23 Abril 2024
Quando saiu da casa onde nasceu, Ibrahim Nemer Deraoui tinha dez anos. Era 1948, o ano da fundação do Estado de Israel, do deslocamento forçado de 700 mil palestinos de sua terra, o ano da Naqba, a catástrofe.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 22-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Chegou ao Líbano a pé com a mãe e o pai, que lhe perguntava se queria ir no colo. Ibrahim era o mais novo de nove irmãos, mas ele respondia: “Não, vou caminhar”. Eles atravessaram as aldeias de Ayta, Bayt Lif, Yater. Ibrahim lembra que as pessoas recebiam a todos com generosidade, acolhiam os deslocados, abriram as portas das aldeias como se eles tivessem nascido ali, depois chegaram a Chaaitiyeh, pensavam em esperar alguns dias para poder voltar para casa. Mas nunca mais voltaram e sua vida como hóspedes começou.
Vive desde 1949 no campo de refugiados de Shatila, em Beirute, cuja história está escrita no exílio, no massacre de Shatila em 1982, a guerra de campo da década de 1980. Todas as feridas reabertas hoje pela guerra em Gaza.
O campo de Shatila foi criado em 1949, como dezenas de outros na região, para albergar os palestinos deslocados. No início era um amontoado de tendas para as famílias em fuga principalmente da Galileia, ao longo dos anos os refugiados se tornaram 250 mil só nos 12 campos no Líbano. Hoje é um labirinto de concreto sem ar, prédios que se estendem na altura, porque a gente aumenta com o aumento das guerras e da crise. Num espaço de um quilômetro quadrado, destinado a receber temporariamente três mil pessoas, hoje estão dezessete mil segundo as estimativas oficiais, pelo menos o dobro daquelas oficiosas.
Já não mais apenas palestinos, mas também sírios que fogem do conflito, iraquianos, bengalis que não podem voltar para casa ou não têm condições de viver em um lugar mais digno e libaneses empobrecidos pela crise econômica.
A primeira coisa que se vê em Shatila é o que não se vê: não há luz. Ao longo das décadas as casas foram construídas uma em cima da outra, três, cinco, oito, dez andares de casas que são caixas de concreto misturado com a água do mar, frágeis e quebradiças como a condição do exilado, de quem chegou pensando em viver em um campo de refugiados temporário e viu o temporário se tornar permanente. Os edifícios são construídos a uma distância de um metro um do outro. O resultado é que quem mora nos primeiros andares, nunca vê a luz. Meninos, recém-nascidos, que crescem entre velhas paredes úmidas com um emaranhado de cabos elétricos ligando uma casa à outra, tão baixos ao longo dos becos que se podem tocar, mas no campo a luz elétrica só chega algumas horas por dia e as casas sem janelas ficam completamente escuras.
Na loja de um dos filhos, Ibrahim assiste às notícias vindas de Gaza pela televisão.
Imagens que o lembram do que aconteceu e também que as lições da história não foram aprendidas.
“Estão fazendo agora em Gaza o que fizeram com a gente”. O mesmo que falam os moradores de Gaza, os palestinos da Cisjordânia: "Eles não nos querem em lugar nenhum." Os palestinos sabem que se deixarem a sua terra terão que enfrentar um destino de exílio permanente, no qual o direito de retorno é sancionado apenas no papel e nunca respeitado há setenta e cinco anos.
Campo de refugiados de Chatila (Foto: Wikimedia Commons)
Ele fala o mesmo que falam os colonos, e os membros de extrema direita do governo de Netanyahu, que um Estado palestino nunca existirá, que os palestinos devem deixar a terra do Estado de Israel e ser acolhidos pelos países vizinhos. É por isso que Shatila é a história que se repete. O protótipo do que será a vida de todos os palestinos que abandonarão ou serão forçados e obrigados a abandonar a sua terra. Para imaginar o futuro, basta olhar os campos libaneses. Sabem disso os palestinos que ainda estão nas suas casas, o sabem aqueles que vivem no exílio há 70 anos, e o sabem aqueles que nasceram e cresceram no exílio.
Recebidos como refugiados, os palestinos vivem numa condição discriminatória. A sua presença é tolerada apenas num estado de menoridade, de privação dos direitos. A Constituição libanesa não permite que os palestinos comprem propriedades, ou seja, vivem num país onde nunca poderão ter uma casa e não lhes permite ter um emprego qualificado. Os palestinos são excluídos de dezenas de profissões, entre as quais o direito e a medicina. Portanto, as crianças que se encontram em Shatila adaptaram as suas aspirações à consciência das possibilidades que lhes são negadas.
De que adianta sonhar alto se nunca poderei ser médico ou engenheiro? Qual é o sentido de estudar para uma profissão que nunca poderei exercer?
Eles passam os dias nas salas de aula das escolas da UNRWA, em um campo de futebol e no beco dos traficantes, a zona de fronteira na terra de ninguém. O beco onde aos vinte anos quem vende drogas não tem mais dentes e onde todos têm medo de passar.
Para os jovens nascidos aqui, a vida no campo é uma identidade quebrada. Na praça adjacente ao campo de futebol, o único para todos, à pergunta ‘se você tivesse que dizer qual é a sua cidadania?’ eles respondem em coro: somos palestinos. Dois deles dizem “libaneses”, porque só conheceram a Palestina nas palavras dos pais e dos avós. Eles nasceram aqui e lutam para encontrar no pedaço de papel que consagra serem palestinos, o embrião e o desenvolvimento de uma verdadeira identidade, que não seja apenas aquela do refugiado.
Mas todos concordam numa coisa: que é preciso todos estarem prontos para lutar pela Palestina. Quem lembra isso a eles não são tanto as fotos de Arafat, amareladas pelo tempo, nem as bandeiras do Fatah, presentes em quase todos os lugares, mas as fotos de Abu Obaida, porta-voz das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, a ala militar do Hamas ou do líder Ismail Haniyeh. E as pichações nos muros, uma delas representando as últimas palavras de Ibrahim al-Nabulsi, um combatente morto em Nablus num ataque israelense há dois anos: “Ninguém jamais deveria largar o fuzil."
As forças de segurança libanesas não podem entrar nos campos, a segurança está nas mãos das várias facções armadas palestinas em confronto entre si, pelo poder, pelo controle da comunidade e também pelo recrutamento: no início de dezembro o Hamas lançou um apelo para que as pessoas nos campos se juntassem ao grupo.
Em janeiro, milhares de pessoas participaram do funeral de Saleh al-Arouri, vice chefe do politburo do Hamas morto por um ataque israelense em Dahiyeh, um subúrbio de Beirute. O caixão coberto pelas bandeiras da Palestina e do Hamas foi levado em cortejo até uma mesquita na cidade para a cerimônia fúnebre e finalmente ao cemitério dos Mártires palestinos de Beirute.
Ibrahim Nemer Deraoui está preocupado com os netos, tem vinte, todos nascidos e criados no campo como os seus oito filhos. Os seus pais os deixam sair de casa o mínimo necessário para frequentar as aulas da UNRWA e esperam que a educação os salve de um destino já escrito.
Conta que a sua relação com a Palestina é como aquela entre uma criança e a sua mãe e que quem não tem pátria, como ele, não tem nada. Acima de tudo, não tem dignidade. “Estou sentado aqui com você e imagino cada casa ali, vejo com meus próprios olhos, sei exatamente onde fica a minha escola.”
Quando seu pai morreu, ele pediu aos filhos que, se voltassem para a Palestina, levassem os seus restos mortais para lá, “não os deixem aqui” foram as suas últimas palavras. De todos os filhos, resta apenas Ibrahim, que hoje tem 86 anos, vê o fim se aproximar e pediu a mesma coisa aos seus filhos.
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