22 Fevereiro 2024
"A história humana não é feita de 'bons e maus', justos e injustos', mas sim de relações de poder injustas e opressivas onde grupos e povos ocupam e têm ocupado lugares diferentes e conflitantes e em tempos distintos", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Eis o artigo.
Recentemente, diante do que algumas figuras importantes do Vaticano chamaram de “carnificina” o que está ocorrendo na faixa de Gaza, Edgar Morin, nos seus 102 anos de vida, aclamou: “Estamos vivendo uma tragédia horrível. Somos impotentes diante do que está acontecendo. Mas eu digo: testemunhe! Vamos resistir, não vamos esquecer. Coragem para encarar de frente”.
Sentimento de impotência frente a uma tragédia horrível na Palestina e a coragem de resistir e testemunhar são dois lados das histórias e das lutas das vítimas do mundo. Se somos, estamos ou sentimos impotentes frente à força político-militar de Israel e dos seus aliados, especialmente Estados Unidos e a Europa, o que podemos fazer? Negar a realidade geopolítica mundial e entrarmos em um mundo de ilusão mítica não é solução, não ajuda. Gritar ao mundo e aos nossos vizinhos de que isso está errado pode nos ajudar no imediato, nos descarregar o mal-estar do desespero e o sentimento de impotência, mas também não muda quase nada.
Como diz Morin, o primeiro passo é resistir. Resistirmos a não cair nos discursos desesperantes, que não gera esperança e nem palavras ou discurso articulado que nos aponte um caminho esperançador. Nesse resistir, não podemos nos esquecer do passado. Os judeus, por muitos séculos e em muitos lugares, foram vítimas constantes e sistêmicos do Ocidente cristão. Defender o direito de viver dos palestinos no Oriente Médio não pode nos levar a esquecer a história horrível da cristandade contra o povo judeu. Além disso, o povo judeu é distinto do Estado de Israel e os seus governantes.
A história humana não é feita de “bons e maus”, justos e injustos, mas sim de relações de poder injustas e opressivas onde grupos e povos ocupam e têm ocupado lugares diferentes e conflitantes e em tempos distintos. Precisamos de diálogos razoáveis (não necessariamente racionais), de pessoas razoáveis que reconhecem e sabem que não há ser humano “santo”, sem nenhum pecado na sua vida. Só esse tipo diálogo nos permitirá superarmos o medo e o ódio que iniciaram, vindo de uma longa história de conflitos e sofrimentos, essa mais recente brutal crise, que o governo de Israel quer terminar definitivamente com a expulsão ou eliminação dos palestinos em Gaza.
Por fim, e por início, a coragem de testemunhar, diz Morin. Testemunhar o quê?
Na perspectiva do cristianismo de libertação, como diz Hugo Assmann, a essência da boa-nova do cristianismo é testemunhar ao mundo que Jesus, que foi visto como culpado pelo sistema do Templo e pelo Império Romano, foi ressuscitado porque Deus viu que ele é inocente:
A novidade essencial da mensagem cristã, precisamente porque tenta introduzir na história o amor-fraterno a todas pessoas, consiste na afirmação central: as vítimas são inocentes e nenhuma desculpa ou pretexto torna justificável a sua vitimização. [...] A inocência da vítima, como elemento central da fé cristã, impõe-nos um vínculo de solidariedade com todas as vítimas que nos rodeiam. [...] Todas as vítimas inocentes da história, e todas as vítimas que nos rodeiam no mundo de hoje, recuperam, desta forma, a sua dignidade proeminente como 'vítimas', isto é, como pessoas que foram 'sacrificadas' através de uma violência sem justificativa. (ASSMANN, Hugo. The strange imputation of violence to Liberation Theology. Terrorism and Political Violence, vol. 3, n. 4, London: Frank Cass, 1991. p. 80-99)
Porque são vítimas de lógicas e sistemas sacrificiais violentas que marcam a história dos últimos séculos no Ocidente, é que precisamos defender o direito de viver dos palestinos contra essa carnificina. Não porque são palestinos, mulçumanos ou cristãos, mas sim porque são vítimas e têm direito de viver em dignidade. E se não temos “poder” para interromper essa matança, pois somos/estamos impotentes, como cristãos, temos pelo menos a tarefa de testemunharmos a inocência dessas vítimas. Pois há muitos setores do cristianismo e da sociedade que, em nome do seu deus e da sua religião, acusam esses palestinos de serem culpados do seu sofrimento.
Culpabilizar as vítimas é a essência das teologias sacrificiais mais presentes no mundo inteiro. Defender a inocência e o direito de viver das vítimas é a boa-nova do Evangelho.
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Frente à carnificina, testemunhar. O quê? Uma resposta do cristianismo de libertação. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU