02 Mai 2024
"A tarefa da Igreja consiste em anunciar a mensagem do profeta desarmado que veio de Nazaré, como grande alternativa a uma lógica que produz inexoravelmente a guerra", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, maio de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há algumas semanas, enquanto as Igrejas Católica e Evangélica celebravam a Semana Santa, o Patriarca Kirill declarou “santa” também a guerra de Putin. Nada de novo em termos de substância ou mesmo em relação à história: grandes setores do cristianismo, por exemplo, fizeram e disseram algo semelhante em outras circunstâncias. Claro, trata-se de uma linguagem colorida. O Conselho Mundial de Igrejas pediu esclarecimentos: quem sabe, talvez, mais cedo ou mais tarde, Kirill, na tentativa de se explicar melhor, sairá da assembleia por escolha própria.
Conselhos à parte, como podem outras Igrejas reagir a tons desse tipo? Pelo menos em um ponto, na minha opinião não irrelevante, pode-se concordar: nenhuma atitude simétrica, nenhuma guerra santa pela democracia, pela liberdade, pelos direitos. A guerra, e também a política, são realidades profanas, seculares; o mesmo vale para democracia, liberdade e direitos, realizadas (se, onde e quando o são), de formas sempre parciais e contraditórias. A Igreja de Jesus não responde à idolatria sacralizando o que lhe parece politicamente desejável, mas reconhecendo a relatividade de tudo o que é terreno.
Isso não significa que democracia, liberdade e direitos não sejam realidades importantes pelas quais valha a pena se empenhar. De que formas? “Como diz o Papa Francisco” (junto, aliás, com todo outro habitante do planeta, incluindo, presumo, Putin e Kirill), a paz é muito melhor do que a guerra. Esse consenso, amplo, mas um tanto genérico, talvez pudesse ser esclarecido indo além, na discussão sobre a conquista da paz, da alternativa seca entre “diplomacia” e “armas”. Não é necessário um mestrado em geopolítica para saber que o fator militar sempre faz parte de toda negociação diplomática.
Quem confia na diplomacia em prol da paz não pode remover a centralidade do instrumento militar.
Uma vertente da tradição cristã move-se nessa direção, procurando, muitas vezes com modesto sucesso, elaborar também teologicamente toda a ambiguidade que tal ponto de vista traz consigo.
O elemento central desse projeto reside justamente numa opção básica pelo instrumento político: a paz neste mundo tem um caráter político e deve ser perseguida politicamente. A diplomacia é um instrumento da política e a força militar faz parte do trabalho diplomático. O conteúdo especificamente ético dessa ideia é que a paz parcial e precária que a constitui como objetivo deve ser preferida ao arbítrio daqueles que pensam em termos de puro uso da força.
A outra grande corrente da tradição cristã observa que as armas matam mesmo quando não são diretamente utilizadas (por exemplo, devido aos recursos que subtraem de projetos de outra forma louváveis) e que de qualquer forma, quando estão presentes, acabam sempre atirando. As teorias da “guerra justa” e as suas evoluções mais recentes justificaram todas as guerras injustas da história e, em todo caso, nenhuma teoria desse tipo está presente no Novo Testamento.
A tarefa da Igreja, nessa perspectiva, consiste em anunciar a mensagem do profeta desarmado que veio de Nazaré, como grande alternativa a uma lógica que produz inexoravelmente a guerra. Trata-se de uma posição clara e à sua maneira coerente: implica, mesmo que se relute em admitir, na renúncia à construção política da paz, mas segundo alguns a tarefa da Igreja consiste em testemunhar não tanto a paz (que nunca depende de uma só parte), mas na renúncia às armas por parte daqueles que creem.
Essa dialética faz parte da história cristã e certamente não será composta agora. Na verdade, há quem a utilize em relação à categoria de “complementaridade”, derivada da física das partículas, que prevê um dualismo estruturalmente não superável, mas frutífero à sua maneira. Um primeiro objetivo poderia ser evitar discutir sobre a paz em termos belicosos, dilacerando Igrejas que já são muito fracas. Ainda mais porque, independentemente de bispos e sínodos, são as sociedades que fazem as suas escolhas.
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Guerra santa, paz profana. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU