19 Abril 2024
"Esse texto do Vaticano mostra claramente os limites de uma palavra da Igreja quando enfrenta argumentos novos questionados pelas ciências".
O artigo é de René Poujol, jornalista francês, publicado em seu blog, 11-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O texto Dignitas infinita, datado de 2 de abril de 2024, é publicado sob a égide do Dicastério para Doutrina da Fé. Recebeu a aprovação do Papa Francisco. Seu objetivo parece ambicioso, em consonância com o que está em jogo neste preciso momento da história das nossas sociedades, a necessidade definir o conceito de dignidade humana para melhor servi-la, opondo-se sempre a tudo que a pode obstaculizar. O texto desenvolve uma visão “cristã” que pretende ser universal. Mas as críticas já estão se acumulando, de várias formas convincentes. Os abusos de que a Igreja se tornou culpada seriam suficientes, como alguns argumentaram, para deslegitimar qualquer discurso público da própria Igreja, independentemente do seu conteúdo? Isso, na minha opinião, é excessivo. Ainda assim, se por um lado, o texto oferece algumas reflexões estimulantes e sem dúvida úteis, por outro, contém também considerações - sobre o gênero ou a mudança de sexo, por exemplo - cuja argumentação parece pouco sólida. Isso levanta questionamentos sobre o propósito e a real autoridade desse tipo de declarações, quando abordam áreas em que a Igreja carece de competências. Trata-se de uma contribuição para o debate ou de uma palavra magistral?
Não é fácil para um blogueiro que não seja teólogo, filósofo ou “especialista em humanidade” aprofundar-se na apresentação e análise de um texto desse tipo. Mas ainda assim é preciso arriscar. E a palavra "risco" não parece excessiva quando o prefeito que assinou o documento reconhece que o texto é o resultado de cinco anos de trabalho e, admite, de intensas discussões e arbitragem severa. Nesse ponto, só posso aconselhar os leitores deste blog a mergulharem no texto para terem sua própria ideia. De minha parte, simplesmente apresentarei aqui a estrutura e os pontos mais importantes, esboçando alguma reflexão sobre os prováveis obstáculos à sua recepção, mesmo dentro do mundo católico.
O texto reitera que, aos olhos da Igreja, “todo ser humano possui uma dignidade inalienável” de natureza ontológica que deriva, para cada pessoa, do simples fato de existir por vontade divina, de compartilhar uma humanidade corpórea “santificada” pela encarnação de Jesus Cristo e de ter a promessa de uma existência eterna com Deus além da morte. E a Igreja acolhe favoravelmente o reconhecimento dessa "dignidade" pela comunidade internacional pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de dezembro de 1948, embora possa haver desacordo nos fundamentos dessa dignidade. Mas, ressalta o texto, o termo "dignidade humana" pode prestar-se a uma variedade de interpretações que não são isentas de consequências práticas. A primeira contribuição teórica dessa declaração é, sem dúvida, distinguir essa dignidade ontológica de três outros conceitos: dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial.
Vamos simplesmente dizer aqui (e vocês nos perdoarão se o fizermos) que isso inclui e diferencia comportamentos que podem ser moralmente dignos ou indignos, condições concretas de vida impostas às pessoas que, por sua vez, facilitam ou dificultam uma vida digna e, por fim, situações ligadas a deficiência, velhice ou doença que possam pôr em discussão o estado de dignidade de uma pessoa. É uma grade de leitura pertinente para reafirmar alguns dos fundamentais princípios da doutrina social da Igreja. E somos gratos ao documento, na sua quarta parte, por ter enumerado uma dezena de âmbitos em que, segundo a Igreja, a dignidade humana está em jogo, muito além dos tradicionais âmbitos da bioética ou da moral sexual, embora muito presentes: a tragédia de pobreza, a guerra, o trabalho dos migrantes, o tráfico de seres humanos, o abuso sexual, a violência contra as mulheres, o aborto, a maternidade de substituição, a eutanásia e o suicídio assistido, o abandono de pessoas com deficiência, a teoria de gênero, a mudança de sexo, a violência digital... São temas sobre os quais o texto expõe a abordagem da Igreja Católica.
A leitura do documento aponta o que essa lista já sugere: há afirmações sobre a dignidade humana sobre as quais existe, sem dúvida, um consenso, para além dos próprios católicos; há outras que são obviamente objeto de debate nas nossas sociedades; e há algumas onde a própria Igreja pode ser posta em contradição com suas próprias práticas, com o risco de questionar ou relativizar a própria legitimidade do que afirma.
Não há dúvida de que a análise exposta no texto esteja alinhada com um sentimento partilhado quando afirma que a dignidade intrínseca da pessoa humana é “independente de seus status social”, o que o que não acontecia nas sociedades antigas; que não é "concedida à pessoa por outros seres humanos" que poderiam tirá-la dela mais tarde; que existe "independentemente da percepção que as pessoas (individualmente) podem ter dela"; que "os seres humanos devem se esforçar para viver à altura a sua dignidade", mesmo que isso dependa efetivamente das "situações de injustiça" em que vivem: econômicas, sociais, políticas, jurídicas, culturais... Da mesma forma, podemos imaginar a existência de um consenso sobre a ideia de “denunciar como contrário à dignidade humano o fato de que em alguns lugares muitas pessoas são presas, torturadas e até privadas de bem de vida, unicamente por causa de sua orientação sexual". Por fim, o texto reitera a necessidade de uma preocupação, sem dúvida aceita por todos, para com as pessoas que se encontram em situação de deficiência física ou psicológica.
Outros princípios enunciados no texto serão mais difíceis de aceitar, tanto fora da Igreja como por alguns católicos. “A liberdade humana tem necessidade de ser, por sua vez, libertada”, afirma o texto, o que sem dúvida significa “educada”; sim, mas por quem?; “opõe-se à dignidade humana tudo aquilo que é contra a própria vida” (assassinato, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio assistido); “não sofrer não faz perder ao doente aquela dignidade que lhe é própria"; ajudar um suicida a pôr fim à sua vida é portanto, um ataque objetivo à dignidade da pessoa que o solicita, mesmo que se trate de atender um seu desejo. Todas essas são afirmações que estão sujeitas a debate.
De fato - e esse é um dos méritos do texto - podemos ver claramente os pontos de divergência entre a Igreja e a sociedade. Quando lemos, por exemplo: "Seria, portanto, um grave erro pensar que, longe de Deus e da sua ajuda, podemos ser mais livres e, em consequência, sentir-nos mais dignos", parece afirmar o princípio, se não mesmo que a moral só é possível com base na fé, pelo menos que a fé é suficiente para estabelecer a dignidade. Uma ideia que encontramos em outro lugar formulada nestes termos: “A fé contribui de modo decisivo a ajudar a razão na sua percepção da dignidade humana", que está subjacente à questão - hoje debatida entre os próprios crentes - de quem tem plena autoridade na interpretação das exigências da fé.
Nas respectivas abordagens da Igreja e da sociedade emerge claramente um duplo obstáculo: a dignidade se encontra em qualquer “ser humano” (embrião, idoso acamado, etc.) ou na “pessoa humana” capaz de razão e autonomia, o que poderia excluí-los; e a dignidade se “identifica com a liberdade isolada e individualista”, independentemente da liberdade eventualmente antagonista do outro, da sociedade ou da criação? Trata-se de verdadeiros questionamentos sobre os quais as grandes tradições religiosas e as sabedorias filosóficas têm, sem dúvida, a legitimidade de entrar em diálogo, ainda que conflitante, com o pensamento contemporâneo dominante centrado na emancipação do indivíduo!
A Igreja não se sente confortável com o gênero mais do que foi no passado com Copérnico, Darwin ou Freud...
Certamente o ponto mais questionável desse texto, que despertará a ironia de alguns, é a passagem relativa à teoria do gênero (parágrafos 55-59). O texto considera a teoria “perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais”; a acusa de tentar "negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual", que "mina a base antropológica da família". O texto convida a "respeitar a ordem natural da pessoa humana", lembrando a afirmação do Papa Francisco de que “a Criação nos precede e deve ser reconhecida como dom". Só que a contribuição das ciências impede uma leitura simplista das Escrituras baseadas em uma diferenciação masculina-feminina absoluta e definitiva. Basta visitar um dos aquários franceses, como fazem milhões de pessoas, para descobrir, às vezes com espanto (penso ao de La Rochelle, por exemplo), o número de espécies que passam de fêmea para macho no curso da sua vida (Gomphosus Varius, Girelle, Coquette fêmea); aquelas que mudam de sexo durante a vida (Peixe Palhaço, Camarão limpador...); e aquelas, finalmente, que vivem em um harém em torno de um macho dominante antes que uma fêmea se transforme para substituí-lo (Anthias tricolor, anthias do mediterrâneo). Tudo isso está longe do relato simplista do Gênesis, por mais poético que possa ser! E ninguém pode negar que se trata de um desafio também para os crentes.
E não é, sem dúvida, coincidência que essa sequência contenha o que é provavelmente o parágrafo mais incompreensível de todo o documento [1]. Lembra Boileau e o seu: "o que bem se concebe, se enuncia claramente". É claro que a Igreja docente não se sente confortável com a forma atual de pensar em evolução, assim como não era antigamente com Copérnico, Darwin ou Freud. E pelas mesmas razões se vê querendo julgá-los com o critério da interpretação de suas narrativas fundadoras.
Quando a Igreja está envolvida na ética da responsabilidade... por si mesma! Finalmente, há outras passagens do texto em que a Igreja corre o risco de ser confrontada com a sua própria contradições. É difícil denunciar “a marginalização das mulheres”, a “coerção psicológica”, a "trabalho escravo" ou os "abusos sexuais" como violações da dignidade humana sem correr o risco de ouvir a pergunta: “E dentro da Igreja?”. E não basta afirmar que "as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e os mesmos direitos dos homens", ou ressaltar "o empenho que a Igreja não cessa de exercitar para colocar fim a todo tipo de abuso, iniciando do seu interior" para convencer da própria boa-fé. Principalmente quando nos deparamos com esta outra frase no texto: “Com palavras se afirmam certas coisas, mas as decisões e a realidade gritam outra mensagem". Na realidade, o desconforto da Igreja é o de reivindicar, numa sociedade pela qual não é responsável, a expressão de uma "ética da convicção" na forma de grandes princípios, enquanto ela mesma se encontra, no âmbito das suas responsabilidades eclesiais, diante das exigências de uma "ética da responsabilidade" que a leva, por força das circunstâncias, a distanciar-se desses mesmos princípios.
No início deste post, questionei-me sobre o status dessa Declaração: "uma contribuição para debate ou uma palavra magistral"? O último parágrafo da introdução assinada pelo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Cardeal Victor Manuel Fernández, parece lançar alguma luz o que pode tranquilizar alguns e preocupar outros. Vou citar: "Esta Declaração não tem a pretensão de exaurir um argumento tão rico e decisivo, mas deseja fornecer alguns elementos de reflexão que ajudam a tê-lo presente no complexo momento histórico em que vivemos. Assim, em meio a tantas preocupações e ansiedades, não perderemos a estrada e não nos exporemos a mais lacerantes e profundos sofrimentos". Aqui a balança pende para a contribuição da Igreja para o debate. Um papel que às vezes é questionado em nome da laicidade. [2]
Poderíamos também ler o texto através do prisma do novo paradigma - indutivo mais que dedutivo - introduzido pelo Papa Francisco com o Sínodo sobre a sinodalidade: discernir a compatibilidade com o depósito de fé das instâncias que nascem da experiência e da reflexão do povo de Deus que vive a realidade do tempo presente, em vez de tentar adaptar o ensinamento tradicional - e intangível - da Igreja a situações radicalmente novas. Poder-se-ia dizer que esse texto está em desacordo com ambas as abordagens? É mais uma demonstração do constante jogo de equilíbrios do Papa Francisco, sem dúvida necessário, mas arriscado: fazer promessas de abertura e disponibilidade ao diálogo a sociedades que muitas vezes não as querem, com o risco de alimentar a incompreensão de fiéis que, em tempos difíceis, esperam que Roma fale com certeza e autoridade.
É sem dúvida prematuro avançar mais na análise do texto e na reflexão sobre o seu alcance e recepção. Assim que foi publicado no site do Vaticano, alguns, evidentemente antes mesmo de o terem lido, condenaram-no de maneira total e definitiva. Tomando como pretexto a discrepância que evidenciamos entre alguns princípios éticos e a gestão dos mesmos pela própria Igreja. Devemos tirar dessa contradição a conclusão de que a Igreja não possa expressar-se legitimamente sobre esses temas, no debate público e midiático, ou devemos convidá-la a tomar consciência das suas contradições, a fim de as reduzir? No período que acompanhou os debates sobre o casamento para todos na França, vimos uma certa franja do mundo católico reduzir os comentários do Papa Bento XVI sobre os "valores inegociáveis" a serem levados em consideração na véspera de qualquer escolha decisiva, para as meras questões de moral sexual e matrimonial. É surpreendente encontrar a mesma atitude em relação a esse texto na franja oposta dos “católicos abertos”, que, nos âmbitos onde a dignidade humana está em jogo, se concentram apenas em questões sociais controversas, mesmo que o texto enfatiza de forma mais ampla, a pedido do próprio Papa Francisco, as violações da dignidade causadas pela guerra, pela injustiça e pela exploração dos migrantes. E essa não é uma palavra supérflua nas nossas sociedades...
Sem dúvida o projeto do blogueiro que assinou esse (longo) post de se apresentar como “católico em liberdade” pressupõe, aqui como em outros lugares, uma exigência de nuance e de verdade que não pode acolher nem a incondicionalidade nem a difamação.
[1] Cito: "56. Ao mesmo tempo, a Igreja evidencia os intensos pontos críticos da teoria de gênero (gender). A tal propósito, Papa Francisco recordou que: ‘o caminho da paz exige o respeito dos direitos humanos, segundo aquela simples, mas clara, formulação contida na Declaração universal dos direitos humanos, cujo 75º aniversário celebramos há pouco. Trata-se de princípios racionalmente evidentes e comumente aceitados. Infelizmente, as tentativas realizadas nas últimas décadas para introduzir novos direitos, não plenamente consistentes em relação àqueles originalmente definidos e não sempre aceitáveis, deram espaço a colonizações ideológicas, entre as quais tem um papel central a teoria de gênero (gender), que é perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais’".
[2] Numa entrevista a La Croix, o jesuíta Alain Thomasset, professor de teologia moral na Faculdade Loyola de Paris, lastima da ausência da ecologia e da inteligência artificial entre as áreas identificadas em que a dignidade humana está em jogo.
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Dignitas infinita: um texto definitivamente provisório? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU