13 Junho 2024
“Construímos sociedades monstruosas através de estilos de vida esbanjadores que ultrapassam as condições de vida endógenas dos ambientes onde estão localizadas. E para satisfazer a ganância infinita do Minotauro Global que criamos, os países ricos e as grandes corporações aliam-se a regimes autoritários no Sul Global que desrespeitam os direitos dos seus habitantes e degradam os seus ambientes naturais, mesmo que isso signifique assediar as comunidades locais ou até a morte dos defensores dos territórios”. A reflexão é de Rosana Cervera Zumel, em artigo publicado por El Salto, 07-06-2024. A tradução é do Cepat.
A guerra é o uso da força para resolver diferenças e conflitos; é a imposição de um interesse particular pela violência. A guerra é o resultado do nosso egoísmo, individualismo, competitividade, arrogância, racismo, da nossa inveja e, em última análise, do nosso desejo ilegítimo de nos apropriarmos do que pertence aos outros. Todos esses são valores exaltados pela nossa civilização patriarcal-capitalista e servem como justificativa oportuna para travar a guerra.
A atual fase terminal do capitalismo continua a sua dinâmica inerente de pilhagem dos recursos e territórios e de expulsão ou massacre de populações como se tudo fosse sua propriedade, assim como tem feito ao longo dos últimos séculos. Agora que enfrentamos o esgotamento dos minerais e das energias fósseis, as guerras para monopolizar as terras férteis, os alimentos e a água são desencadeadas com toda a sua crueldade. E isto não para por aqui. O futuro será assim.
Mas, sejamos claros, ninguém será o vencedor destas guerras: a humanidade perde, especialmente as populações dos territórios em conflito, como as da República Democrática do Congo, do Sudão, da República Centro-Africana, mas também da Ucrânia e de Gaza com suas grandes reservas minerais, petróleo e gás. Só os senhores da guerra ganham: homens ricos do Norte e do Sul globais, financistas, políticos, empresas de energia, de armas e de segurança. Em última análise, ganham as elites mundiais.
Esta forma patriarcal de ver e dominar o mundo é a estrutura essencial sobre a qual se funda o militarismo, que além de provocar guerras nos países periféricos, combina a fortificação das fronteiras e o aumento das medidas de segurança interna em cada país. Nos seus últimos relatórios, a Anistia Internacional alerta-nos que os Direitos Humanos estão retrocedendo em todo o mundo, não apenas em locais onde existem conflitos armados, mas também nas nossas sociedades liberal-democráticas do Norte Global. Os Estados estão aplicando uma decidida política de repressão violenta dos protestos sociais para silenciar a voz das pessoas comuns que se opõem às guerras, ao racismo, à exclusão e à desigualdade obscena em que nos obrigam a viver e a brigar uns com os outros.
Se, por um lado, as sociedades europeias, particularmente a espanhola, expressam repetidamente o seu antibelicismo, por outro lado, os líderes europeus respondem a interesses que são contrários à vontade popular. Os interesses das grandes empresas de energia e das finanças, da indústria bélica e das ideologias mais reacionárias estão nos impondo as suas agendas contra a nossa conveniência e até pondo em risco a nossa capacidade de sobreviver como espécie em termos ecológicos, e a da maioria da humanidade em termos ecossociais e de paz.
Nas instituições multilaterais (ONU, OTAN, UE), os discursos que promovem a opinião pública e política favorável à guerra estão se tornando comuns. Destacados representantes institucionais (Joseph Borrell, Robles, etc.) enviam mensagens em que fazem referência à necessidade de se preparar para a guerra, de aumentar o orçamento militar, de retomar o serviço militar obrigatório porque, segundo eles, a guerra está às portas da Europa. De que guerra estão falando? Da guerra contra a emergência climática? Das guerras preventivas contra zoonoses que nos deixarão doentes, como a recente pandemia da Covid-19? Da guerra contra a crescente pobreza e desigualdade nas nossas cidades? Da guerra contra o racismo, do fechamento das fronteiras e da desumanização do outro representada pelos fascismos que já minam as nossas democracias e os nossos Estados de direito? As armas e os exércitos são inúteis contra estas ameaças que já são reais.
O negócio da guerra segue a lógica capitalista: investir e depois recuperar o investimento com lucro. Mas há entidades financeiras que não intervêm neste mercado da morte, como os bancos éticos que denunciam o elevado custo econômico das guerras e se recusam a financiar a produção ou o comércio de armas. Um relatório da Aliança Global de Bancos por Valores (GABV) mostra que, entre 2020 e 2022, pelo menos um bilião de dólares foi investido na indústria global de armamento. Ao mesmo tempo, os preços das ações das empresas fabricantes de armas dispararam. A GABV oferece um exemplo: após a mais recente escalada da ocupação militar israelense de Gaza, o valor de mercado de algumas das maiores empresas de armamento estadunidenses aumentou cerca de 23 bilhões de dólares.
“Não poderá haver paz e estabilidade enquanto as instituições financeiras continuarem a financiar a produção e o comércio de armas”, afirma a Aliança Global de Bancos por Valores na sua Declaração de Milão 2024, ao mesmo tempo que explica qual é a sua missão: colocar o financiamento “a serviço das pessoas” e do planeta, o que implica defender a paz e a estabilidade para enfrentar os principais desafios do nosso tempo, como as mudanças climáticas e as desigualdades sociais”.
Se quisermos construir a paz, temos de colocar sob controle os militares e os interesses conflitantes das elites econômicas, energéticas e financeiras. No entanto, a OTAN obriga a Espanha a aumentar o orçamento militar até 2%: 12,8 bilhões de euros; isto é, a maior despesa militar – direta e indireta – da nossa história, que será feita em detrimento dos recursos necessários para satisfazer as necessidades das pessoas e dos territórios.
Além do assassinato e do sofrimento das populações e da destruição dos meios de subsistência, os conflitos bélicos implicam uma deterioração catastrófica dos ecossistemas: destruição da flora e da fauna, poluição da água, terras minadas, degradação dos solos e das terras férteis, incêndios florestais, deslocamento de animais e perda de colheitas, entre outros impactos. A Convenção de Genebra, no capítulo VI, exige que os países protejam a natureza durante conflitos e guerras. Os exércitos, as guerras e os conflitos armados têm um elevado custo ecológico cuja destruição nunca foi compensada, nem os danos reparados.
Construímos sociedades monstruosas através de estilos de vida esbanjadores que ultrapassam as condições de vida endógenas dos ambientes onde estão localizadas. E para satisfazer a ganância infinita do Minotauro Global que criamos, os países ricos e as grandes corporações aliam-se a regimes autoritários no Sul Global que desrespeitam os direitos dos seus habitantes e degradam os seus ambientes naturais, mesmo que isso signifique assediar as comunidades locais ou até a morte dos defensores dos territórios.
É o caso, por exemplo, da hondurenha Berta Cáceres, assassinada em 2016 por se opor à construção de uma barragem hidrelétrica que privaria a sua comunidade de Lenca do rio Gualcarque, do qual depende a sua vida. Oito anos se passaram desde o assassinato e os culpados não foram condenados. Não é por acaso que, durante décadas, o mapa das guerras e dos conflitos existentes coincide com o mapa mundial das matérias-primas, dos hidrocarbonetos e das principais rotas comerciais internacionais.
O nosso estilo de vida consumista não é pago apenas com petróleo; é pago cada vez mais com sangue, com vidas humanas e de outros animais, com destruição ambiental. Sabemos que o nosso modelo civilizacional já está raspando os recursos que começam a escassear, dizimando populações, levando-as à morte ou submetendo-as à guerra. Mas para as nossas sociedades neocoloniais vale qualquer ação, em vez de autolimitar a voracidade do Minotauro Global.
No ecofeminismo sabemos que o modo de vida imperial das sociedades do Norte Global, que representa apenas 18% da população mundial, não pode continuar a se sustentar pela crescente desigualdade, criando ilhas de bem-estar material protegidas por exércitos e, ao mesmo tempo, excluindo a maioria da humanidade, levando-a a condições de vida material, social e ecologicamente inviáveis. Sem justiça ecossocial global entre o Norte e o Sul não haverá paz porque não pode ser uma paz adaptada às necessidades do Ocidente, baseada no extrativismo e na exploração dos países do Sul Global.
Há uma alternativa a esta pulsão de morte e autodestruição: priorizar a sustentabilidade da vida, de todas as vidas, em detrimento da acumulação econômica nas mãos de uma minoria. Compartilhar bens comuns, distribuir trabalhos de cuidado, o direito e o dever de todos cuidarem da reprodução da espécie. Trabalhar a partir do ecologismo, do feminismo e do pacifismo para estabelecer relações de apoio mútuo e de cooperação entre pessoas e países, porque é graças à cooperação, e não à competição bélica, que a espécie humana sobreviveu e prosperou ao longo de centenas de milhares de anos.
A paz é o objetivo utópico das ecofeministas e, ao mesmo tempo, a nossa proposta realista. Uma paz baseada na justiça ecossocial, na igualdade de todas as pessoas do mundo, na reconciliação com o nosso planeta maltratado, no respeito amoroso por todos os seres vivos com quem partilhamos a Terra. Aceitar o princípio da igualdade radical entre todos os seres humanos é a forma de parar de alimentar o capitalismo e o patriarcado, que são dispositivos de guerra contra as vidas e o planeta. Ajustar o nosso modo de vida aos limites planetários, optar pela frugalidade, questionar radicalmente o nosso modelo de produção e consumo. O decrescimento como projeto social é, como sabemos, o único caminho para a paz. Ignorá-lo é aceitar a guerra como único horizonte.
Quanto mais o discurso da guerra for reforçado, mais crescerão os gastos militares em detrimento do investimento social; aumentarão as opções autoritárias, os nacionalismos excludentes, a xenofobia, o racismo desumanizante e o fascismo.
A paz, o antibelicismo e o antimilitarismo são hoje, como sempre, uma questão feminista. O internacionalismo é pacifista e ecofeminista. É urgente que povos e movimentos feministas, ambientalistas e pacifistas se articulem numa chave internacionalista pela paz, pois é a única forma possível de construir uma alternativa ao regime de guerra ao qual os senhores da guerra nos querem forçar.
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Carta ecofeminista pela paz e pela vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU