Diante das enchentes, da seca e do fogo, Dino salva o país da síndrome de fiscalismo.
O artigo é de José Carlos de Assis, jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política aposentado da UEPb, 18-09-2024.
Tenho insistido recorrentemente que o sistema fiscal-monetário brasileiro, tal como expresso na Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000 e sintetizado no “arcabouço” de Fernando Hadad de 2.023, é incompatível com a necessidade de financiamentos do setor público para enfrentar os efeitos da Era de desastres climáticos extremos. Isso acaba de ser reconhecido pelo ministro Fábio Dino, do Supremo Tribunal Federal, ao autorizar que o Executivo recorra a créditos extra orçamentários para o enfrentamento, a adaptação e a prevenção dessas tragédias. A decisão foi referenda pela ministro-chefe da Advocacia Geral da União, Jorge Messias, que a considerou pertinente e muito “corajosa”.
Entretanto, essa decisão do ministro Dino, embora estabeleça um necessário marco legal para gastos primários acima da meta fiscal de equilíbrio orçamentário, não enfrenta o problema da conexão entre esse déficit, o conjunto da Economia e os objetivos de desenvolvimento sustentável – portanto, com estabilidade inflacionária – justificadamente perseguidos pelo Brasil. Isso será tratado na segunda de cinco partes deste texto, a qual será publicada nos próximos domingos com foco especialmente na política monetária, complementando essa primeira, dedicada à política fiscal.
O sistema fiscal-monetário brasileiro apoia-se em boa parte, ainda hoje, na criação pelo Banco Central, em 1.979, do Selic (Sistema de Liquidação e Custódia), como base de suas operações no mercado aberto. O propósito era evitar a dolarização da economia no contexto de uma situação hiperinflacionária. Foi o jeito brasileiro de superar, a curto prazo, a desconfiança do mercado na política monetária. Entretanto, tendo sobrevivido à Constituição de 1.988 e à Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, e mesmo com a inflação razoavelmente controlada, a taxa Selic foi mantida e passou a ser um dos fatores de maior distorção da política fiscal-monetária do País.
Fixada em intervalos de 45 dias e alinhada diariamente à meta estabelecida para ela, a taxa Selic, como principal instrumento de controle da liquidez e da inflação pelo Bacen, tem forte viés inflacionário, pois baseia-se sobretudo em expectativas subjetivas dos diretores do Bacen e do próprio mercado financeiro (Boletim Focus), cujo interesse maior é aumentá-la e mantê-la em níveis elevados. Dessa forma, avança à frente do IPCA do IBGE, e, estendendo-se além do mercado aberto, funciona como um indexador geral de quase toda a economia, em especial da Dívida Pública. Assim, é um dos motivos para que o serviço da Dívida tenda a explodir ano a ano.
Isso constituiria um grande desafio para o Brasil em qualquer tempo, mas está se tornando uma ameaça sem precedentes na era dos desastres climáticos extremos. É que, tendo se amarrado dentro de uma institucionalidade fiscal que lhe deixa pouca margem de manobra para atender as necessidades mínimas do povo, que são inscritas no orçamento primário dos entes públicos, estados como o Rio Grande do Sul, sujeito às maiores enchentes e alagamentos de sua história, e os integrantes de praticamente todos os biomas brasileiros, arrasados por secas e incêndios devastadores, estão se tornando fiscal e financeiramente inviáveis.
O RS, por exemplo, só escapou da derrocada absoluta e da inviabilidade econômica se o Governo, para salvar o Estado, não tivesse negociado com o Congresso, primeiro, o congelamento de sua dívida e do pagamento dos juros por três anos, representando um montante de R$ 23 bilhões; e, posteriormente, a aprovação por medida provisória de crédito extraordinário, no valor de R$ 1,828 bilhão, fora do “arcabouço fiscal”, para ações de apoio e de reconstrução no Estado.
Contudo, esses valores são insignificantes diante da extensão da tragédia. Segundo estudo divulgado em junho pela Federasul (Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul), os danos causados por enchentes e alagamentos na infraestrutura econômica do Estado - portanto, sem considerar as perdas em vidas humanas, mais de 100, e com desabrigados e desalojados -, estão sendo calculados em cerca R$ 176 bilhões. Já o governador Eduardo Leite estima prejuízo ainda maior, de cerca de R$ 200 bilhões. Diante disso, fica claro que todo o orçamento do Estado, fixado para 2.025 em R$ 80,3 bilhões, não cobre sequer metade desse prejuízo.
Governo federal, sempre obtendo do Congresso autorização para escapar do “arcabouço fiscal” em que se meteu, iniciou ainda no início de maio um programa rápido e eficaz de ajuda ao Estado, começando com recursos para assistência imediata às famílias atingidas no montante de R$ 11 bilhões, evoluindo para cerca de R$ 78 bilhões em fins de maio e início de junho, destinados a reconstrução. O total dessa ajuda para um único não tem precedentes na história da República. Sem ela, só sobraria para no orçamento primário do Estado, fixado em R$ 83 bilhões para o próximo ano, R$ 5 bilhões para realização de todas as suas funções.
São números que mostram que, sem ajuda federal, e considerando o que exige dos entes federativos a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, déficit zero ou mínimo (0,25% para mais ou para menos), o Rio Grande do Sul está mais que inviabilizado financeiramente e em total bancarrota. Assim, pelo menos nesse Estado e na maioria dos atingidos por desastres extremos, a LRF está morta. Tudo indica que estará morta também na própria União, na medida em que forem computados os danos financeiros causados pelas queimadas sem precedentes e por futuros desastres climáticos no resto do território nacional – o que vem sendo previsto recorrentemente pela Ciência e comprovado pela experiência.
Desastres climáticos não são apenas enchentes e alagamento que destroem a infraestrutura das regiões atingidas, como se viu dramaticamente no RS. A imensa dimensão do País, dividido em cinco biomas com características diferentes, implica variações no clima que vão desde as enchentes no Sul até as secas e incêndios prolongados na Amazônia, no Pantanal, no Leste e no Centro-Oeste. Diferente é o impacto que isso provoca no orçamento público. O primeiro diz respeito ao necessário e imediato socorro às famílias atingidas, que não podem esperar muito tempo pela assistência social do governo.
O impacto seguinte recai principalmente na reconstrução da infraestrutura, da logística e do patrimônio estatal. Especialmente quando seus efeitos são dramatizados pela mídia, provocando comoção nacional, como no caso gaúcho e das queimadas. Nos grandes incêndios em áreas privadas e de proteção ambiental, embora igualmente dramáticos, o impacto fiscal pode ser menor, pois afeta principalmente o patrimônio estatal. Finalmente, no caso das secas, os custos materiais principais costumam ser absorvidos pelo próprio setor privado, quando não há pressão política para auxílio, ao menos, das vítimas humanas.
Independentemente de sua dimensão, o impacto orçamentário das tragédias climáticas exige respostas fiscais. A pior delas é insistir no fetiche do equilíbrio do orçamento primário, no qual as despesas de fundamental interesse público do Estado, fixadas previamente no projeto de Lei Orçamentária Anual, são confrontadas com as despesas financeiras, que, constitucionalmente – devido a uma fraude que será explicada adiante – não tem limites legais. Dessa forma, para assegurar o déficit fiscal zero, o Governo tem adotar cortes recorrentes no orçamento primário. É disso que a decisão de Flávio Dino livrou o Executivo.
O Governo do Rio Grande do Sul, como os demais estados, está submetido às mesmas regras fiscais-monetárias estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2.000, editada por Fernando Henrique Cardoso, e, antes dela, pela Constituição neoliberal de 1988. Não tem a menor possibilidade de cumpri-las. O Estado está virtualmente quebrado nos termos dessa institucionalidade. Só existe por subvenção do Governo federal, que lhe garantiu, para enfrentar os desastres de maio e junho, cerca de R$ 77 bilhões, contra um orçamento estadual de R$ 83 bilhões para o próximo ano. E está previsto que lhe serão repassados ainda mais recursos federais.
É fato que o RS é particularmente vulnerável a desastres climáticos. O Estado encontra-se numa região de anticiclone e em sua costa há duas correntes marítimas extremamente violentas: a Tropical Brasileira e a das Malvinas. O litoral é contínuo e sem acidentes. As correntes marítimas impedem os rios de desaguarem diretamente no mar. Só há saídas para enchentes no Rio Uruguai e na Lagoa dos Patos. Como a região é de anticiclone, o mar é instável. E as chuvas são contínuas ao longo de todo o ano. Com o desmatamento da Amazônia, a instabilidade pluviométrica aumenta. Dessa forma, novos desastres na região são previsíveis.
Isso, entretanto, era muito bem conhecido das autoridades gaúchas, que se omitiram, como o governo Bolsonaro e a maioria quase absoluta de governadores e prefeitos, quanto à prevenção dos desastres na era das variações climáticas extremas. De 2.023 a 2.024, o Rio Grande do Sul empenhou apenas R$ 579 milhões em valores correntes para o enfrentamento de desastres naturais em diversas frentes. O orçamento estadual da Defesa Civil para 2.022 ficou em R$ 10 milhões, chegou a R$ 118 milhões em 2023, caindo para R$ 109 milhões previstos para 2024.
No Brasil como um todo, segundo o TCU, entre 2.010 e 2.024 (até maio) – portanto, ao longo de quase 14 anos – foram autorizados somente R$ 70 bilhões no orçamento da União, em termos reais, para enfrentamento dos desafios climáticos. Assim mesmo, só foram efetivamente gastos 65% dele. No período 2.012 a 2.023, neste último caso já considerando as medidas de ajuste negociadas com o Congresso para a transição de governo, os valores programado e sua realização efetiva não diferiram muito, proporcionalmente, do período anterior, evoluindo de R$ 33,75 bilhões previstos para R$ 21,79 bilhões realizados.
Note-se, com isso, que o País não tem apenas um problema de valores dos orçamentos de prevenção de desastres extremos; tem, também, um problema de eficiência na sua utilização. De qualquer forma, porém, o ponto de partida crucial sempre será a questão do financiamento das ações dos governos em termos de resposta rápida, reconstrução e prevenção das tragédias. E para isso não há uma solução apenas privada: o Governo federal, os governos estaduais e os municípios terão de encontrar meios para defender a vida e as condições de existência das populações atingidas pelos desastres, assim como para reconstruir a infraestrutura.
Pelos dados mencionados acima, não existia até pouco tempo uma consciência no País da dimensão dos efeitos das mudanças climáticas. Isso necessariamente terá de mudar, diante de suas consequências efetivas. Mas também no plano político essa pedagogia dos desastres e das respostas dadas a elas tem que funcionar, quando menos para dar ênfase ao cinismo neoliberal diante delas: o deputado Aécio Neves, por exemplo, prócer do PSDB, apontou como demagógicas as medidas que Lula adotou logo depois da tragédia no Sul. Foi quase imediatamente desmentido, na prática, pelas ações de socorro que o Presidente teve de dar ao Estado em fases posteriores.
Se o governador Eduardo Leite estiver certo na sua estimativa de que os custos totais da tragédia gaúcha poderão atingir R$ 200 bilhões, o déficit público estadual em 2025, que inclui R$ 162 milhões já previsto oficialmente, deve igualar a duas vezes e meia todo o orçamento – excluindo-se prejuízos e custos da parte de reconstrução do próprio setor privado. Nessa hipótese, o RS não poderá sobreviver como um estado fiscalmente independente dentro da institucionalidade fiscal-monetária brasileira, cuja premissa básica, expressa na Lei de LRF e replicada no “arcabouço” de Fernando Haddad, é o déficit zero ou mínimo (0,25% do PIB para mais ou para menos) no orçamento primário – que a ideologia antiestatizante dos privatistas radicais exige na mídia, mas que o setor privado real jamais assumiria como responsabilidade dele.
Estamos falando de um estado e de uma tragédia climática. Há 26 estados e o Distrito Federal no Brasil e dezenas de tragédias climáticas que ocorreram nos últimos anos e que estão ocorrendo na maioria deles, com imensos prejuízos humanos e materiais. Por certo que o desastre recente no Rio Grande do Sul foi de uma escala sem precedentes. O Estado, como visto, é propício a variações climáticas extremas, e portando nem todo o País estaria condenado a vivenciar situações semelhantes. Entretanto, tragédias climáticas de custos astronômicos não se limitam a determinadas regiões ou a tipos específicos: secas no Nordeste, em fins de 2.023, causaram custos estimados em R$ 150 bilhões, especialmente na agropecuária.
Tomando por base a recorrência de grandes tragédias climáticas no Brasil apenas nos últimos 10 anos, e incluindo secas e incêndios além de enchentes e alagamentos, houve desastres no Estado do Rio de Janeiro (2.010, com 231 mortos e 5 mil desalojados), Região Serrana, também no RJ (2.011, com 916 mortos), Pantanal (2.011, 17 milhões de animais mortos em incêndios), Minas Gerais (2.020, 90 mil mortos), Petrópolis, RJ (2.022, 241 mortos), Nordeste (2.022, seca prolongada em Pernambuco e Alagoas). Portanto, a probabilidade de mais casos é muito alta.
Sabemos que é impossível evitar ou enfrentar diretamente essas tragédias longamente anunciadas pela Ciência. O melhor que podemos fazer é recorrer a medidas preventivas e nos adaptar a elas, ao menor custo humano e material possível. Não se trata de uma questão que possa ser resolvida de forma convencional pelos poderes públicos. É que não estamos diante de um problema convencional, mas de um desafio que pode nos acompanhar por anos e décadas à frente, o que justifica que lhe seja dada absoluta prioridade nos orçamentos governamentais. Isso custará muita atenção, muito planejamento e muito dinheiro. Porém, não há saída a não ser uma mudança profunda na política fiscal, violando velhos fetiches e preconceitos.
Tomando por base o que tem ocorrido no RS e projetados com realismo para o futuro, os recursos que serão necessários para enfrentar – melhor dizendo, para nos adaptar – aos desastres climáticos extremos, considerando ações indispensáveis de resposta rápida, reconstrução e prevenção, de forma alguma caberão nos orçamentos primários dos entes públicos atingidos, o que implica a reforma radical sugerida como nova política econômica que descarte a aplicação do “equilíbrio fiscal” na forma sumária determinada pela Constituição, e reforçada em detalhes pela LRF.
A essência do desafio constitui em extinguir a regra do orçamento primário equilibrado a qualquer custo, substituindo-a por outra, através de emenda constitucional, que concilie a política fiscal com crescimento econômico a altas taxas e com inflação estabilizada, em confronto com os fetiches do neoliberalismo econômico. Os gastos públicos terão de ter algum limite, mas os limites devem obedecer a critérios inteligentes e compatíveis com os interesses da Sociedade, em especial dos setores mais vulneráveis dela.
O fetiche de que déficits orçamentários produzem sempre ou evitam queda da inflação é comum entre economistas ditos “ortodoxos”, e se espalhou pelo mundo após as crises de dívida externa dos países em desenvolvimento nos anos 1.980. Para “ajudar” os países endividados a pagar suas dívidas externas, o governo dos Estados Unidos exigiu dos devedores a desestatização e privatização das empresas públicas, enquanto o FMI lhes impôs políticas fiscais e monetárias extremamente restritivas, hoje chamadas neoliberais. As metas perseguidas eram gerar superávits comerciais com o exterior e, internamente, combater a inflação e mantê-la baixa.
Na prática das negociações, o Fundo, exercendo o papel que os antigos chargistas brasileiros chamavam de “o amigo da onça”, atraía o Brasil com uma taxa de juros relativamente baixa nos seus empréstimos, que cobriam apenas parte do financiamento da dívida, e o entregava às garras leoninas do sistema bancário internacional privado, para que completassem, com taxas de juros extorsivas, os recursos restantes para o financiamento global da dívida. Com isso, iniciou-se o processo que levaria à globalização e à hipertrofia do sistema financeiro do País.
Acovardados diante do poder econômico dos banqueiros, acolitados estes pela proteção política do Governo norte-americano, nossas autoridades, notavelmente o presidente Fernando Henrique Cardoso e seu negociador Pedro Malan, se curvaram às imposições dos credores e aceitaram que nos impusessem um acordo, em 1.997, com títulos financeiros “podres” (Brady) que nos exigiram descontos vergonhosos de até 30% do valor de face. Esses títulos foram aceitos para privatização das estatais, como a Vale do Rio Doce, vendida por R$ 3 bilhões, e cujos lucros, já no primeiro ano sob controle privado, alcançaram mais de R$ 10 bilhões – sem falar em seu patrimônio, estimado na época em R$ 300 bilhões!
Com imensos sacrifícios para o País e para os trabalhadores, refletidos nas menores taxas de crescimento econômico e nos menores salários reais em décadas, especialmente depois do Plano Real e da Lei de Responsabilidade Fiscal, vimos fazendo equilíbrio ou até superávits fiscais nos orçamentos anuais, cortando recursos destinados ao orçamento primário, ou seja, às despesas públicas de maior interesse para a população, em favor do orçamento financeiro – para o qual, sintomaticamente, não há limites, graças a uma deformação da Constituição de 88 a ser esclarecida adiante.
Dessa forma, estreita-se cada vez mais a margem para gastos primários e de investimentos públicos essenciais para o povo, enquanto se prevê, já para o próximo ano, incluindo a carteira do Bacen, um estoque da Dívida Pública Federal de R$ 9,514 trilhões. Os juros computados estão subestimados. O custo médio anual da dívida nos últimos 12 meses é de 10,10%, o que poderá gerar no final de 2024 o provável pagamento dos juros de mais de R$ 1 trilhão. Isso é quase metade do orçamento primário previsto de R$ 2,222 trilhões e se deve, sobretudo, à deformação de um mercado aberto que desvia da produção para a especulação grande parte dos recursos financeiros que giram na economia.
Diz-se que o equilíbrio fiscal garante o desenvolvimento sustentável, com estabilidade inflacionária da economia. Isso, felizmente, é falso. Se fosse verdadeiro, não teríamos chances de retomar o crescimento econômico a altas taxas diante de situações que exigem grandes déficits fiscais, como no momento. De fato, a despeito de suas recorrentes declarações até o início do ano de que garantiria o equilíbrio orçamentário a qualquer custo, atendendo ao “mercado”, o presidente Lula, diante do fato concreto da tragédia no RS, não se furtou a quebrar sua promessa e lhe dar uma resposta rápida, diante de uma questão humanitária que comoveu todo o País.
O Presidente seguiu o que determinou sua consciência e, passando por cima de interesses das oligarquias financeiras e de seus asseclas ideológicos no “mercado” e na aristocracia do próprio Governo, na mídia e na política, está violando de forma pragmática a ideologia do equilíbrio fiscal a qualquer custo, apelando para medidas extraordinárias negociadas com o Congresso, agora com apoio do STF, que contornem o “arcabouço fiscal”. Sabidamente, ele não é um acadêmico. É conduzido especialmente pelo coração. Nessa trilha, como nos mandatos anteriores, vai no caminho certo. O “arcabouço fiscal” foi um desvio para viabilizar politicamente a difícil transição de Bolsonaro para uma regime de esperança. Terá de ser refeito diante dos fatos.
Assim, em face do risco objetivo apontado pela Ciência e pela experiência para sobrevivência da própria humanidade com as mudanças climáticas provocadas pelo próprio homem, fica claro que nenhuma ideologia pode se superpor, na prática, a ações concretas de adaptação à nova Era. Nesse contexto, defender o equilíbrio no orçamento fiscal, em nome de uma suposta “austeridade”, só teria sentido se fosse para cortar despesas financeiras, deixando a margem necessária para nos adaptar aos inevitáveis desastres climáticos do futuro. Do contrário, naufragaremos todos no “austericídio” fiscal.
A receita fiscal neoliberal, como visto, sustenta que, para ter crescimento econômico com estabilidade inflacionária, é preciso equilibrar o orçamento primário. Na era dos desastres climáticos extremos, isso é um contrasenso. O orçamento fiscal primário é onde se contabilizam, entre outras despesas de interesse público, os custos devidos aos desastres climáticos. Se for preciso equilibrar o orçamento global, é preciso cortar no financeiro, a fim de abrir margem para o crescimento do primário. Acontece que o orçamento financeiro é intocável, conforme nossa Constituição neoliberal determina. Assim, só no plano ideológico pode-se conciliar equilíbrio ou superávit primário, estabilidade monetária e crescimento econômico.
Com os desastres no Sul, e seus custos, o Presidente tomou um rumo duplamente certo. Primeiro porque, diante de tragédias humanitárias, o Estado, independentemente de ideologias, tem de agir para socorrer suas vítimas humanas e materiais; segundo, e isso é essencial, déficit primário não necessariamente causa inflação, como disse antes. É o que de fato mostraram, por exemplo, os gastos deficitários de quase R$ 700 bilhões arrancados quase à força do ultraneoliberal Paulo Guedes, em 2.020, como medida de emergência para combater a Covid. Eles, efetivamente, não geraram inflação relevante em 2.021 e 2.022.
De forma similar, embora com maior presteza, Lula está forçando o Congresso comandado pelo Centrão (ou simplesmente fisiológico) a acompanhá-lo nas medidas provisórias que estão dando amparo legal à aplicação de recursos federais para ajuda aos gaúchos e aos estados vítimas das queimadas. É claro que os montantes liberados são insuficientes diante dos custos estimados de reconstrução, sendo que o próprio Governo estadual, e provavelmente a maioria dos 463 municípios arrasados, não poderão contribuir em nada para diminuí-los.
Na prática, isso afetará também o orçamento primário federal de 2.025, cuja previsão de equilíbrio fiscal exigiu um corte, ainda no corrente ano, da ordem de R$ 15,5 bilhões, para que fosse enquadrado na regra de déficit zero ou de, no máximo, de desvio de 0,25% do PIB para cima ou para baixo. Com a tragédia no Sul, sua realização no próximo ano ficou comprometida e terá de incorporar, além das despesas de emergência na ajuda ao Estado, os custos de reconstrução e de prevenção que o Governo estadual, virtualmente falido, não conseguirá suportar, e que o Governo federal terá de assumir.
Entretanto, serão os custos de resposta, reconstrução de infraestrutura e de prevenção de possíveis novos desastres climáticos em todos os Estados, no futuro, que representarão grandes desafios para o Governo federal e os estados. Até que não se aprove no Congresso uma lei que estenda aos outros estados as mesmas medidas de socorro prestado ao Rio Grande do Sul, todos eles estão submetidos às mesmas políticas fiscais-monetárias restritivas do orçamento primário, sujeito à ditadura da oligarquia financeira, dos grandes conglomerados industriais e da tecnocracia estatal que vem se apropriando historicamente do Tesouro público.
Se, no corrente ano, quando ainda estava sendo fixado orçamento primário para 2.025, o Governo federal viu-se obrigado a cortar a contragosto os gastos de interesse público de R$ 15,5 bilhões a fim de garantir o equilíbrio fiscal, imagine-se quanto terá de cortar na sua execução para pagar essas e outras futuras despesas de reconstrução de infraestrutura e prevenção de novos desastres, quando a conta dessa e de possivelmente outras despesas bater às suas portas, já que os governos estaduais ultraendividados não terão como pagá-los?
Como se viu, até o momento quem está assumindo a conta principal dos desastres no RS é o Governo federal – o que, na verdade, como se verá, é até justo, porque só ele pode emitir moeda. A condição para essa emissão, porém, é que, oriunda de déficit primário, seja aplicada em financiamentos de bons projetos públicos de produção de bens e serviços de uso popular, para manter o custo de vida sob controle. Isso se verá melhor adiante.
Está cientificamente comprovado, e atestado pela realidade, que mudanças climáticas acompanhadas de desastres extremos continuarão a ocorrer, ciclicamente, em face do aquecimento global provocado principalmente pelo aumento de dióxido de carbono e de metano na atmosfera, de derretimento das geleiras nos polos, no aquecimento das águas dos oceanos. Isso não reverte a curto e médio prazos. Significa que, em todos os níveis de governo, medidas preventivas devem ser tomadas para segurança da população. O que implicará a mobilização de recursos consideráveis do orçamento primário, que, como já observado, está esmagado sob o orçamento financeiro.
Conclui-se daí que, para enfrentar os desafios climáticos futuros, os governos têm que romper os limites da institucionalidade fiscal em que se encontram, diante da evidência de que o orçamento primário não poderá suportar seus custos. A ideia neoliberal de que o orçamento global a União pode ser ajustado mediante cortes sucessivos no primário é simplesmente inviável: no limite, o Estado Social desapareceria, e o investimento público em infraestrutura teria de ser zerado.
A compatibilização do orçamento fiscal federal com os custos atuais e futuros que resultam ou resultarão dos desastres climáticos está sendo realizada mediante medidas legais extraorçamentárias, ou seja, pela liberação de recursos pelo Congresso por fora do “arcabouço fiscal”, agora autorizados pelo STF. Isso resolve o problema contábil de um ponto de vista formal. Contudo, os custos reais existem e têm que ser pagos pelo Governo e pela Sociedade em termos efetivos. Isso só se consegue com o crescimento acelerado do PIB, o que implica uma profunda reforma financeira na economia. Como se verá adiante.