14 Mai 2024
"Por isso, amigo Gilmar, esperamos que o seu “não” ao Marco Temporal seja de fato definitivo. Uma tentativa de voltar à discussão por iniciativa sua, o tornará, no mínimo, uma personalidade ambígua, situação nada recomendável a um Ministro do STF. Por isso sugiro que suspenda logo o seu novo encaminhamento e mantenha de pé a recente decisão do STF", escreve Egydio Schwade, em nova carta endereçada a Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal.
Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e primeiro secretário-executivo da entidade, em 1974. Em maio de 2023, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, de Minas Gerais. É colaborador do Cimi e vive em Presidente Figueiredo, AM.
Caro Gilmar,
Por motivo da sua convivência com companheiros indígenas, Rikbaktsa, Kabixi, Kayabi, Irantxe, entre outros, durante o ensino médio em Diamantino - MT e depois como jovem estudante de Direito, alimentei a expectativa que você se tornaria um defensor da causa indígena.
Por isso é desanimador, sempre de novo, vê-lo e ouvi-lo defendendo o agronegócio, um sistema colonial anti-indígena, modelo humanamente insustentável e causador da marginalização de milhões de pessoas. Agora vejo você voltar a colocar o Marco Temporal em pauta no STF, após ser rejeitado por 9 a 2 graças, inclusive, ao seu voto. Não é possível crer que você, Gilmar, tenha levado de volta ao STF, por meio de convocação de uma mesa de conciliação, esta política retrógrada, anticonsitucional, política das ‘sesmarias’, dos ‘donatários’, montada sobre cinco séculos de injustiças, de colonização e genocídio. Um instrumento pelo qual o fascismo quer manter o criminoso processo colonial que o governo português instalou em 1500, para destituir os povos originários do seu direito à terra e sobrepor este paradigma causador dos desastres climáticos que vivemos e que ameaçam a vida em nosso planeta.
Estamos num momento muito favorável para uma virada da História Brasileira. Pela primeira vez estamos assistindo o engrandecimento dos povos originários e o seu reconhecimento oficial, com a criação do Ministério dos Povos Originários. Momento favorável à mudança, com a sociedade e o mundo aplaudindo. Bom momento de rever preconceitos, a discriminação e a política injusta que vigora há cinco séculos sobre estes povos, tratando-os como se não existissem ou como se não devessem existir.
E é, em especial, para o Supremo Tribunal Federal que os olhos se voltaram para jogar e manter definitivamente no lixo da História o Marco Temporal.
E volto a lhe pedir, Gilmar, o seu empenho por justiça para os Tapayuna, Panará e Kayabi do Mato Grosso. Lute pelo retorno desses povos ao seu chão. Estes três povos foram arrancados de suas terras imemoriais férteis, em 1970, e deportados pelas Forças Armadas e os irmãos Villas Boas para o árido Parque Nacional do Xingu-PNX. Sei de viva voz, que estão até hoje lutando pela volta aos seus territórios, respectivamente, nos rios Arinos, Peixoto de Azevedo e Tatuí ou Rio dos Peixes. Eles necessitam, por uma questão de Justiça, serem repatriados e que se lhes devolva pelo menos parte de seus territórios roubados! Todos foram arrancados de uma terra rica em castanhais e recursos naturais, a fim de dar lugar a ricos sulistas.
É preciso ir ao encontro das consciências dos latifundiários e não de sua ganância histórica. Só isto lhes servirá de libertação: a eles e a seus filhos. É mais do que evidente que os povos indígenas tenham pelo menos uma terra contínua, apta e suficiente para o seu desenvolvimento físico e vivência cultural, o que não pode depender de uma data fixada por uma lei fundamentada sobre a ganância.
Quando o você frequentou o Ginásio em Diamantino, com certeza, conheceu líderes indígenas, como Daniel Matenho Cabixi, Albano Muxi Rikbaktsa e Gilberto Kutap Kayabi. Todos eles voltaram a seu povo, onde lutaram até a morte pelo direito de seus povos à terra. Daniel Matenho se tornou, inclusive, uma liderança mundial pela sua luta em favor dos direitos indígenas. Toda a sociedade consciente e organizada reconhece e apoia esta luta justa dos povos. E todos estamos cientes que o direito dos povos originários à posse da sua terra imemorial é anterior às leis criadas em favor de tratados ultramarinos, que favorecem donatários e latifundiários. Por isso, o capítulo da Reforma Agrária e da demarcação das Terras Indígenas, nunca vai se encerrar, enquanto houver latifúndios de um lado e do outro pessoas e povos, privados de seu chão.
Por isso, amigo Gilmar, esperamos que o seu “não” ao Marco Temporal seja de fato definitivo. Uma tentativa de voltar à discussão por iniciativa sua, o tornará, no mínimo, uma personalidade ambígua, situação nada recomendável a um Ministro do STF. Por isso sugiro que suspenda logo o seu novo encaminhamento e mantenha de pé a recente decisão do STF.
A minha vivência sexagenária com os povos indígenas, me faz concluir: com lei, sem lei, apesar da lei ou contra a lei escrita, os povos originários, devem ser apoiados na sua luta pela recuperação e garantia do controle de sua terra, “uma vez que eles são os proprietários originários e parte integrante da mesma terra, terra apta e suficiente para um crescimento demográfico adequado à sua realidade ecológica e socioeconômica” (cf. linhas de ação do CIMI-1975).
Casa da Cultura do Urubuí, 13 de maio de 2024
Egydio Schwade
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Egydio Schwade: "é preciso ir ao encontro das consciências dos latifundiários e não de sua ganância histórica". Carta a Gilmar Mendes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU