25 Junho 2024
“Jesus vem tocar o que para nós é intocável. Não devemos temer de nos mostrar pelo que somos”, escreve o dominicano inglês Timothy Radcliffe no prefácio de um livro de Luigi Testa, onde reflete sobre o desejo de um homossexual encontrar Cristo.
Como acompanhar as pessoas homossexuais no caminho de fé? Como construir uma Igreja guardiã da verdade e aberta ao mundo, sem discriminações? Como ajudar a todos independentemente da sua orientação sexual, para realizar a sua vocação? Essas são todas perguntas hoje no centro do debate, perguntas que não dizem respeito apenas àqueles que pedem para entrar no Seminário ou no noviciado, mas a cada batizado. Avvenire tem oferecido nas últimas semanas diversas contribuições para ajudar o debate: nessa série entra também a contribuição, que publicamos abaixo, assinada pelo dominicano inglês Timothy Radcliffe, ex-mestre da Ordem dos Pregadores de 1992 a 2001. Trata-se do prefácio à tradução inglesa do livro de Luigi Testa “Via Crucis di un ragazzo gay” (Via Sacra de um jovem gay, em tradução livre, 64 páginas, 17,50 euros), publicado na Itália pela Editora Castelvecchi.
Via Crucis di un ragazzo gay, de Luigi Testa (Foto: Divulgação)
O prefácio foi publicado por Avvenire, 20-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Obrigado, Luigi, por ter tido a coragem de compartilhar sua dolorosa, mas belíssima Via Sacra.
Muitos percorrem sua própria via sacra sozinhos e assustados. Por causa de sua orientação sexual, porque são seropositivos, porque carregam cicatrizes de um abuso, ou por uma centena de outras razões. Mas você, Luigi, você sabe que nunca caminhamos sozinhos, porque Jesus caminha com cada um de nós.
“You'll never walk alone” era originalmente a estrofe de um musical, composto no ano em que nasci. Depois virou uma música que hoje fala a muitas pessoas, neste nosso tempo de grande solidão.
Cantam ela os torcedores do Liverpool e, durante a pandemia de Covid-19, se tornou a música de quem estava em isolamento, e também do pessoal médico.
Mas o Senhor caminha conosco num sentido ainda mais íntimo do que podemos imaginar, no centro do nosso ser, compartilhando as nossas dores e as nossas alegrias. Santo Agostinho escreve sobre Deus que Ele é mais íntimo de nós do que nós mesmos. Então, mesmo que às vezes pareça que estamos, não poderemos nunca estar realmente sozinhos, porque no nosso mais profundo íntimo, está Deus.
O livro de Luigi é um presente para todos aqueles que se sentem sozinhos, principalmente por causa de sua homossexualidade.
Ele ousa assumir-se e encoraja todos nós a fazê-lo, confiantes de que o Senhor nos ama assim como somos, e que não há necessidade de ter medo da luz. Após a história da queda no Gênesis, Adão e Eva precisam de roupas porque sentem vergonha. Mas na Igreja primitiva os catecúmenos eram batizados nus, porque o tempo da vergonha tinha acabado. Gregório de Nissa escrevia sobre o Batismo: “Não devemos mais nos cobrir com a figueira da vida amarga, mas jogar fora estas folhas caducas que cobrem a vida, retornar à presença do criador” (De virginitate, XIII, 1,15f). E uma antiga oração oriental pede: “Retire o véu dos nossos olhos; infunda em nós confiança; não permita que nos sintamos envergonhados ou embaraçados; não permita que nos desprezemos." (Euchologion Serapionis 12, 4).
As pessoas muitas vezes se apresentam ao mundo vestindo máscaras ou projetando falsas imagens de si mesmas, que esperam as possam proteger das feridas. Mas Deus ama cada um de nós assim como é, e quando as pessoas veem a nossa humanidade, com a sua beleza e fragilidade, a sua vulnerabilidade e força, até mesmo os nossos fracassos, como podem não nos amar? No maravilhoso romance Gilead de Marilynn Robinson, o idoso pastor escreve: “Todo rosto humano exige algo de você, porque você não pode deixar de compreender a sua singularidade, a sua coragem e a sua solidão." O ódio geralmente é para as abstrações: “aqueles imigrantes”, “aqueles estrangeiros”, “aqueles homossexuais”. O outro, em sua humanidade único, feita à imagem e semelhança de Deus, é abstraído como um “daqueles”. Luigi ousou mostrar-se assim como é, com o seu calor, o seu amor e o seu desejo, e nós gostamos dele por isso, mesmo que não o conheçamos pessoalmente.
O Papa Francisco escreveu: “A realidade é superior à ideia” (Evangelii Gaudium, 231). O amor de Deus é para aquilo que é real, para aquilo que é mantido na existência por Aquele cujo nome é Eu Sou.
Na noite anterior à sua morte, o evangelista João conta que Jesus lavou os pés dos seus discípulos.
Aquele gesto encarnava uma atenção particular e delicada para cada um dos discípulos. Chet Corey percebe bem isso, num dos seus poemas: “O pé de Mateus com o joanete, o calo / do dedão do pé de João – e os pés do Tomé, / grandes como batatas, com gota que dói / no dedão do pé esquerdo; os pés pequenos de Felipe, / os bem formados de Bartolomeu / e André; os pés leves de Tadeu, / que nem parece que caminhava entre os outros, / não como os de Tiago, filho de Alfeu, / de pele tão fria e seca ao toque" (“Footwashing”, National Catholic Reporter, 9.04.2004, pág. 16).
O caminho da cruz nos toca mais profundamente quando não nos limitamos a imaginar o sofrimento de Jesus, mas quando sentimos ternura por ele e pelo seu sofrimento físico. As mulheres muitas vezes sentem isso de modo mais intenso e foram sobretudo elas que se reuniram aos pés da cruz para estar perto de Jesus nos seus últimos momentos. Quando Maria Madalena encontra o Cristo ressuscitado no jardim, quer tocá-lo. Santa Catarina de Sena, dominicana do século XIV, tinha um profundo sentimento de ternura física por Jesus, que não é apenas um Salvador, mas nosso dulcíssimo Senhor. É raro que os santos do sexo masculino consigam sentir ou expressar a mesma intimidade com o Jesus sofredor.
Há, por exemplo, o maravilhoso poema de São João da Cruz, onde ele deseja Jesus como um amante: “Em uma noite escura,/ De amor em vivas ânsias inflamada / Oh! ditosa ventura! / Saí sem ser notada, / Já minha casa estando sossegada. / [...] Esquecida, quedei-me, / O rosto reclinado sobre o Amado; / Tudo cessou. Deixei-me, / Largando meu cuidado / Por entre as açucenas olvidado" (Noite Escura).
Na sua Via Sacra, o dom de Luís é abrir-nos todos à mais profunda ternura pelo Senhor, que ele deseja abraçar, beijar e acariciar. E isso dá ao mesmo tempo alegria e dor profunda ao seu caminho com Cristo. Na décima primeira estação, quando Jesus é pregado na cruz, escreve: “Aquelas mãos – que tantas vezes me acariciaram, que me seguraram enquanto perdia o equilíbrio e me levantaram – agora estão pregadas, imóveis, paradas. Você não pode mais me abraçar; você não pode me acariciar. Aqueles pés – que tantas vezes caminharam comigo, que tantas vezes eu teria gostado de cobrir de beijos, como faz Maria na véspera de sua paixão – agora estão presos na cruz com pregos, paralisados. Você não pode mais caminhar comigo. Você não pode mais correr atrás de mim se eu fugir".
Luigi conhece com intensidade também outra coisa sobre o corpo do Senhor: o seu rosto, por exemplo. Israel queria ver o rosto de Deus – “O Senhor faça resplandecer o Seu rosto sobre nós” (Sl 67) –, mas não podia vê-lo e não morrer. Esse rosto, agora, se fez carne e sangue no rosto do homem que morreu na cruz.
Quantas vezes queremos ver aquele rosto que nem sequer podemos imaginar? É essa a nossa felicidade inimaginável, a visão beatífica. A vida e o amor ensinaram a Luigi a buscar esse rosto. Quando Jesus encontra Verônica, na sexta estação, escreve: “A mulher fica lá, enquanto você é levado embora e ainda se vira para olhar para ela. Nas mãos o pano com o qual ela secou seu rosto, e que agora traz impressos - com sangue – seus dulcíssimos traços. Seu rosto tão lindo, meu dulcíssimo Jesus, Beleza coroada de espinhos, beleza escarnecida, beleza desprezada e rejeitada. Beleza sujada."
A beleza de cada rosto nos prepara para ver aquele cujo rosto é o mais belo e em cuja luz todos os rostos resplendecem. Geard Manley Hopkins, o poeta jesuíta, escreve: “Cristo brinca em dez mil lugares, / belo na aparência, e belo não no olhar, / mas nos traços dos humanos rostos, para o Pai” (As Kingfishers catch fire).
Na obra de Michelangelo, na Capela Sistina, vemos Deus estendendo a mão para tocar o Adão adormecido e dar-lhe vida. Como no Gênesis, Adão não foi criado apenas com uma palavra, como os outros animais, mas Deus “forma o homem do pó da terra” (2,7). Jesus vem para tocar o intocável: os doentes, até os leprosos. Ele é o toque de Deus, que cria e que cura. E a “mão de Deus", como o chama o dominicano japonês Shigeto Oshida.
Luigi percebe profundamente a beleza daquele toque e o deseja. No final das estações, pergunta com força: “Agora que cheguei ao fim, mantenha-me com você. Não serei obediente como Madalena, não vou parar no seu ‘não me toque, não me segure’. Em vez disso, eu tocarei em você. Eu segurarei você. Não me separarei de você e ficaremos juntos para sempre no jardim da ressurreição”.
O valor da nossa corporeidade está no centro dos maiores ensinamentos cristãos: a criação, a encarnação, o dom do corpo de Cristo na Eucaristia, a ressurreição dos mortos. Como podemos amar a nossa fé se tivermos medo da nossa corporeidade e se não ousarmos olhar-nos na cara e olhar para o outro e no outro ver a imagem do nosso Deus? De forma encantadora, Luigi faz inclinar Jesus para escrever no chão, para que a mulher acusada de adultério possa ver o seu rosto: “Talvez, quem sabe, ele tenha se abaixado com a desculpa de escrever no chão porque queria que você visse o seu rosto, não apenas as pernas, os pés. Você não sabe quantas mulheres, quantos homens, vão lhe invejar, Maria, porque foi dado a você encontrar o seu rosto enquanto todos lhe condenavam. Você não sabe quantos arrastados nus, serão jogados sem misericórdia diante de rostos enfurecidos, sem nenhum pudor, num julgamento sem respeito por qualquer intimidade, e não encontrarão rosto para lhes dizer: ‘Eu não te condeno’”.
No fim da primeira sessão do Sínodo perguntei a uma mulher – que respeito e admiro – o que pensava na Síntese que havia sido aprovada. Ela respondeu que era demasiado teológica. "O que você quer dizer?”, perguntei a ela. “Demasiado abstrata.” É paradoxal que a teologia cristã de um Deus que se fez carne possa ser considerada abstrata. No entanto, muitas vezes essa teologia é realmente abstrata, longe do batimento do coração, do tato e do sabor da humanidade, da nossa dor e da alegria que vivemos. Yves Congar, um dos Padres do Concílio Vaticano II, gostava de citar Charles Péguy: “Não o verdadeiro, mas o real”. A Via Sacra de Luigi fala de um cristão gay que segue o Senhor na complexidade real de uma vida humana. Graças a Deus. E graças a Luigi.
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Assim a história de um jovem gay nos fala de Deus e das nossas fragilidades. Prefácio de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU