"47% da população morava em um domicílio que foi beneficiado pelo Auxílio Emergencial em novembro, sendo que a maioria eram negros (64%)", diz o economista
O retorno da fome e o aumento da insegurança alimentar são as duas novas consequências da crise brasileira. No momento, o percentual de brasileiros desocupados é de 14,2% e o número de pessoas na informalidade é de 40%. "É impossível manter direitos humanos básicos, como moradia e alimentação, sem uma renda familiar mínima", diz o economista Ricardo Gonçalves, ao comentar a realidade que atinge parte das famílias brasileiras. Segundo ele, sem o Auxílio Emergencial em 2020, "em novembro do ano passado, 30% da população brasileira estaria sobrevivendo abaixo da linha da pobreza, com uma renda familiar per capita menor do que R$ 436 por mês, e 11% abaixo da linha da pobreza extrema, com R$ 151 por mês. Cabe enfatizar que 72% dessas pessoas são negras, 38% mulheres negras e 34% homens negros".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Gonçalves informa que, sem considerar o recebimento do Auxílio Emergencial, "metade da população brasileira vivia com uma renda familiar per capita menor do que R$ 750 por mês em novembro de 2020". Os dados fazem parte do estudo que ele e outros doutorandos do Instituto de Economia da Unicamp realizaram a partir da amostra de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad Covid-19 de novembro de 2020. "Enxergamos apenas uma 'fotografia' daquele momento e não um cenário da evolução da crise. Porém, esse registro já nos apresenta resultados impactantes", reitera.
Na avaliação dele, num país em que as desigualdades sociais são gritantes e metade da população vive com renda per capita menor que R$ 750 por mês, "o debate já deveria girar em torno do valor cabível para uma renda básica, pois a necessidade de sua implementação é explícita".
A seguir, ele comenta o impacto que o Auxílio Emergencial teve na renda das famílias e lamenta a redução do benefício no momento em que o país vive o auge da crise sanitária de Covid-19.
Ricardo Gonçalves (Foto: Arquivo pessoal)
Ricardo Gonçalves é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e mestre em economia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde está cursando o doutorado na mesma área. Faz parte do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica - Cecon do Instituto de Economia da Unicamp.
IHU On-Line - O que mais o surpreendeu nos estudos que o senhor e um grupo de pesquisadores realizaram sobre os impactos do Auxílio Emergencial na renda das famílias nestes tempos de crise?
Ricardo Gonçalves - O nosso estudo focou em apenas uma amostra de dados, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad Covid-19 de novembro de 2020 (a última disponibilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), então enxergamos apenas uma “fotografia” daquele momento e não um cenário da evolução da crise. Porém, esse registro já nos apresenta resultados impactantes.
O primeiro fato que destacamos é que 20% dos trabalhadores declararam perda de renda do trabalho, sendo que esse impacto foi maior para as camadas de menor renda. Em decorrência da estrutura da desigualdade de renda do país, esse impacto é maior sobre a população negra (52% dessas pessoas que tiveram perda na renda do trabalho eram negros).
Outro fator que chama a atenção é o impacto que o Auxílio Emergencial - AE teve sobre a renda das famílias. Quando observamos a distribuição da população por décimos de renda (dividindo a população em dez segmentos com a mesma quantidade de pessoas em ordem crescente de renda familiar per capita), percebemos que metade da população obteve ganhos médios acima de 10% com essa transferência. Embora a Pnad Covid-19 não permita distinguir quem deixou de receber o Bolsa Família para receber o AE, o primeiro décimo de renda apresenta um ganho de 76% na renda média. Esse é um dado muito revelador da condição econômica a que essa parcela da população brasileira está submetida. Caso não houvesse esse aporte do governo, essas pessoas estariam em condição de pobreza extrema, com uma renda familiar per capita média de R$ 36,47.
IHU On-Line - Que cenário podemos projetar agora com a redução do valor e do número de beneficiários do Auxílio Emergencial? Enquanto o país ainda amarga uma crise sanitária, aumenta o desemprego, a inflação, e o poder de comprar daqueles que têm menores rendimentos evapora. Como enfrentar esses problemas do Brasil de hoje?
Ricardo Gonçalves - O cenário para essas famílias e para o sistema de saúde do país é preocupante. Dado o agravamento da crise sanitária, com o sobrecarregamento dos hospitais e a necessidade de aumentar o isolamento social, a tendência é que a restrição do AE colocará milhões de pessoas em uma situação de grande vulnerabilidade, tanto econômica quanto sob o risco da Covid-19. Na realidade, o agravamento da pandemia no Brasil coincidiu com os quatro meses em que não houve AE. A retomada do auxílio com um valor muito abaixo do original não parece ser uma política adequada diante do grave problema que estamos enfrentando.
Basta observar a nossa atual conjuntura econômica, que possui recorde de desocupados de 14,2% (pessoas que procuram emprego) e uma taxa de informalidade de 40%, e imaginar o impacto que a redução ou fim dessa transferência terá sobre essas famílias. É evidente que muitos ficarão impossibilitados de manter um isolamento adequado, colocando a saúde de seus familiares em risco e reduzindo a possibilidade de amenizar os graves efeitos da pandemia. Além disso, a inflação de 6,1% (no acumulado de 12 meses) deveria sinalizar para um aumento do AE, e não uma redução. No atual cenário, não há nenhum indicador apontando para o arrefecimento da crise que justifique a redução do auxílio.
IHU On-Line - Quem são os beneficiários do Auxílio Emergencial e o que os seus perfis revelam sobre a renda e a sociedade brasileira?
Ricardo Gonçalves - Com a Pnad Covid-19 não é possível identificar quem recebeu individualmente o benefício, mas sim as pessoas que moravam em um domicílio que foi beneficiado. Nesse sentido, 47% da população morava em um domicílio que foi beneficiado pelo AE em novembro, sendo que a maioria eram negros (64%).
Esse fato explicita o perfil da desigualdade de renda do Brasil: o primeiro décimo de renda é composto por 72% de negros e 27% de brancos, enquanto no décimo mais rico esse cenário se inverte, apenas 27% eram negros e 71% eram brancos. Dessa forma, essa é uma política que atende a população mais fragilizada economicamente e colabora para mitigar essa desigualdade de renda também sob a perspectiva racial e de gênero. Cabe enfatizar que cerca de 72% das pessoas que compõem o décimo mais pobre moravam em um domicílio que recebeu essa transferência em novembro.
IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao formato, a concepção e a maneira como foi pensado e concedido o Auxílio Emergencial? Em que ele foi importante para melhorar a renda dos mais pobres e reduzir as desigualdades?
Ricardo Gonçalves - O formato inicial do AE buscava atender não apenas as pessoas em maior vulnerabilidade social (como os beneficiários do Bolsa Família), mas também desempregados e trabalhadores informais com renda familiar per capita de até meio salário mínimo (R$ 534). Então, esse foi um programa amplo que buscou atender uma parcela significativa da população brasileira. Felizmente, o Congresso conseguiu aprovar um auxílio de R$ 600 ou R$ 1.200 por família que começou em abril do ano passado, mas por apenas cinco meses. Em setembro se instituiu mais quatro parcelas, mas de R$ 300 ou R$ 600. Outras quatro parcelas serão pagas a partir deste mês de abril, mas com nova redução, agora para R$ 250.
O que percebemos é que o formato inicial era claramente o mais adequado, que foi capaz inclusive de reduzir momentaneamente a grave e histórica desigualdade de renda do país. A redução do valor para R$ 250 é vista com muita preocupação, pois a nossa estrutura social já se encontra extremamente fragilizada. Como já mencionei, o desemprego atingiu níveis recordes. Se não houvesse o AE, em novembro do ano passado, 30% da população brasileira estaria sobrevivendo abaixo da linha da pobreza, com uma renda familiar per capita menor do que R$ 436 por mês, e 11% abaixo da linha da pobreza extrema, com R$ 151 por mês. Cabe enfatizar que 72% dessas pessoas são negras, 38% mulheres negras e 34% homens negros. Assim, a amplitude e o valor do formato inicial do auxílio se mostraram um instrumento potente de redução da desigualdade de renda que acabou atendendo melhor as mulheres negras em decorrência do caráter racial e de gênero da desigualdade brasileira.
É claro, também, que uma política de transferência de renda do porte do AE tem inúmeros impactos econômicos e sociais que ainda merecem uma atenção mais aprofundada. Uma delas é o impacto que esse estímulo fiscal teve no crescimento econômico. Muito provavelmente o AE colaborou para evitar uma queda maior do PIB em 2020.
IHU On-Line - Como se dá a relação entre beneficiários do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial? Em que medida a substituição de um dos benefícios por outro contribui para o aumento da renda?
Ricardo Gonçalves - O Bolsa Família é um programa mais focalizado para famílias em extrema pobreza, com o gerenciamento do Cadastro Único. Todas as famílias que estavam inscritas no Cadastro Único poderiam receber o maior valor do AE. Lembrando que o valor do Bolsa Família varia de acordo com a situação familiar, com um valor máximo de R$ 205 por mês. Dessa forma, essas pessoas tiveram um aumento considerável no valor do benefício recebido.
IHU On-Line - O Auxílio Emergencial também reeditou um debate sobre uma renda básica. Na sua opinião, qual a centralidade de uma renda básica no contexto brasileiro? E qual seria o melhor formato para a concessão desse tipo de benefício? Depois dessa experiência do auxílio, o Brasil está preparado para encarar um debate sobre redistribuição de renda? Por quê?
Ricardo Gonçalves - Em um país tão desigual como o Brasil, o debate sobre uma “renda básica cidadã” está, infelizmente, atrasado. O Bolsa Família foi uma ferramenta extremamente importante para mostrar a capacidade do Estado de retirar as pessoas da pobreza extrema, organizando um programa com alta capilaridade, eficaz e autossustentável. Porém, deveríamos ter caminhado para ampliar o debate, não só porque o valor transferido pelo Bolsa Família é extremamente reduzido, mas também porque milhões de brasileiros que se encontram em condições de vulnerabilidade social não se enquadram nos requisitos para receber esse benefício.
Cabe lembrar que é impossível manter direitos humanos básicos, como moradia e alimentação, sem uma renda familiar mínima. Sem considerar o AE, metade da população brasileira vivia com uma renda familiar per capita menor do que R$ 750 por mês em novembro de 2020. Será que isso é adequado? No meu ponto de vista o debate já deveria girar em torno do valor cabível para uma renda básica, pois a necessidade de sua implementação é explícita.
IHU On-Line - Na história do Brasil, em que período mais se avançou em termos de redistribuição de renda, redução da pobreza e das desigualdades? E como o senhor compreende o contexto desse período?
Ricardo Gonçalves - Entre 2005 e 2014 o Brasil experienciou um momento de contínua melhora nos índices de distribuição de renda e redução da pobreza em decorrência de alguns fatores tanto conjunturais como de políticas públicas. Os fatores conjunturais ocorreram pelo “boom de commodities”, que colaborou para a apreciação cambial, manutenção da inflação em níveis baixos e crescimento econômico. As principais políticas públicas que colaboraram para a redução da desigualdade foram a valorização do salário mínimo acima da inflação, as políticas de transferência de renda e o estímulo às pessoas de mais baixa renda para ingressarem em cursos técnicos e de ensino superior.
Na minha opinião esse período serve de exemplo de que é possível melhorar a distribuição de renda do país. Se existem milhares de brasileiros na linha da pobreza, isso ocorre por decisões de políticas públicas e não pode ser normalizado. Contudo, é preciso vislumbrar um projeto de país que se enquadre dentro do atual contexto de globalização, desenvolvendo um sistema produtivo nacional para que não fiquemos passivos esperando conjunturas internacionais favoráveis. Para garantir que a redução da desigualdade se sustente, precisamos criar empregos de maior complexidade, que inevitavelmente passam pelo desenvolvimento industrial e tecnológico nacional.
IHU On-Line - Mesmo que muitos reconheçam a importância do Auxílio Emergencial, o discurso do ajuste fiscal e das reformas, que buscam enquadrar os ‘gastos’ sociais no orçamento, ainda aparece. Como o senhor analisa essa aparente contradição? Além de pensar em programas de redistribuição de renda, que outras políticas econômicas o governo deve levar em conta para proteger os mais pobres e lhes assegurar subsistência?
Ricardo Gonçalves - A questão que se coloca no debate atual é em decorrência do nível de endividamento público e das regras orçamentárias vigentes. A lei do teto de gastos institucionalizou uma confusão recorrente no debate público, que utiliza o conceito de orçamento público como um orçamento privado. Assim, o teto de gastos engessa a capacidade do Estado de agir mesmo em momentos de grande necessidade, pois os formuladores dessa regra acreditavam que o Estado deveria agir como um “chefe de família”, com austeridade permanente. O discurso de que o orçamento é limitado e de que não podemos aumentar gastos é sedutor, pois automaticamente nos remete ao nosso próprio cotidiano, sendo fácil nos colocarmos nesta situação de “responsabilidade”.
Contudo, a dinâmica de um orçamento público em nada tem a ver com um orçamento familiar. É preciso entender que um gasto público é uma receita privada, então uma política “austera” em um momento de crise tende a reforçar a perda de renda das famílias, colaborando para o aprofundamento da crise e da própria queda das receitas do governo. É por isso que o Bolsa Família é “autossustentável”, pois a renda que essas pessoas recebem se converte em consumo, que estimula setores produtivos e retorna em receitas públicas com a arrecadação de impostos.
A dívida interna do governo é uma ferramenta normal de política macroeconômica também muito diferente da dívida de uma pessoa. O Estado não corre o risco de insolvência, porque é o emissor da moeda e da própria dívida. Basta observar a dinâmica dos crescentes déficits primários desde 2015, que coincidem com o início de uma política de austeridade fiscal com elevados cortes de gastos e de grande recessão econômica. O rápido crescimento da dívida pública nunca colocou em xeque a capacidade de solvência do governo brasileiro. Ou seja, sempre foi possível ao Estado manter e aumentar gastos. Poderíamos ter investido para assegurar uma melhor infraestrutura; investir no sistema de saúde; em escolas e universidades públicas; e ampliar programas de transferência de renda para os mais pobres. Qualquer uma dessas medidas teria contribuído para mitigar a crise econômica, para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB e provavelmente para reduzir a desigualdade de renda.
Assim, a política econômica que vigorou desde 2015 e que foi aprofundada dramaticamente com o teto de gastos é uma escolha política que busca arbitrariamente reduzir a capacidade do Estado de atuar em questões básicas da nossa sociedade. Para assegurar políticas que apontem para a garantia de direitos humanos constitucionais é preciso, antes de qualquer outra coisa, derrubar essa regra orçamentária.