03 Setembro 2024
Eu tinha cerca de 10 anos quando a expressão “Vaticano II” veio pela primeira vez à minha consciência. Minha família estava sentada em seu banco regular na paróquia de São José, e eu estava no torpor que acompanha as crianças do Ensino Fundamental durante a missa de domingo. Quando ouvi o padre dizer o nome da minha mãe, no entanto, prestei atenção.
O comentário é de Renée Schafer Horton, publicado em National Catholic Reporter, 31-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Isto se chama Sinal da Paz”, ele estava explicando, com seu sotaque irlandês flutuando sobre nós enquanto gesticulava em direção à minha família. “A Sra. Schafer se virará para Pamela e apertará sua mão, então Pamela se virará para Renée e fará o mesmo. Depois Renée oferecerá a paz a Bryan.” Para minha absoluta mortificação, ele então nos instruiu a demonstrar o que ele havia descrito em benefício do restante da assembleia.
Alguns anos depois, as mudanças do Concílio mais uma vez entraram no meu pequeno mundo. Fui chamada à sala da diretora por um motivo que eu desconhecia, mas que eu suspeitava que pudesse ter a ver com o fato de que eu havia liderado uma campanha para deixar que nós, meninas do 8º Ano, usássemos nossas saias do uniforme cinco centímetros mais curtas do que o permitido então. Quando bati na porta da Ir. Mary Margaret, preparei-me para uma reprimenda.
Em vez disso, ela pegou um toca-fitas, colocou uma fita dos The St. Louis Jesuits, e eu ouvi minha primeira interpretação da Oração do Senhor no estilo “missa folk”.
“O padre quer que isso seja tocado nas missas da nossa escola”, disse a Ir. Mary Margaret, “e a sua professora disse que você toca violão.” Ela me entregou a partitura e me disse para ensiná-la ao restante da escola naquela sexta-feira.
E então, de forma bastante horrível naquela primeira vez, eu toquei a música, com o nosso organista paroquial fazendo caretas ao fundo, a Ir. Mary Margaret parecendo que eu estava pessoalmente crucificando Jesus de novo, o Pe. McCarthy e as jovens freiras da escola sorrindo como se tivessem ganhado na loteria. Um ano depois, tínhamos uma banda completa nas missas da escola.
Esses incidentes parecerão menores para os católicos mais jovens, que só experimentaram a liturgia na língua vernácula, com coroinhas, ritos de oração ecumênicos, uma bateria no coro e uma catequese que não diz mais que os judeus mataram Jesus.
Mas, enquanto eu lia “The Mole of Vatican Council II: The True Story of ‘Xavier Rynne’”, de Richard A. Zmuda, estremeci ao perceber como a Igreja chegou perto de nunca ter nenhuma dessas coisas.
O livro é vendido como ficção histórica, mas parece mais um livro de história em muitos capítulos, o que, aliás, é um forte ponto de destaque neste caso. Ele especifica detalhadamente os esforços desesperados dos tradicionalistas da Cúria para sabotar o Concílio Vaticano II (1962-1965) a fim de “salvar a fé” – e como eles chegaram perto de alcançar esse objetivo.
O cerne do romance, no entanto, traça as tentativas frenéticas desses tradicionalistas a fim de desmascarar e de silenciar um padre que, sob o pseudônimo de Xavier Rynne, escreveu uma série de artigos impressionantes para a revista The New Yorker, revelando os segredos das negociações secretos e das tentativas de subversão dos objetivos que o Papa João XXIII e seu sucessor, o Papa Paulo VI, tinham estabelecido para o Concílio.
O Pe. Francis Xavier Murphy foi um padre redentorista estadunidense que atuou como conselheiro teológico de um bispo redentorista durante o Vaticano II. Isso lhe concedeu acesso a todas as sessões, assim como aos corredores e elevadores, onde ele soube dos esforços do cardeal Alfredo Ottaviani e de outros prelados conservadores a fim de minar o Concílio.
O romance detalha como Murphy se tornou Xavier Rynne, como seus artigos se tornaram leituras obrigatórias para os católicos leigos e clérigos, e como ele se tornou alvo da raiva de Ottaviani e de outros.
“The Mole of Vatican Council II” tem seus pontos fortes e fracos. Zmuda, que escreveu dois livros de não ficção para sobreviventes de câncer, brilha nas seções que mergulham em fatos históricos. Sua escrita é menos convincente nas duas subtramas principais do romance, ambas envolvendo personagens femininas: um quase romance e um esquema de adoção.
Na primeira, há muitos diálogos ambíguos e afetados; na última, há algumas oscilações em relação ao tropo “Salvador Branco”. Zmuda explica em seu epílogo que as duas mulheres são “personagens fictícias consideradas essenciais pelo autor para o enredo geral”, mas essas cenas parecem quase enfiadas à força no livro, interrompendo seu ritmo geralmente rápido.
Apesar da insistência do autor no prefácio do livro de que "The Mole” deve ser lido como ficção histórica, tanto o prefácio quanto o epílogo informam aos leitores e leitoras que a maior parte da obra se baseia em documentos de fontes primárias: artigos, diários, cartas pessoais e entrevistas de Murphy ao projeto de Pesquisa de História Oral da Columbia University e até mesmo arquivos mantidos secretamente sobre Murphy e fornecidos a Zmuda por fontes anônimas.
As fontes primárias tornam o livro mais interessante do que poderia ser, mas também mais assustador. Leitores e leitoras têm uma visão geral de como aquela época na história da Igreja foi importante – e precária.
Há partes que também parecem estar acontecendo hoje. Por exemplo, uma citação do Papa Paulo VI ao dizer que a Cúria “deveria agora ser simplificada e descentralizada” poderia ser do Papa Francisco ao falar em qualquer dia da semana.
As partes sobre os tradicionalistas que acham que a missa no vernáculo é um caminho rápido para o inferno poderiam ser retiradas diretamente dos feeds das mídias sociais de alguns bispos ultraconservadores agora.
“The Mole of Vatican Council II” é uma leitura divertida e esclarecedora em geral, mas os leitores e as leitoras devem ler o livro sabendo que não será como a maioria das ficções históricas tradicionais. A obra é para católicos e católicas que gostam de análises internas e aprofundadas, para pessoas não católicas que anseiam pela experiência de conhecer os bastidores de uma instituição que ainda domina o mundo e, ouso dizer, para cada pessoa que deseja que nunca voltemos para onde estivemos.
ZMUDA, Richard A. The Mole of Vatican Council II: The True Story of “Xavier Rynne”. ACTA Publications.
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Livro de ficção histórica reconstrói os bastidores do Vaticano II pelo olhar de um redentorista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU