18 Mai 2024
"O sistema de guerra que hoje estrutura toda a política mundial baseia-se inteiramente na dominação das coisas, a começar pelas armas, pela produção e pelo lucro: uma inversão de tendência, que parta precisamente daquela terra da Palestina, seria um sinal de renovada esperança".
O comentário é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 14-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra não só causa catástrofes imediatas, mas também revira e transtorna valores e processos de longo prazo. Entre as coisas mais preciosas que são postas em crise pela tragédia de Gaza está também o diálogo judaico-cristão empreendido depois do Concílio, destinado a redescobrir e partilhar tudo o que une as duas religiões. Agora não pode haver nada de mais distante e inaceitável para os cristãos do que o que está acontecendo em Gaza por obra das Forças Armadas e do Estado de Israel, enquanto qualquer protesto ou crítica a essa ação, quer venha das ruas ou de estudantes das universidades, da ONU ou até mesmo dos Estados Unidos é rejeitada e tachada de antissemitismo e, portanto, condenada como continuação de outra forma do Holocausto. Essa acusação é também reiterada para reafirmar que a operação em Gaza não pode cessar, apesar dos pedidos internacionais, até que “o trabalho esteja terminado”, como é chamado o massacre da população palestina, renomeada como Hamas. Tudo isso se baseia numa identificação do Estado de Israel com todo o povo judaico, incluindo aquele da diáspora, a partir daquela que é considerada uma filiação direta do Estado de Israel pelas Escrituras, invocada também como um selo da exclusiva soberania de Israel sobre toda a Terra Prometida “desde o mar até ao Jordão”, com Jerusalém indivisa “eterna capital de Israel”; esse é o axioma sustentado sobretudo pelos partidos religiosos, mas assumido de fato como legitimação também pelas políticas do governo leigo.
Essa concepção de um messianismo realizado, que não se acreditava ser possível formalizar numa Constituição escrita no momento da fundação do Estado, foi finalmente apoiada pela Lei Fundamental aprovada pelo Knesset em 19 de julho de 2018, com o impulso de Netanyahu, mas com a contrariedade do presidente Reuven Rivlin que temia suas consequências negativas para todos os judeus e para o próprio Estado de Israel. Tal Constituição define Israel como "o estado nacional do povo judaico", a Terra como sua pátria histórica e "o direito de exercer a autodeterminação nacional" (ou seja, os direitos políticos e de cidadania) como reservado "exclusivamente ao povo judeu". Trata-se de um estatuto que não admite nenhuma outra etnia, põe fim a qualquer forma de "dois povos e dois Estados" e, em última análise, exclui a própria existência de uma entidade palestina dentro do território do Estado, que é precisamente o "trabalho " a ser concluído em Gaza, mas também realizado na Cisjordânia.
É diante de tudo isso que o judeu Bernie Sanders, líder democrático estadunidense, escreveu a Netanyahu que “não é antissemita ressaltar que em pouco mais de seis meses o seu governo extremista matou 34 mil palestinos e feriu 77 mil, 70 por cento dos quais mulheres e crianças, e que os bombardeios deixaram um milhão de pessoas desalojadas, quase a metade da população de Gaza”; nem é antissemita o Tribunal de Haia, que adota medidas cautelares para conter o genocídio, nem Francesca Albanese, relatora da ONU para os direitos humanos.
E assim a condição essencial para que o diálogo cristão-judaico possa continuar e se enriquecer é que se faça distinção entre o povo judaico e o Estado de Israel, como queria Primo Levi, e entre a fé bíblica e a sua atual tradução política em Tel Aviv, a qual responde a uma leitura fundamentalista da Escritura que, como diz a Pontifícia Comissão Bíblica, é "um suicídio do pensamento", mas também pode tornar-se o suicídio de um Estado, e pode justificar o lamento de Miquéias ao ver os "governantes da casa de Israel construir Sião com o sangue e Jerusalém com o abuso." Portanto, o próprio Estado de Israel deveria iniciar um processo de mudança.
Nós, cristãos, podemos fazer sem abusos esse discernimento na nossa relação com os Judeus, porque não somos estranhos a Israel, os Judeus não são apenas “os nossos irmãos mais velhos”, eles são nós e nós somos eles. Esse é o verdadeiro diálogo judaico-cristão: até Jesus éramos um só, ele era judeu e ao mesmo tempo era Cristo, existe uma correspondência entre a Sinagoga e a Igreja, Templo e Cenáculo, a Arca e a Cruz, o Rabi e o Crucifixo, que é o que São Paulo escreveu para nós, romanos, falando dos Israelitas como “irmãos e consanguíneos segundo a carne, que possuem a adoção como filhos, a glória, as alianças, a concessão da lei, a adoração, as promessas, os patriarcas e de quem Cristo descende segundo a carne”.
Em virtude dessa unidade, ao contrário do que toda outra voz atual afirma hoje, nós podemos dizer que a verdadeira solução política para a questão palestina, e a verdadeira alternativa ao genocídio de um ou do outro povo, é a reconciliação entre Judeus e Palestinos na convivência em uma única Terra; e podemos fazer a proposta à Europa, e a toda a comunidade internacional, para apoiar esse processo, adotando o povo judaico e aquele palestino como "patrimônios da humanidade": essa é a figura jurídica instituída pela Convenção da UNESCO para a proteção do patrimônio cultural e natural a ser transmitido às gerações futuras, justamente porque representa “o elo entre o nosso passado, o que somos agora, e o que transmitiremos às gerações futuras”: e que outros povos são portadores de tradições e valores universais e perenes a transmitir ao mundo futuro mais que o judeu e o palestino?
A objeção é que os patrimônios de que se fala são os sítios, os complexos arquitetônicos e outras estruturas materiais a preservar para o futuro: mas não são os homens e os povos o maior patrimônio a salvar? A perda de um povo, seja o herero, o primeiro exterminado no século passado, ou o armênio, o judeu, o tutsi, o palestino, não é mais grave do que a perda da barragem de Assuã?
Essa seria também a forma de responder à forma mais penetrante de alienação e de dominação que hoje expropria a dignidade das pessoas e devasta a Terra, que consiste na submissão do homem ao domínio das coisas; o sistema de guerra que hoje estrutura toda a política mundial baseia-se inteiramente na dominação das coisas, a começar pelas armas, pela produção e pelo lucro: uma inversão de tendência, que parta precisamente daquela terra da Palestina, seria um sinal de renovada esperança.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Judeus e palestinos: patrimônio da humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU