo da “era de ouro”, que resiste à modernidade.
Bento identificou essa associação do antigo rito com uma pauta ideológica mais ampla como o segundo temor que alguns nutririam a partir de seu documento.
Ele observou: “Em segundo lugar, nas discussões à volta do esperado Motu Proprio, manifestou-se o temor de que uma possibilidade mais ampla do uso do Missal de 1962 levasse a desordens ou até a divisões nas comunidades paroquiais. Também este receio não me parece realmente fundado. O uso do Missal antigo pressupõe um certo grau de formação litúrgica e o conhecimento da língua latina; e quer uma quer outro não é muito frequente encontrá-los”.
Realmente é isso o que acontece quanto à falta de formação e à facilidade limitada no uso do latim, mas na era da internet é possível começar facilmente um movimento com um amplo alcance geográfico.
Bento reconheceu que “não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados com a atitude de fiéis ligados à antiga tradição litúrgica latina”. O papa disse aos bispos: “A vossa caridade e prudência pastoral hão-de ser estímulo e guia para um aperfeiçoamento”.
O Santo Padre emérito se equivocou quanto ao grau a que uma tal prudência é eficaz quando a maioria dos católicos desconhece quem é o bispo local. E ele não conseguiu perceber totalmente o potencial para o desenvolvimento de websites com um tipo de seguimento no formato de seitas, sítios eletrônicos que ostensivamente dedicam-se à forma extraordinária do catolicismo, combinados com uma “agitprop” política de direita O Pe. John Zuhlsdorf, a Igreja Militante e o Rorate Caeli são atuantes neste sentido.
Cada vez mais fica difícil distinguir entre meios de comunicação conservadores mais convencionais, como a EWTN, e estes sítios mais periféricos na medida em que a oposição ao Papa Francisco, e especificamente a Amoris Laetitia, os une. Esta confluência é o motivo por que os bispos deveriam prestar atenção redobrada à EWTN, ao que ela tem apresentado e às pessoas para quem dirige a sua programação. Estive num restaurante dias atrás e acabei por conversar com duas senhoras, espectadoras regulares da EWTN. Elas não têm muitas coisas boas a dizer do papa, admiram o Cardeal Raymond Burke, mantêm suspeitas dos cardeais Blase Cupich e Joseph Tobin, etc.
A questão é que, em vez de o antigo rito trazer uma apreciação renovada, como esperava Bento, a direita simplória está levando equívocos renovados a conservadores anteriormente despreocupados. Isso poderia acontecer se o documento Summorum Pontificum nunca tivesse sido publicado, mas uma vez publicado tornou-se numa nova frente de batalha dentro da Igreja.
Dez anos depois, seria interessante saber o que Bento pensa dessa decisão. Será que ele acha que, numa tentativa de curar uma ferida antiga, sem querer acabou trazendo novas fontes de divisão? Temo que os efeitos desta carta apostólica estejam sendo particularmente deletérios nos seminários, onde as divisões se entrelaçam com relações interpessoais intensas.
Não há porque revogá-la, mas espero que os bispos estejam vigilantes: uma devoção ao missal de 1962 pode ser sinal de uma devoção peculiar ainda que prejudicial, como qualquer apego às coisas antigas, mas também pode ser mais – e este mais pode ser preocupante. Pode não ter sentido desfazer Summorum Pontificum, não é fácil concluir que a Igreja estaria numa melhorar caso não tivesse emitido este documento em primeiro lugar.
[1] Carta do Santo Padre Bento XVI aos bispos que acompanha o “motu proprio” Summorum Pontificum sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970.
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Decisão sobre missa latina originou nova divisão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU