17 Junho 2024
A ironia é uma virtude maravilhosa. Prova disso é o encontro do pontífice com cerca de uma centena de comediantes provenientes de todo o mundo. Afinal, o bom humor ajuda a encarar o que acontece com o espírito certo.
O comentário é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano. O artigo foi publicado em La Repubblica, 14-06-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os frades de “Francesco giullare di Dio” [Francisco, o bobo da corte de Deus], do grande Rossellini, entendem sua missão girando até ficarem tontos e caírem no chão, atordoados, rindo de si mesmos como os bufões. Em suma, não como os sábios sufis. A direção da queda deles lhes indicaria aonde deviam ir pregar. Martin Scorsese, um dos diretores que mais bem soube retratar a violência e as ambivalências do mal, inclui este entre seus filmes favoritos. Só quem tem consciência do mal pode ter a lucidez do palhaço ou do bobo da corte.
Kierkegaard nos ensinou isso, afinal. E Francisco o reiterou em uma audiência reservada a mais de uma centena de protagonistas do mundo do humor: atores, artistas, cartunistas e escritores. Estavam lá Whoopi Goldberg e Stephen Colbert. Entre os italianos, Littizzetto e Bergonzoni, Geppi Cucciari, Cristian De Sica, Elio e Gene Gnocchi, e muitos outros de vários países do mundo [do Brasil, estavam Cacau Protásio, Cris Werson e Fabio Porchat].
Os guardas suíços se preparam para a passagem do presidente de Cabo Verde para a Sala Clementina, onde os comediantes já estão sentados à espera do papa. Ficam em posição de sentido e permanecem imóveis em seus uniformes. Depois de um instante de suspensão, muitos – que não entendem o protocolo – caem na gargalhada no meio desse evento de austera solenidade, totalmente incompreendido como se fosse um espetáculo. É a total subversão dos papéis: os comediantes tornam-se o público espectador, e os guardas, atores cômicos, apesar de sua própria vontade.
A solenidade é virada do avesso como uma meia, e estamos no meio da comédia dos equívocos. Não podia haver um começo melhor para um encontro assim.
Há algo no agir de Francisco, em sua linguagem, que o aproxima dos bobos da corte. Em 2022, o filho de Charlie Chaplin, Eugene, presenteou-o com a estatueta simbólica do Prêmio Charlot. E Francisco é sensível às figuras cômicas, a ponto de ter assumido, na pregação da Páscoa de 2017, o papel do “Matto”, o equilibrista que zomba de Zampanò em “A estrada da vida”, de Fellini. E elogiou sua “saudável loucura”. Outro mal-entendido: o pregador se torna um equilibrista.
O papa ri, não apenas “sorri”. Suas fotos são memes. E sua risada combina com as expressões sérias e contidas (“cara de vinagre”, diz ele) que ele assume em outros momentos. Em suma, ele é tudo menos uma figura impassivelmente hierática. É um ator trágico e cômico. E Francisco admite: é mais fácil ser o primeiro do que o segundo.
Sabemos que, há 40 anos, ele reza todos os dias uma oração de São Tomás Moore que começa assim: “Dai-me, Senhor, o sendo de humor”. O santo, que acabaria decapitado, mártir de Henrique VIII pela sua fé, continua (e com ele o papa) pedindo também a graça de uma boa digestão. “Bom almoço e até mais” é a saudação já tradicional com a qual ele conclui o Ângelus.
Na sala, ele confiou a leitura da oração a Litizzetto: a comediante se torna orante. Essa também é uma forma de mal-entendido. Afinal, a fé é uma forma de humorismo.
A ironia é uma “virtude maravilhosa”, porque revela a provisoriedade da vida e ajuda a encarar o que acontece com o espírito certo. Portanto, força-nos de alguma forma a uma transcendência, isto é, a transcender a situação tal como a conhecemos.
O olhar humorístico nos ajuda a compreender aspectos inéditos, revelando-nos a vida como um poliedro e não como uma esfera redonda. Muda o nosso horizonte com uma desorientação repentina, inusitada, inesperada. Essa dimensão de surpresa impede-nos de permanecer apegados, colados à realidade de forma racional e desencantada. O humor nos impede de reduzir o real à ideia que dela temos. Corrói o Iluminismo, mas também a sociedade do bem-estar e talvez até a modernidade. Por isso, também no amor, vence quem faz rir.
Em algumas épocas, a risada foi diretamente comparada à pregação pascal: o risus paschalis, mesmo que, no tempo das nossas paixões tristes, isso nos pareça uma piada. A própria Bíblia, confirma Francisco, “é rica em momentos de ironia, nos quais são zombadas a presunção de autossuficiência, a prevaricação, a injustiça, a desumanidade quando se revestem de poder e às vezes até de sacralidade”. E o próprio Deus é pego rindo.
O humorismo é uma lente visual, como as de Dippold imortalizadas na “Antologia de Spoon River”: faz-nos compreender as coisas de uma forma diferente e alavanca as incongruências que existem e que não tínhamos visto. Rimos justamente porque percebemos um contraste, a energia que se cria ao aproximar os polos opostos. A risada tem uma dimensão elétrica, até mesmo em seu efeito sobre os músculos.
É por isso que, para o Papa Francisco, este é o “milagre” dos comediantes: “Vocês conseguem fazer sorrir também lidando com os problemas, com os fatos pequenos e grandes da história. Denunciem os excessos de poder. Deem voz a situações esquecidas. Evidenciem os abusos. Assinalem os comportamentos inadequados...”.
Por meio do talento da risada, hoje são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica. E elas nos são fornecidas de forma acessível e popular, muitas vezes até com um estilo corrosivo e pontiagudo.
Em um momento em que a ordem mundial está subvertida, às vezes somente um chiste consegue inverter o debate e levar a pensar. Não é por acaso que justamente o humorismo e a comicidade são coisas proibidas e banidas nas ditaduras, porque são percebidas como uma ameaça: com um espírito de liberdade e de senso crítico, elas levam a “sonhar com novas versões do mundo”.
O humorismo revela a ambição e reduz à humildade. Quantas vezes vimos o cortejo papal de carros grandes e luxuosos seguido pelo carro popular de Francisco? É cômico precisamente porque assim se subverte a percepção comum do poder e da importância, e um Fiat Idea branco pode se achar um Mercedes S 680 preto e brilhante.
Trata-se de uma versão do célebre conto de fadas de Andersen, mesmo que aqui ninguém grite – pelo menos em público – “o papa está nu!”. Nu, porém, como ficou o santo de Assis, filho de um comerciante de tecidos finos.
A piada tem algo em comum com os sonhos. E é a dimensão onírica que nos reconcilia com a realidade, graças a seu poder de solvente emocional, de agente gastroprotetor. É uma experiência que nos leva a nos desligarmos de nós mesmos, das nossas ideias estereotipadas, das nossas convicções. Isso absolutamente não é puro “entretenimento”, mas sim uma contribuição para a construção de uma cultura mais serena e livre de veneno, da qual precisamos desesperadamente.
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Papa Francisco, os “bobos da corte” de Deus e o milagre do riso. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU