Janja, Agamben, GLO, Intentona Bolsonarista, Golpe de Estado e Estado de Exceção: Como Janja conseguiu impedir que a ditadura militar fosse revivida no Brasil.
As primeiras-damas têm desempenhado um papel significativo na história política e social de diversas nações ao redor do mundo. Embora muitas vezes relegadas ao segundo plano e vistas apenas como coadjuvantes de seus maridos, algumas primeiras-damas transcenderam essas expectativas limitadas, utilizando suas posições de destaque para promover mudanças sociais, políticas e culturais.
De Eleanor Roosevelt, que se destacou como uma defensora dos direitos humanos e uma voz influente durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, a Eva Perón, cuja carismática liderança e trabalho em prol dos pobres a tornaram uma figura icônica na Argentina, essas mulheres mostraram que o papel de primeira-dama pode ser uma plataforma poderosa para a advocacia e a transformação social.
Explorando suas vidas e legados, podemos entender melhor como essas líderes influenciaram e continuam a moldar o curso da história mundial.
Rosângela da Silva, conhecida carinhosamente como Janja, emergiu como uma figura notável na política brasileira desde que se tornou a primeira-dama ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com um histórico de ativismo e engajamento social, Janja tem sido uma voz ativa em diversas causas, incluindo direitos humanos, justiça social e igualdade de gênero.
O artigo é de Alexandre da Silva Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Em 8 de janeiro de 2023, o Brasil enfrentou uma grave crise política quando manifestantes pró-Bolsonaro, insatisfeitos com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais, invadiram e vandalizaram várias instituições governamentais em Brasília. Este evento chocante foi amplamente comparado à invasão do Capitólio nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021.
Os manifestantes, predominantemente vestidos nas cores verde e amarelo e empunhando bandeiras nacionais, romperam as barreiras de segurança e atacaram simultaneamente o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Dentro desses edifícios, cenas de caos se desenrolaram com vidraças quebradas, móveis destruídos, paredes pichadas e obras de arte danificadas. A invasão, que durou várias horas, causou danos materiais significativos e chocou a nação pela sua violência e audácia.
Os manifestantes repetiam o discurso de Bolsonaro, alegando fraudes nas eleições, apesar de não haver evidências concretas que sustentassem essas acusações. A resposta das forças de segurança foi inicialmente insuficiente para conter a violência e a destruição, o que levou a críticas sobre a preparação e a reação das autoridades responsáveis.
A história do Brasil é marcada por episódios de golpes de estado e períodos de ditadura militar que moldaram profundamente a trajetória política e social do país. A compreensão desses eventos é crucial para entender as dinâmicas atuais da democracia brasileira e os desafios enfrentados pela nação.
O golpe de estado de 31 de março de 1964 é um dos eventos mais significativos na história recente do Brasil. Nesse dia, um grupo de militares, apoiado por setores conservadores da sociedade e por interesses estrangeiros, depôs o presidente João Goulart. Goulart, conhecido como Jango, havia implementado uma série de reformas sociais e econômicas que desagradaram às elites econômicas e militares, além de causar desconfiança nos Estados Unidos em plena Guerra Fria.
Tanques em frente ao Congresso Nacional após o golpe militar de 1964 | Foto: Agência Senado
A tomada do poder pelos militares foi rápida e sem resistência significativa. Em 1º de abril de 1964, o Congresso Nacional declarou a presidência vaga, formalizando o golpe. Com o golpe, iniciou-se um regime militar que duraria 21 anos, caracterizado por repressão política, censura, e a violação sistemática dos direitos humanos.
Durante a ditadura militar, o Brasil foi governado por uma série de presidentes militares, cada um consolidando o regime e implementando políticas de desenvolvimento econômico baseadas em grandes projetos de infraestrutura, mas também em repressão. Os anos iniciais foram marcados pelo Ato Institucional Número Cinco (AI-5) de 1968, que suspendeu garantias constitucionais, fechou o Congresso Nacional e permitiu ao governo prender e torturar opositores.
A censura aos meios de comunicação e a perseguição de ativistas, intelectuais, estudantes e qualquer pessoa vista como uma ameaça ao regime foram práticas comuns. Organizações como a Operação Bandeirante (Oban) e o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) ficaram conhecidas pela brutalidade de seus métodos.
Apesar da repressão, diversos grupos resistiram ao regime militar. Movimentos estudantis, organizações de esquerda, artistas e intelectuais formaram a linha de frente da oposição. Ao longo dos anos 1970, a pressão interna e externa por maior abertura política começou a crescer. A economia brasileira, inicialmente beneficiada por um crescimento acelerado, enfrentou sérios problemas, incluindo alta inflação e dívida externa.
Em 1979, o general João Figueiredo, último presidente militar, iniciou um processo de abertura lenta e gradual, conhecido como "abertura política". Esse processo culminou em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves como presidente, marcando o fim do regime militar. Embora Tancredo Neves tenha falecido antes de tomar posse, seu vice, José Sarney, assumiu a presidência, liderando a transição para a democracia.
Manifestação contra a Ditadura Militar, período que os militares governaram o Brasil (1964-1985) | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
O período de ditadura militar no Brasil deixou um legado complexo. Por um lado, houve desenvolvimento econômico artificial e modernização de infraestrutura; por outro, o custo humano foi elevado, com milhares de desaparecidos, torturados e mortos. As cicatrizes dessa época ainda são visíveis na sociedade brasileira, onde a memória das violações de direitos humanos e a luta pela justiça para as vítimas continuam a ser temas relevantes.
A Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, teve como objetivo investigar e documentar os abusos cometidos durante a ditadura, contribuindo para a reparação histórica. No entanto, o debate sobre esse período permanece inacabado, refletindo tensões atuais na política brasileira.
A história dos golpes de estado e da ditadura militar no Brasil é um lembrete poderoso dos perigos da ruptura democrática e da importância de defender as instituições democráticas. Esses eventos históricos sublinham a necessidade de uma sociedade vigilante e comprometida com os valores democráticos, para que tragédias similares não se repitam. A memória desses tempos difíceis serve como um alerta para as gerações futuras, destacando a importância da liberdade, da justiça e dos direitos humanos.
Logo após a intentona do dia 8 de Janeiro de 2023, o presidente Lula se viu em uma encruzilhada. Era necessário evitar a vandalização dos espaços públicos de Brasília, além de garantir o pleno funcionamento das instituições democráticas e judiciárias do país. No entanto, as medidas que se dispuseram para impedir as manifestações antidemocráticas, mostraram-se mais "perigosas" e "maliciosas" do que o presidente poderia prever, mas Janja previu.
Uma das medidas consideradas pelo presidente Lula foi a aplicação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), uma ferramenta legal que permite ao governo federal mobilizar as Forças Armadas para restaurar a ordem pública em situações de grave perturbação. A GLO é uma medida excepcional, utilizada em casos onde as forças de segurança pública estaduais não conseguem controlar a situação sozinhas.
No entanto, Janja teria se posicionado contra essa medida segundo relatos do próprio presidente Lula. Janja argumentou que a utilização da GLO poderia agravar ainda mais a situação, aumentar a tensão e a violência, além de enviar uma mensagem errada sobre a militarização da resposta governamental. Ela acreditava que era possível restaurar a ordem por meio de outras estratégias que não envolvessem o uso das Forças Armadas.
Janja com Lula, durante visita a Angola em agosto de 2023 |Foto: Ricardo Stucker
A intervenção de Janja foi considerada por muitos como crucial para a decisão final de Lula de não aplicar a GLO naquele momento. Em vez disso, o governo optou por reforçar a presença das forças de segurança pública e coordenar uma resposta integrada com as autoridades estaduais e municipais para conter os manifestantes e retomar o controle dos prédios públicos.
Aplicar a GLO, seria fazer tudo que os bolsonaristas queriam, dar aos militares a oportunidade de "salvar a pátria", tomar o poder, e efetivar o golpe de estado.
Giorgio Agamben, renomado filósofo italiano, em seu livro "Estado de Exceção", oferece uma análise perspicaz sobre o conceito de estado de exceção e seu impacto nas estruturas democráticas. Agamben argumenta que o estado de exceção não é apenas uma anomalia temporária, mas sim uma condição política cada vez mais prevalente em sociedades contemporâneas.
Segundo Agamben, o estado de exceção é caracterizado pela suspensão temporária das normas jurídicas e constitucionais, onde o poder soberano assume controle absoluto em nome da segurança e da ordem pública. Essa suspensão dos limites legais abre espaço para a arbitrariedade do poder e a erosão dos direitos individuais, criando um ciclo perigoso de justificação para medidas cada vez mais autoritárias.
A intervenção de Janja, ao se opor à aplicação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ressoa com as preocupações levantadas por Agamben sobre o estado de exceção. Ao rejeitar uma resposta militarizada à crise, janja demonstrou uma sensibilidade aguçada para os perigos da escalada autoritária em momentos de crise política.
Além disso, a postura de Janja destaca o papel das figuras não oficiais, como as primeiras-damas, na moldagem dos processos políticos e na defesa dos valores democráticos. Enquanto Lula estava no centro das decisões formais do governo, Janja exerceu uma influência discreta, mas poderosa, oferecendo uma voz de moderação e racionalidade em meio ao caos político.
A abordagem de Janja para lidar com a crise de janeiro de 2023 ecoa os argumentos de Agamben sobre a importância de resistir à lógica do estado de exceção e defender as instituições democráticas contra os impulsos autoritários. Sua intervenção não apenas ajudou a evitar uma escalada de violência, mas também serviu como um lembrete vívido dos perigos representados pelo enfraquecimento do Estado de direito.
Nesse sentido, a atuação de Janja não apenas ilustra as teorias de Agamben sobre o estado de exceção, mas também ressalta a relevância contínua desses conceitos para entender os desafios enfrentados pelas democracias contemporâneas. Como Agamben argumenta, a vigilância constante e o compromisso com os princípios democráticos são essenciais para resistir às tentações do autoritarismo e preservar a democracia para as gerações futuras.