“Os artistas são olhos que sonham, são a voz das inquietações humanas.” Discurso do Papa Francisco

Reprodução da obra de Pablo Picasso, Guernica | Foto: Wikimedia Commons

03 Junho 2023

Na manhã de sábado, 27 de maio, no Palácio Apostólico do Vaticano, o Papa Francisco recebeu em audiência os participantes do congresso promovido por La Civiltà Cattolica com a Georgetown University sobre o tema “A estética global da imaginação católica”.

A Sala de Imprensa da Santa Sé, 27-05-2023, publicou o discurso que o papa dirigiu aos presentes durante o encontro. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Caros irmãos e caras irmãs, bem-vindos!

Saúdo e agradeço ao Pe. Antonio Spadaro, diretor de La Civiltà Cattolica, e ao Prof. John DeGioia, reitor da Georgetown University. Estou feliz em encontrá-los enquanto ocorre o congresso que reúne poetas, escritores, roteiristas e diretores de várias partes do mundo em torno do tema da imaginação poética e da inspiração católica.

Sei que, nestes dias, vocês refletiram sobre os modos por meio dos quais a interroga a vida contemporânea, procurando assim responder à fome de significado. Esse “significado” não é redutível a um conceito, não. É um significado total que envolve poesia, símbolo, sentimentos. O verdadeiro significado não é o do dicionário: esse é o significado da palavra, e a palavra é um instrumento de tudo o que está dentro de nós.

Amei muitos poetas e escritores na minha vida, entre os quais recordo especialmente Dante, Dostoiévski e outros ainda. Também devo agradecer aos meus estudantes do Colegio de la Inmaculada Concepción, em Santa Fe, com os quais compartilhei as minhas leituras quando eu era jovem e lecionava literatura. As palavras dos escritores me ajudaram a entender a mim mesmo, o mundo, o meu povo; mas também a aprofundar o coração humano, a minha vida pessoal de fé e até a minha tarefa pastoral, também agora neste ministério.

Portanto, a palavra literária é como um espinho no coração que move à contemplação e nos põe a caminho. A poesia é aberta, joga você para outra parte. A partir dessa experiência pessoal, eu gostaria hoje de compartilhar com vocês algumas considerações sobre a importância do seu serviço.

Eu gostaria de expressar a primeira assim: vocês são olhos que olham e que sonham. Não apenas olham, mas também sonham. Nós, seres humanos, ansiamos por um mundo novo que provavelmente não veremos plenamente com os nossos próprios olhos, mas o desejamos, buscamos, sonhamos com ele. Um escritor latino-americano dizia que temos dois olhos: um de carne e outro de vidro. Com o de carne, olhamos aquilo que vemos; com o de vidro, olhamos aquilo que sonhamos. Pobres de nós se deixarmos de sonhar, pobres de nós!

O artista é a pessoa que, com seus olhos, olha e ao mesmo tempo sonha, vê mais em profundidade, profetiza, anuncia uma forma diferente de ver e de entender as coisas que estão debaixo dos nossos olhos. De fato, a poesia não fala da realidade a partir de princípios abstratos, mas pondo-se à escuta da própria realidade: o trabalho, o amor, a morte e todas as pequenas grandes coisas que preenchem a vida. E, nesse sentido, ajuda-nos a “entender a voz de Deus também a partir da voz do tempo” [1]. O olho de vocês é – para citar Paul Claudel – um “olho que escuta”.

A arte é um antídoto contra a mentalidade do cálculo e da uniformidade; é um desafio ao nosso imaginário, ao nosso modo de ver e de entender as coisas. E, nesse sentido, o próprio Evangelho é um desafio artístico, com uma carga “revolucionária” que vocês são chamados a expressar graças à genialidade de vocês, com uma palavra que protesta, chama, grita. Hoje, a Igreja precisa da genialidade de vocês, porque precisa protestar, chamar e gritar.

Gostaria de dizer, porém, uma segunda coisa: vocês também são a voz das inquietações humanas. Muitas vezes, as inquietações estão sepultadas no fundo do coração. Vocês sabem muito bem que a inspiração artística não é apenas reconfortante, mas também inquietante, porque apresenta tanto as realidades belas da vida quanto as trágicas. A arte é o terreno fértil onde se expressam as “oposições polares” da realidade [2], que requerem sempre uma linguagem criativa e não rígida, capaz de veicular mensagens e visões poderosas.

Por exemplo, pensemos em quando Dostoiévski em “Os irmãos Karamazov” conta sobre um menino, pequeno, filho de uma serva, que atira uma pedra e atinge a pata de um dos cães do senhor. Então, o senhor atiça todos os cães contra o menino. Ele foge e tenta se salvar da fúria da matilha, mas acaba sendo despedaçado sob os olhares satisfeitos do general e os desesperados da mãe. Essa cena tem uma potência artística e política enorme: fala da realidade de ontem e de hoje, das guerras, dos conflitos sociais, dos nossos egoísmos pessoais. Para citar apenas um trecho poético que nos interpela.

E não estou me referindo apenas à crítica social que está nesse trecho. Estou falando das tensões da alma, da complexidade das decisões, da natureza contraditória da existência. Há coisas na vida que, às vezes, nem conseguimos compreender ou para as quais não encontramos as palavras adequadas: esse é o terreno fértil de vocês, o campo de ação de vocês. E esse é também o lugar onde muitas vezes se faz a experiência de Deus, uma experiência que é sempre “transbordante”: não se pode pegá-la, você a sente e vai além; é sempre transbordante a experiência de Deus, como um recipiente onde a água cai continuamente e, depois de um tempo, se enche, e a água extravasa, transborda.

Isto é o que eu gostaria de pedir hoje também a vocês: vão além das fronteiras fechadas e definidas, sejam criativos, sem domesticar as ansiedades de vocês e as da humanidade. Tenho medo desse processo de domesticação, porque tira a criatividade, tira a poesia. Com a palavra da poesia, recolham os desejos inquietos que habitam o coração do ser humano, para que não esfriem e não se apaguem.

Essa obra permite ao Espírito agir, criar harmonia dentro das tensões e das contradições da vida humana, manter aceso o fogo das paixões boas e contribuir para o crescimento da beleza em todas as suas formas, aquela beleza que se expressa precisamente por meio da riqueza das artes.

Esse é o seu trabalho de poetas, narradores, diretores, artistas: dar vida, dar corpo, dar palavra a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza. É um trabalho evangélico que nos ajuda a compreender melhor também a Deus, como grande poeta da humanidade. Irão lhes criticar? Tudo bem, aguentem o peso da crítica, buscando também aprender com a crítica. Mas, mesmo assim, não deixem de ser originais, criativos. Não percam o estupor de estarem vivos.

Portanto, olhos que sonham, voz das inquietações humanas. E, por isso, vocês também têm uma grande responsabilidade. E qual é? É a terceira coisa que gostaria de lhes dizer: vocês estão entre aqueles que moldam a nossa imaginação. Isso é importante. De fato, o trabalho de vocês tem uma consequência sobre a imaginação espiritual das pessoas do nosso tempo, especialmente no que diz respeito à figura de Cristo. Neste nosso tempo – como já tive oportunidade de dizer – “precisamos da genialidade de uma linguagem nova, de histórias e imagens poderosas, de escritores, poetas, artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem do Evangelho, de nos fazer ver Jesus” [3].

A obra de vocês nos ajuda a ver Jesus, a curar a nossa imaginação de tudo o que obscurece o rosto dele ou, pior ainda, de tudo o que quer domesticá-lo. Domesticar o rosto de Cristo, como que tentando defini-lo e fechá-lo nos nossos esquemas, significa destruir sua imagem. O Senhor nos surpreende sempre, Cristo é sempre maior, é sempre um mistério que de algum modo nos escapa. É difícil colocá-lo dentro de um marco e pendurá-lo na parede. Ele sempre nos surpreende, e, quando nós não sentimos que o Senhor nos surpreende, algo não funciona: o nosso coração é finito e fechado.

Eis o desafio para a imaginação católica do nosso tempo, o desafio que é confiado a vocês: não “explicar” o mistério de Cristo, que na realidade é inesgotável; mas fazer com que o toquemos, fazer com que o sintamos imediatamente próximo, entregá-lo a nós como uma realidade viva e fazer com que captemos a beleza de sua promessa. Porque sua promessa ajuda a nossa imaginação: ajuda-nos a imaginar de modo novo a nossa vida, a nossa história e o futuro da humanidade!

E aqui volto a outra obra-prima de Dostoiévski, pequena, mas que contém todas essas coisas: as “Memórias do subsolo”. Lá dentro estão toda a grandeza da humanidade e todas as dores da humanidade, todas as misérias, juntas. Esse é o caminho.

Caros amigos, obrigado pelo serviço de vocês. Continuem a sonhar, a se inquietar, a imaginar palavras e visões que nos ajudem a ler o mistério da vida humana e orientem as nossas sociedades rumo à beleza e à fraternidade universal. Ajudem-nos ainda a abrir a nossa imaginação para que ela supere os estreitos confins do eu e se abra ao santo mistério de Deus. Vão em frente, sem se cansar, com criatividade e coragem! Eu os abençoo e rezo por vocês; e vocês também, por favor, rezem por mim. Obrigado.

Notas

1. RAHNER, K. La libertà di parola nella Chiesa: le proposte del cristianesimo. Turim: Borla, 1964, p. 37.

2. Cf. GUARDINI, R. L’opposizione polare: saggio per una filosofia del concreto vivente. Brescia: Morcelliana, 1977.

3. “Prefazione”. In: SPADARO, A. Una trama divina: Gesù in controcampo. Veneza: Marsilio, 2023, p. 10.

Leia mais