25 Junho 2024
Verão setentrional chega com 50 graus na Índia, peregrinos morrendo em Meca e a maior planície alagável do planeta com 1.200% a mais de fogo.
As informações são publicadas pela Newsletter de Observatório do Clima, 24-06-2024.
Em sua ficção climática O Ministério do Futuro, o escritor americano Kim Stanley Robinson imagina uma onda de calor na Índia que mata 20 milhões de pessoas em uma semana. O trauma coletivo da catástrofe faz a humanidade se emendar: com a Índia na liderança, o mundo passa a adotar uma série de medidas para reduzir emissões de gases de efeito estufa, criar resiliência nas cidades e devolver territórios à vida selvagem.
A tragédia da literatura está acontecendo em câmera lenta no último mês e meio: temperaturas acima de 45ºC se abatem sobre a Índia e o Paquistão há mais de 40 dias, ameaçando a agricultura e a segurança alimentar do país mais populoso do mundo. Há tempos a ciência prevê que, assim como o sul do Brasil ficaria mais chuvoso com a mudança do clima, o sul da Ásia ficaria muito mais quente.
O mundo político, porém, está falhando em reagir aos sinais óbvios do agravamento da crise climática. Ou melhor, está reagindo, mas do jeito errado: a extrema-direita, que cresce e ameaça chegar ao poder na França e retornar a ele nos EUA, nega a crise climática, enquanto líderes progressistas como o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva parecem achar que é OK investir na causa do problema, os combustíveis fósseis. Enquanto isso, como você lerá nesta edição da newsletter, as negociações preparatórias para a COP29, a conferência do clima de Baku, em novembro, fracassam por falta de acordo sobre dinheiro.
Boa leitura.
O climatologista britânico Gavin Schmidt, da Nasa, escreveu no começo do ano, num texto sombrio na revista Nature, que até agosto, com o fim do El Niño, a humanidade saberia se a crise do clima mudou de fase ou não. O fenômeno no Pacífico causou eventos extremos mundo afora ao turbinar o aquecimento do oceano. Se os extremos continuassem na ausência dele, ponderou Schmidt, a humanidade estaria em sérios apuros.
A transição entre primavera e verão no hemisfério Norte, e entre a chuva e a seca na América do Sul, parece apontar uma resposta. Na Índia, há mais de um mês os termômetros oscilam entre 40oC e mais de 50oC, e nesta semana o país mais populoso do mundo teve sua maior temperatura noturna já registrada, 35,2oC. Nesta semana, 50 corpos de pessoas em situação de vulnerabilidade social foram encontrados em Nova Déli – as mortes foram atribuídas ao calor extremo.
Na Arábia Saudita, país que mais fez nos últimos 32 anos para bloquear a ação global contra a mudança do clima, mais de mil pessoas morreram no Hajj, a peregrinação anual dos muçulmanos a Meca. As temperaturas na região bateram os 51oC. As ondas de calor da primavera, que tornaram-se comuns na Europa Central em junho, deram trégua neste ano, mas no sul do continente o calor já se instalou. Neste momento, incêndios florestais castigam a Grécia e a Turquia, enquanto a Califórnia começa a evacuar residências no caminho do fogo. O verão começou apenas ontem.
No Brasil, que ainda conta os corpos do dilúvio no Rio Grande do Sul em maio, uma outra tragédia maciça se desenrola no Centro-Oeste, desta vez pelo fogo: o Pantanal já teve o maior número de incêndios para o mês de junho em toda sua história: até dia 20 eram 1.684 focos, o triplo do registrado no pior junho até aqui, o de 2005. No ano, o número de queimadas é 1.200% maior do que no ano passado, na esteira de uma seca que já é uma das mais severas da história do bioma: segundo a SOS Pantanal, o nível do rio Paraguai no primeiro quadrimestre deste ano ficou mais baixo que na seca recorde de 1964. Tudo isso apenas quatro anos depois de um quarto do Pantanal virar fumaça. E, o mais assustador, muito antes do auge da estação seca, que só acontece em setembro.
Na Amazônia, o número de focos de queimada é 85% maior do que no ano passado, e a vazante de rios como o Tapajós já começou – sem que eles tenham tido tempo de se recuperar da seca recorde de 2023.
Numa sociedade funcional, a sequência de extremos de 2023 e 2024 (e de todos os anos da última década) teria colocado os líderes globais em modo pânico e acelerado medidas de eliminação de combustíveis fósseis e do desmatamento tropical. A política, porém, toca a proverbial lira enquanto Roma arde. Na quinta-feira passada (13), dez dias de negociações climáticas em Bonn, Alemanha, para preparar a COP29, em novembro no Azerbaijão, chegaram ao fim sem nenhum avanço. O espinhoso tema do financiamento climático, ponto central da COP29, travou pelas diferenças de sempre entre países ricos e pobres e arrastou consigo virtualmente todos os outros itens da agenda.
As incertezas políticas na Europa, com o crescimento da extrema-direita nas eleições legislativas de junho, e a potencial vitória de Donald Trump nos EUA em novembro, fazem os olhos da comunidade internacional se voltarem para a COP30, no Brasil, e para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em busca de liderança para salvar o clima e manter viva a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5oC. Mas, como diria o filósofo Rogerinho, do Choque de Cultura, “achou errado, otário”: Lula tem dedicado as últimas semanas a aumentar a pressão sobre o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, para liberar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Chegou a dizer a investidores sauditas que o Brasil não poderia “perder a oportunidade” de extrair mais combustível fóssil e fritar o planeta. No que depender da nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, não perderá: em sua posse, a nova mandachuva da estatal renovou seus votos de fidelidade ao lema “drill, baby, drill” – e repetiu a mentira do setor de que é o dinheiro do óleo que vai bancar a transição energética.
Não é só na sua sanha petroleira que Lula ameaça a própria liderança climática: seu governo tem usado todo tipo de subterfúgio para asfaltar a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), obra com potencial de implodir para sempre o controle do desmatamento. O insuspeito Ministério dos Transportes publicou no último dia 11 de junho um relatório atestando a viabilidade técnica e ambiental da estrada (mais ou menos o equivalente a um bêbado atestar que tem condições de dirigir). O documento, que chega a dizer que daria para fazer um alambrado em volta da BR para evitar impactos ambientais, está recheado de erros de avaliação, informações distorcidas e inverdades, segundo nota de organizações da sociedade civil divulgada ontem (21). Observatório da BR-319, Observatório do Clima e GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental apontam que os erros do relatório conduzem à conclusão equivocada de que haveria condições para garantir a reconstrução do chamado “trecho do meio” da rodovia.
Segundo as organizações, o relatório ignora dados e análises produzidos ao longo de vários anos pela academia e a sociedade civil, que apontam preocupações ambientais, sociais e econômicas em relação ao empreendimento. O Ministério dos Transportes ignora, por exemplo, o fato de que a licença prévia concedida para a pavimentação do trecho do meio está judicializada e é nula. Tal licença, concedida durante o governo Bolsonaro pelo Ibama, ignorou pareceres técnicos do próprio órgão que alertaram para a gravidade e caráter irreversível das consequências ambientais do asfaltamento.
Lançados enquanto o Pantanal arde em chamas e o início de seca na Amazônia prenuncia um tenebroso período de fogo no bioma, os dados da nova coleção do Mapbiomas Fogo dimensionam a extensão da tragédia. A cada ano, cerca de 18,3 milhões de hectares, ou 2,2% do país, são afetados pelo fogo. Entre 1985 e 2023, quase um quarto (23%) do território nacional queimou ao menos uma vez. Da área total incendiada, 68,4% foi de vegetação nativa. Os outros 31,6% queimaram nas chamadas áreas antropizadas, como pastagens e plantações. Mato Grosso, Pará e Maranhão concentram quase metade (46%) da área queimada. Os dados mostram ainda que 60% de todo o fogo ocorreu em imóveis privados e confirmam que o estrago se concentra na estação seca, entre julho e outubro – que registrou 79% das ocorrências de queimadas no Brasil.
Aparentemente o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), achou que não tinha errado o suficiente durante a tragédia climática que destruiu o estado. Na última semana, pouco mais de um mês após o início das enchentes, resolveu criar o Conselho do Plano Rio Grande – Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Rio Grande do Sul. O que poderia ser um passo importante na resposta à tragédia virou uma piada de mau gosto: dos 178 integrantes do conselho – formado por representantes do governo, sociedade civil e vítimas das enchentes – apenas quatro têm algum vínculo com a temática ambiental. Enquanto ambientalistas foram “esquecidos”, o agronegócio ganhou cinco cadeiras no órgão, que também contemplou representantes de indústrias (com três cadeiras), do setor de comércio e serviços (quatro), da construção civil (outras quatro), e grandes empresários como Nelson Sirotsky (Presidente do Grupo RBS), José Galló (ex-CEO da Lojas Renner), Paulo Hermann (ex-CEO da John Deere), Luiz Eduardo Batalha (fundador do Azeite Batalha) e Marciano Testa (CEO da Agribank).
Se essa moda pega… Um julgamento histórico da Suprema Corte do Reino Unido definiu, na última quinta-feira (20), que a aprovação de empreendimentos fósseis deve levar em conta o impacto climático da queima do petróleo, do gás e do carvão extraídos. A decisão abre precedente para que as chamadas emissões de “escopo 3” de gases de efeito estufa sejam consideradas na avaliação de impactos de novos projetos. Na prática, isso quer dizer que não apenas os gases emitidos durante a produção, mas também no consumo de fósseis (mesmo que exportados) passam a entrar na conta do impacto climático. Ativistas ingleses consideraram a decisão uma “imensa vitória”, relatou o Guardian. Que sirva de alerta para a Petrobras, que insiste em alardear a “descarbonização” do petróleo brasileiro sem levar em conta o escopo 3, como mostrou o Fakebook.eco.
Os países precisam reforçar suas metas climáticas já para 2030, caso a humanidade queira salvar a chance de controlar o aquecimento do planeta em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. Relatório do consórcio de cientistas Climate Action Tracker lançado no último dia 11/6 mostrou que não há espaço para adiar a adoção de metas mais ambiciosas para 2035. O levantamento concluiu ainda que os governos não estão implementando com a ambição e a urgência necessárias nem mesmo as metas insuficientes que apresentaram no último ciclo de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês).
Os cientistas estimam que, se cumpridas, as atuais metas gerariam 2,5ºC de aquecimento em 2030 (extrapolando em 1ºC a meta de Paris). A análise aponta direções em quatro principais temas – ambição, finanças e equidade, credibilidade e transparência – para que a próxima rodada de NDCs, em 2025, seja mais efetiva. A produção global de fósseis, por exemplo, precisa cair pelo menos 40% em relação aos níveis de 2022 até o final desta década.
"A Petrobras do povo brasileiro tem que promover uma transição energética justa e inclusiva. Ela precisa buscar a segurança energética com a reposição das nossas reservas de petróleo e gás". Alexandre Silveira (PSD-MG), ministro das Minas e Energia, dando sua definição muito particular de transição energética na qual se produz mais combustível fóssil.
O maior compositor vivo completou 80 anos e já fez até passeata contra a extrema-direita na França na semana de seu aniversário. Ficamos hoje com Chico Buarque, O velho Francisco, em dueto com Mônica Salmaso.
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Pantanal arde, mas Lula quer mais petróleo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU