Desde tempos imemoriais os Povos Indígenas ocupavam estes territórios sagrados até que o povo da mercadoria chegou cobiçosamente por aqui. Em sua sanha colonialista tudo quiseram possuir, metais e pedras preciosas, rios e matas, frutos e animais, terras e pessoas, nada escapou de sua volúpia ilimitada. Invadiram, tomaram, saquearam, mataram. Impuseram sua língua, sua fé, seu desumano sistema econômico. E apesar de terríveis e intermináveis genocídios, não conseguiram dominar o país por completo.
Os povos filhos da terra se rebelaram, lutaram, se insurgiram das mais variadas formas. Ainda que isso pouco seja mencionado nos livros de história, não houve apenas dócil e idílica passividade. Resistiram contra a escravidão, o latifúndio, a monocultura, o estupro sistemático, o apagamento cultural. Foram para os interiores, travaram batalhas, se misturaram aos colonizadores para sobreviver. Mas não ficaram inertes!
Mesmos aqueles que foram silenciados pela brutalidade dos europeus não deixaram de cultivar sua originalidade, ainda que nos detalhes mais sutis do anonimato. E em seus descendentes, que hoje somam quase 1,7 milhão de pessoas divididas em 305 povos, pulsa subversivamente o Brasil indígena. Cerca de 274 línguas teimam em subsistir apesar de todo o racismo estrutural e a falta de apoio do Estado para a sua proteção e ensino. As sabedorias e as espiritualidades ancestrais vivem, como uma resposta à intolerância religiosa, por meio de pajés, parteiras e rezadores.
Conforme Marcelo Grodin e Moema Viezzer “chegamos assim à constatação do maior genocídio da história humana com mais de 70 milhões de vítimas no atual território das Américas”[1]. Só no Brasil o número de indígenas exterminados pelos civilizados passou dos 4 milhões. E, como se não bastasse, vários povos como os Yanomami, os Munduruku e os Guarani Kaiowá continuam sendo impiedosamente destroçados pela fúria capitalista. Sem querer medir a dor humana, não se pode ignorar a constatação lúcida de Nailton Pataxó quando visitou um campo de concentração nazista no ano 2000:
“Quando vocês falam que foram mortos aproximadamente seis milhões de pessoas nos campos de concentração, dos quais se sabe, em grande parte, o nome e dia da morte, nós indígenas (do Brasil) lembramos os milhões de irmãos e parentes nossos que foram exterminados sem que se tenha, na maioria dos casos, qualquer informação sobre esses massacres. Foi um extermínio silencioso e que continua até hoje (SURVIVAL INTERNACIONAL, 2000)”.
De fato, se pouco se avançou para reconhecer as atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar de 64, muito menos ainda para se reparar as violações sistemáticas praticadas nos séculos anteriores. O resultado é um arraigado sistema excludente e discriminatório que chegou quase intocável até os presentes dias. Ano após ano o Relatório de Violência do CIMI traz uma escandalosa realidade de conflitos, mortes e ameaças aos direitos dos Povos Indígenas.
Para tanto o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove nesta quinta-feira, com a participação de Egydio Schwade e Jussara Rezende, o seguinte debate:
Se o Estado brasileiro se comprometeu a demarcar todos os territórios indígenas até o prazo de cinco anos da promulgação da Constituição Federal, transcorridos mais de 30 anos do esgotamento do referido termo, menos de um teço das Terras Indígenas foram efetivamente reconhecidas. Assim, parece que a promessa de uma Constituição Cidadã não foi suficiente para retirar os povos originários da categoria de cidadãos de segunda classe. Frente aos latifundiários, ao agronegócio exportador e ao extrativismo predatório prevalecem sempre os interesses outros que não os dos Povos Indígenas afetados.
Depois de anos terríveis de um governo declaradamente anti-indígena, as expectativas eram grandes com a eleição de uma frente democrática que assumiu promessas explícitas de proteger os direitos indígenas. Passados mais de 15 meses da nova administração as frustrações e desilusões começam a aflorar com força. Após a importante e histórica representatividade política de lideranças indígenas em cargos estratégicos, o atual governo não possui vontade política para avançar além disso? Até quando continuará a se esconder atrás da justificativa de possuir uma frágil base aliada no Congresso?
E as asseguradas demarcações de Terras Indígenas, pelo próprio presidente durante a campanha eleitoral, quando virão? Aonde foram parar as desintrusões de todos os territórios invadidos por garimpeiros e madeiros inescrupulosos? Por que continuam a ser executados projetos governamentais que impactam as comunidades indígenas, mas deliberadamente ignoram e desrespeitam o direito à consulta livre, prévia e informada garantida pela Convenção nº 169 da OIT? Qual será o efetivo empenho do governo pela derrubada da Lei do Marco Temporal perante o STF?
Para discutir essas e outras questões que dizem respeito aos rumos da atual política indigenista, acontecerá amanhã o debate com a participação de Dom Roque Paloschi e de Luís Ventura:
Fazer memória do Dia dos Povos Indígenas é ser solidário a essa luta!
[1] GRODIN, Marcelo; VIEZZER, Moema. Genocídio, Resistência e Sobrevivência dos Povos Originários das Américas. Rio de Janeiro: Bambual Editora, 2021. p. 25.