“Desejamos e lutamos para que o Brasil nos perceba como nunca nos percebeu: como parte da sua memória, da sua história, da sua identidade”, afirma o escritor indígena
Darcy Ribeiro, um dos intérpretes do Brasil, analisou a sociedade contemporânea à luz da diversidade socioambiental e da potência política do multiculturalismo com a finalidade de construir um projeto democrático para o país. Com pesquisas desenvolvidas nas áreas de educação, sociologia e antropologia, e como funcionário do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, foi um dos defensores da luta indígena no país. De acordo com o escritor Daniel Munduruku, “uma das maiores contribuições de Darcy” para a visibilidade das comunidades indígenas no país “foi ele não querer ser dono dos ‘índios’. Ele soube se posicionar como ele se sentia, como parte da grande nação brasileira, que tinha em si outras tantas nações, e que era preciso dar visibilidade cada vez mais para esses grupos”. Segundo Daniel Munduruku, Darcy Ribeiro “tinha um olhar coletivo do Brasil, com um olhar especial para as populações indígenas”.
Na palestra virtual intitulada “Darcy Ribeiro e o povo brasileiro. Povos originários e a multiculturalidade”, ministrada no “Ciclo de Estudos O Brasil por Darcy Ribeiro. Potencialidades e Utopia”, em 25-04-2022, Daniel Munduruku destacou a importância do intelectual no combate ao genocídio indígena que estava em curso no país. “Darcy foi uma das pessoas que profetizou que se a pressão do Estado brasileiro sobre as comunidades indígenas continuasse, com aquela brutalidade que estava acontecendo, os indígenas não chegariam aos anos 2000. Ainda bem que não se cumpriu a profecia, porque, de outro lado, Darcy sabia que sua atuação tinha muito a ver com a organização que a juventude indígena estava fazendo e que efetivamente daria possibilidade de chegar àquele Brasil que ele tanto sonhava. Ele tinha a esperança de um dia presenciar essa transformação. Infelizmente ele não conseguiu; nem nós vamos conseguir. Mas aí está colocada a esperança como um projeto de existência, de vida. Uma das facetas do Darcy era não ser religioso nem místico nem mágico, mas ele trazia consigo a centelha da esperança como uma forma de atuação na própria sociedade”. E acrescenta: “Esta é a mensagem que Darcy Ribeiro nos trouxe e alimentou: essa visão de mundo que reverbera no movimento indígena e naqueles que acreditam que o Brasil pode dar certo”.
A seguir, reproduzimos a conferência de Daniel Munduruku no formato de entrevista. Os demais eventos do Ciclo sobre Darcy Ribeiro estão disponíveis aqui.
A entrevista foi originalmente publicada por Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 04-05-2022.
Daniel Munduruku (Foto: Divulgação | Arte Lunetas)
Daniel Munduruku é escritor indígena. Graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia, além do doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou estágio pós-doutoral em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. É diretor presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores, é Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008.
Em 2013 recebeu a mesma honraria na categoria da Grã-Cruz, a mais importante honraria oficial a um cidadão brasileiro na área da cultura. Membro Fundador da Academia de Letras de Lorena. Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq) e o Prêmio Tolerância (outorgado pela Unesco). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ.
IHU – Como avalia a inserção e luta das comunidades indígenas no Brasil?
Daniel Munduruku – É importante que vozes indígenas se ergam e possam estar presente nesse cenário de [comemoração dos] cem anos de arte moderna, com seus pensamentos, atitudes e participação dentro da sociedade brasileira – que é sempre muito qualificada; aliás, qualificada desde sempre, desde 1500 e antes disso. Afinal de contas, é aqui que temos nosso solo sagrado. O Brasil, para os povos indígenas, é um solo sagrado; fazemos questão de manter parte considerável das nossas culturas como uma forma de responder ao que o Brasil fez de nós. A partir do que vivenciamos e do que foi feito de nós, pretendemos, desejamos e lutamos para que o Brasil nos perceba como nunca nos percebeu: como parte da sua memória, da sua história, da sua identidade e, portanto, parte de si e da sua origem, do seu começo. Esta é a mensagem que Darcy Ribeiro nos trouxe e alimentou: essa visão de mundo que reverbera no movimento indígena e naqueles que acreditam que o Brasil pode dar certo.
Gostaria de mencionar uma poesia antiga, escrita por Eliane Potiguara, que tem muito a ver com o que estamos conversando. A poesia se chama “Brasil”:
Brasil
Eliane Potiguara
Que faço com a minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos?
Que faço com a minha cara de índia?
E meus espíritos
E minha força
E meu tupã
E meus círculos?
Que faço com a minha cara de índia?
E meu Toré
E meu sagrado
E meus “cabocos”
E minha Terra?
Que faço com a minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?
Brasil, o que faço com a minha cara de índia?
Não sou violência
Ou estupro
Eu sou história
Eu sou cunhã
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro
Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só...
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo
IHU – Qual é a relação de Darcy Ribeiro com as comunidades indígenas?
Daniel Munduruku – Nasci no povo Munduruku, no estado do Pará. O povo Munduruku está presente em três estados brasileiros: Amazonas, Mato Grosso e Pará. Nós formamos hoje uma população de mais ou menos 15 mil pessoas. É um povo que tem contato com a sociedade brasileira há mais ou menos 300 anos. Nesse período, o povo passou por muitos sofrimentos e dores, readaptações e modificações de sua cultura, uma vez que ninguém passa sem alguns arranhões pelo encontro e desencontro entre as sociedades. Sou nascido dentro desse povo, vivi ali na minha primeira infância, sobretudo. Nasci em 1964, ano do governo militar, quando os militares mandavam as crianças indígenas estudarem nas escolas para “se tornarem gente”, brasileiros. Isso não deu muito certo comigo porque sempre fui um pouco rebelde, mas, de outro lado, nossos pais eram obrigados a nos manter na escola. Do contrário, haveria represálias contra eles. Em função disso, acabávamos tendo que ficar na escola para aprender a “ser brasileiros”.
Ser brasileiro significava abandonar o “ser munduruku” para “ser brasileiro”. Eram duas coisas que se digladiavam, porque não cabiam duas identidades em uma mesma pessoa – depois, o mundo percebeu que podemos ser o que somos ou aprender o que o outro sabe sem ter que abrir mão da nossa identidade ancestral. De modo que tive a oportunidade de frequentar a escola, a universidade, cursar mestrado, doutorado e pós-doutorado e isso me coloca, sem falso orgulho, entre muitos poucos brasileiros que galgaram esse caminho. Isso não foi feito sem sacrifício e perdas, porque se trata também de ter participado de um processo de formação que, grosso modo, quase sempre é uma negação do que nós somos e uma tentativa de colocar na nossa mente uma ideia pervertida de que ser índio e pertencer a um povo ancestral é um atraso de vida.
Essa perspectiva estava muito presente naquele momento, nos anos 1970. Estou contando tudo isso para lembrar que é em 1970 que Darcy Ribeiro começa a aparecer como um grande intelectual e defensor das causas indígenas. Conto isso porque sou resultado de uma luta muito grande dos meus pais, dos meus avós e dos pioneiros que criaram os primeiros movimentos indígenas. Certamente, fui forjado pelas lutas de sobrevivência e resistência e isso me obrigada a dar continuidade a elas. Ou seja, tenho a obrigação de continuar sendo um guerreiro, tal como os meus antepassados o foram, justamente para honrar a memória dos nossos ancestrais guerreiros.
É claro que a minha guerra ou participação no movimento indígena se dá menos por uma luta diretamente política, dentro do movimento, mas por um caminho diferente, que foi sendo gestado a partir da descoberta que fiz, de ter um talento para a escrita. Isso me deu a possibilidade de me relacionar com a sociedade brasileira de outra maneira, pensando a educação do Brasil e tentando criar algum tipo de influência sobre a mente das crianças brasileiras através desse instrumento que aprendi a manipular, que é a escrita. A literatura pode atingir a mente de crianças e jovens, criando uma ponte mais autêntica e verdadeira de apresentar as nossas populações indígenas, os nossos conhecimentos, a nossa sabedoria. A literatura acaba sendo hoje o meu grande instrumento de militância. Costumo lembrar que sou um educador que escreve e um escritor que educa. Gosto de lembrar isso para não esquecer que tenho um projeto, um objetivo a alcançar, que é ajudar meu povo brasileiro a olhar para o seu povo brasileiro.
A literatura acaba permitindo que se faça isso não apenas por uma luta política, mas por uma luta educacional, pela mudança de mentalidade que é possível fazer através da escola, da educação, da literatura, da cultura. Assim, busco apresentar a beleza dos povos originários a partir das suas histórias, narrativas seculares e modo de entender o mundo. Minha vontade é gritar para todos que nosso modo de conceber a vida, a existência, é muito peculiar, especial, desapagado e, por isso, ele gera o enfrentamento em uma sociedade que é movida pelo desejo do acúmulo, da riqueza, da poupança.
O pensamento sobre o nosso jeito indígena de ser, a nossa compreensão do mundo, ainda que estejamos dentro de um sistema econômico bastante maluco, cruel, inclusive, se sustenta pelo nosso desejo de pertencimento. Nossas lutas ganham significado e sentido a partir da ideia de pertencimento. Gosto de pensar na ideia da pedagogia do pertencimento, que é a pedagogia brasileira – o que Darcy Ribeiro chamou de “socialismo moreno”. Um dia ele usou essa expressão para lembrar que precisamos criar um pensamento original, originário, brasileiro, uma pedagogia que nasça da experiência ancestral de educar suas crianças, jovens, de respeitar os adultos e os velhos, que são, em última análise, os guardiões da memória e da ancestralidade.
Através da literatura, criamos um movimento novo, ou, melhor, um movimento dentro do movimento. Costumo brincar, dizendo que existe o movimento indígena, que é político, reivindicatório, da massa, e existem os indígenas em movimento, que se destacam na sociedade através do domínio da linguagem das artes: da literatura, do cinema, da música, da arte plástica, da internet, das questões ligadas à tecnologia. Esses indígenas em movimento trazem consigo um desejo de mostrar para a sociedade brasileira que nós somos competentes, como dizia o movimento indígena nos anos 1980: “Posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”. Isso significa que a nossa concepção de cultura tem muito a ver com a nossa compreensão de mundo, de existência, com a ideia de presente, de comprometimento com o lugar em que vivemos. Essa ideia de comprometimento, de lutar pelas melhorias do lugar, é o que impulsiona a nossa cultura a se tornar atual e ser atualizada permanentemente. Portanto, dominar o conhecimento, o conteúdo e as técnicas não é sinônimo de negação da cultura. Pelo contrário, é sinônimo de competência. Podemos ser, dominar, utilizar, apresentar, criar, empreender – como a sociedade acha bonito dizer –, sem abrir mão da nossa ancestralidade; coisa que o Brasil não tem.
IHU – Como a diversidade se manifesta nas comunidades indígenas?
Daniel Munduruku – É bom lembrar que quando falamos dos povos indígenas, temos que abrir a nossa cabeça para entender que estamos falando de uma diversidade: é um pensamento diverso. Os povos indígenas têm pensamentos diversos. É importante não esquecer isso para não achar que somos um objeto compacto, que estamos compactados no nosso modo de ser, que é a grande ideia que está por trás da palavra “índio”. A palavra “índio” é uma palavra do colonizador, obviamente, é uma palavra que não diz quem nós somos, mas o que as pessoas acham que somos. Estamos o tempo todo sendo julgados e condenados. Condenados ao passado, a um pensamento tradicional, como se pensar tradicionalmente fosse um pecado por si só. Essa palavra foi sendo reproduzida ao longo da nossa história e criou uma imagem congelada, estereotipada, que elimina o imaginário da sociedade brasileira ao longo dos últimos 522 anos.
Quando o Brasil foi invadido pelos invasores e colonizadores, uma história foi sendo construída. Essa história, contada pela voz dos colonizadores, é a história que foi sendo repassada para nós pela literatura e a escola até os dias de hoje. É uma história linear, contada, é claro, pela óptica daqueles que se consideram vencedores, que contam suas histórias a partir do que consideram ser as suas vitórias. Portanto, é uma história de via única, que nunca foi permitida– até recentemente, não por permissão, mas conquista – ser contada pelas vozes não vencidas.
É claro que todo vencedor tem que ter um inimigo para quem deve prestar contas e se referenciar. Claro que quem conta um conto, aumenta um ponto. Então, quem tem o poder da narrativa vai contar sua história do seu ponto de vista. A palavra “índio” vem sendo reproduzida ao longo do tempo, ganhando nuances e formas diferentes de ser utilizada, mas atravessou os séculos através de políticas estatais que eram políticas de extermínio, como a caça dos indígenas a fim de exterminar com a população ou fazê-la escrava. Com o passar do tempo, essa política deu lugar a uma política assimilacionista, de assimilação, ou seja, a intenção do Estado era a de que os indígenas assimilariam os conhecimentos da sociedade brasileira, se juntariam às vilas que estavam sendo criadas, e haveria um certo apagamento das suas culturas, uma vez que eles seriam assimilados pelo povo brasileiro que estava surgindo. Assim, estariam, portanto, fadados ao desaparecimento.
No final do século XIX, sob a égide do positivismo, começou a se pensar na integração da cultura brasileira. Essa ideia nasceu com o signo da evolução ou do evolucionismo social e gerou uma política de integração. Com essa bandeira nasceu o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em 1910, cujo objetivo principal era fazer a integração geográfica do Brasil. Até o final do século XIX, as partes mais habitadas do país eram Norte, Sul e Sudeste. O Centro-Oeste não era habitado e, por isso, era necessário fazer a integração do Brasil através de lá. É daí que nasce a marcha para o Centro-Oeste, conduzida pelo marechal Cândido Rondon. A ideia do positivismo era de que as populações indígenas não deveriam ser assimiladas de forma forçada, mas integrada, de forma gradual, porque na medida em que fossem encontradas, perceberiam que o progresso e o desenvolvimento seriam a melhor saída e, naturalmente, se integrariam ao Brasil.
O papel do marechal Rondon era instalar por essa região do Brasil, especialmente no Centro-Oeste, as famosas linhas telegráficas. Quem é jovem talvez não saiba o que é um telégrafo, mas era o Twitter daquela época. Através dele, as pessoas enviavam recados com poucas palavras umas para as outras. À medida que ele ia andando pelo Brasil, ia encontrando os povos indígenas que ainda não tinham sido “descobertos”. Rondon foi o precursor desses desencontros ao longo de pelo menos 40 anos.
O SPI foi desmantelado pelos militares depois do golpe de 64. No lugar, criou-se a Fundação Nacional do Índio – Funai. Darcy Ribeiro, junto com outros intelectuais, se engajou no SPI, atuando como antropólogo e pesquisador, e foi um dos responsáveis pelas políticas do SPI. Mas, em 1967, encerraram o SPI, alegando corrupção. Criaram, então, uma instituição “isenta de corrupção”. Qual é o salto que se dá a partir de então, com a criação da Funai? O SPI não tinha a pretensão teórica de apressar a integração indígena na sociedade. Isso era feito gradualmente. Quando os militares assumiram, mediante acordos com órgãos internacionais, eles foram obrigados, primeiro, a mexer com a escola, com a educação e, em segundo, com a questão indígena, que era um certo entrave.
O SPI, apesar de todos os seus problemas, criava uma rede de proteção a todas as populações indígenas, enquanto a Funai foi criada para acelerar o processo de integração [dos indígenas com o restante do país]. As crianças indígenas começaram a estudar nas escolas da zona urbana. A ideia era criar, na região amazônica – o mesmo discurso de hoje –, projetos de desenvolvimento para a região. É claro que a maioria das pessoas não sabe que ser floresta já é a maior vocação da Amazônia e ela não precisa de nenhum desenvolvimento por si só. Se a vocação dela é ser floresta, qualquer alteração feita lá só vai gerar perdas. Mas, o fato é que a Funai nasceu com o objetivo de acelerar a integração do índio à sociedade brasileira e vai fazer isso desenvolvendo políticas de “inclusão” que, na verdade, foram de integração, no sentido de enviar as crianças para a escola para aprenderem português, as disciplinas ocidentais e deixarem de ser índio – essa era a grande questão – para desenvolver nas comunidades indígenas projetos econômicos para o desenvolvimento dessa região. Ou seja, o discurso feito hoje e o feito há 40 anos não muda nada porque as figuras são basicamente as mesmas: os velhos mandatários do Exército, da Marinha e da Aeronáutica daquela época são basicamente os mesmos que estão no poder hoje.
IHU – Qual foi a contribuição de Darcy Ribeiro para a formação do movimento indígena?
Daniel Munduruku – É importante lembrar que quando pensamos em uma figura como Darcy Ribeiro, estamos pensando em um grupo de intelectuais que desde os anos 1960 foram se qualificando. A antropologia no Brasil, como ciência, é recente. É a partir de 1940 que ela será ensinada na Universidade de São Paulo – USP. Quem trouxe a antropologia para o país? Os estrangeiros de sempre, como [Claude] Lévi-Strauss, um dos maiores antropólogos do mundo, que teve sua base no Brasil durante muito tempo. Todo o pensamento antropológico foi forjado a partir da ciência europeia. Os primeiros antropólogos formados no país foram os que trabalharam na primeira construção de uma antropologia brasileira, em pesquisas de campo, em etnologias e antropologias que foram se desenvolvendo.
Esses intelectuais deram a base do que veio a se formar, depois, o movimento indígena. No livro “O caráter educativo do movimento indígena brasileiro”, resultado da minha tese de doutorado em educação na USP, pesquiso o recorte de 1970 a 1980, que foi o período do primórdio do movimento indígena até a promulgação da Constituição de 1988. Depois, o movimento indígena tomou outra proporção. A ideia foi mostrar o resultado daquilo que foi acontecendo a partir de 1970 e isso tem muito a ver com a atuação de Darcy Ribeiro e a forma como ele foi construindo seu arcabouço teórico para pensar o nosso povo brasileiro.
É a partir de 1970 que o movimento indígena começa a ganhar uma certa notoriedade. Na verdade, o movimento organizado se dá a partir de 1973. Antes disso, as populações indígenas eram inimigas entre si e não existia muita proximidade entre os povos; o atendimento do SPI e do Funai era dado individualmente. Foi a partir de 1970 e através – deve se dizer também – do empenho da Igreja católica que os chefes de vários grupos indígenas começaram a se reunir no que ficou conhecido como as assembleias de chefes indígenas, organizadas pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi, um órgão bastante combativo até os nossos dias, com grande expressividade na sociedade brasileira.
O Cimi era uma ala à esquerda da Igreja. No final dos anos 1960, a Igreja fez uma grande reunião e decidiu, através do resultado da reunião dos bispos, que Jesus um dia foi pobre e a Igreja, portanto, deveria se comprometer mais com essa parcela da população. A Igreja da América Latina, sempre lascada e oprimida por várias correntes de invasões estrangeiras, radicalizou isso e os bispos latino-americanos fizeram o que chamaram de uma “opção preferencial pelos pobres”. Isso gerou uma revolução dentro da Igreja, que culminou com a tirada dos hábitos religiosos dos padres e das freiras, que passaram a se trajar como pessoas comuns da sociedade e passaram a ir morar em favelas e periferias das cidades e nas aldeias. Nesse período, a Igreja da América Latina desenvolveu uma teologia chamada de Teologia da Libertação, cujo grande expoente foi o Frei Leonardo Boff, que depois acabou sendo excomungado porque fazia a pregação de um Evangelho encarnado na realidade, comprometido com a realidade.
Havia nessa teologia uma organização em células, igual a uma organização comunista, as famosas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, onde as comunidades se reuniam e decidiam os caminhos a seguir. Estou dizendo isso porque a parte missionária da Igreja também fez essa opção: como disse anteriormente, o Cimi funcionava como uma espécie de ala à esquerda da Igreja e começou a reunir os chefes, lideranças indígenas e caciques para reuniões anuais. Dessas reuniões, os grupos indígenas foram descobrindo que havia muita coisa em comum entre eles e que deles estavam sendo escondidas informações e, portanto, decidiram fazer o enfrentamento ao Estado brasileiro, criando um movimento mais organizado das comunidades, como são hoje as reuniões da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, que reúnem oito mil indígenas no Acampamento Terra Livre em Brasília.
Nos anos 1970, essas assembleias tinham a mesma conotação de reivindicação e luta pelos seus direitos. Assim nasceu o movimento indígena aliado e ligado às organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, e às universidades, como PUC e USP. Os intelectuais faziam o movimento de reempoderar os indígenas para que eles pudessem participar da sociedade de uma forma cada vez mais qualificada e isso passava pela luta pelos direitos antigos, como direito à terra, à educação, à saúde, a poder ter sua identidade respeitada na sociedade. Esse movimento durou até 1988.
Novas gerações de grupos indígenas começaram a ir para a escola estudar, fazer cursos de formação, patrocinados pela própria Funai, que era pressionada pelos órgãos internacionais para criar bolsas de estudos para a juventude indígena. É nessa segunda geração que vai surgir a União das Nações Indígenas – UNI que, segundo Marcos Terena, um dos meus entrevistados do meu doutorado, nasceu, não de uma proposta política, mas de uma proposta cultural. Essa juventude que se reunia em Brasília, com pessoas de diferentes povos, como o Terena, o Guarani, o Xavante, que não falavam a mesma língua e tinham o português como língua de comunicação, se juntou e formou um time de futebol. A UNI nasceu como um time de futebol, quando eles se juntavam no final de semana, depois de uma semana de estudo e trabalho, para bater uma bola. No meio dessa conversa, depois do futebol, tratavam das questões políticas ligadas aos direitos indígenas. Essa galera foi criando uma resistência contra os militares, que queriam expulsá-los de Brasília, a fim de que eles voltassem para suas comunidades. Eles se deram as mãos e disseram que de lá não sairiam porque era um direito deles estar lá. Assim, foram estabelecendo esse grupo, que depois se tornou a União das Nações Indígenas, um movimento que nunca foi estruturado para ser uma ONG. O objetivo da UNI era ser um coletivo que pudesse orientar as questões ligadas aos direitos indígenas. Os seus integrantes estavam muito bem cercados por toda a sociedade civil, que dava apoio e, ao mesmo tempo, os indígenas empoderavam a própria sociedade civil para ela poder ter reação e se organizar e avançar nas lutas por seus direitos.
Em tudo isso que já falei, Darcy Ribeiro esteve presente. Ele foi atuando na sociedade e construindo uma teoria a partir do que ele estava observando; ele era um observador da sociedade e juntou sua veia de pesquisador, cientista, com a veia de poeta, político, educador. Ele procurou atuar dentro da sociedade brasileira, criando um arcabouço de pensamento para poder pensar o Brasil a partir do Brasil, a partir de três eixos desse entendimento do que é o povo brasileiro. Ele sempre dizia que o Brasil era um povo novo, nascido para assombrar o mundo. Quando o Brasil se descobrir, ele dizia, ele vai assombrar o mundo e dar as cartas ao mundo. Darcy Ribeiro está presente em toda a construção brasileira. Ele foi perseguido político, mas, para além do próprio sofrimento individual e das lutas que teve que enfrentar pessoalmente, ele tinha um olhar coletivo do Brasil, com um olhar especial para as populações indígenas. É claro que Darcy foi uma das pessoas que profetizaram que se a pressão do Estado brasileiro sobre as comunidades indígenas continuasse, com aquela brutalidade que estava acontecendo, os indígenas não chegariam aos anos 2000. Ainda bem que não se cumpriu a profecia, porque, de outro lado, Darcy sabia que sua atuação tinha muito a ver com a organização que a juventude indígena estava fazendo e que efetivamente daria possibilidade de chegar àquele Brasil que ele tanto sonhava. Ele tinha a esperança de um dia presenciar essa transformação. Infelizmente ele não conseguiu; nem nós vamos conseguir. Mas aí está colocada a esperança como um projeto de existência, de vida. Uma das facetas do Darcy era não ser religioso nem místico nem mágico, mas ele trazia consigo a centelha da esperança como uma forma de atuação na própria sociedade.
Estou tendo a alegria de conversar com um grupo de artistas do teatro do Rio de Janeiro e estamos preparando, para celebrar este ano, uma peça de teatro sobre a vida de Darcy Ribeiro para mostrar um pouco do “Darcy essencial”, uma vez que ele foi muitos em um só e esses muitos deixaram marcas por onde passou. Na educação, deixou marcas profundas, criando universidades, Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs no Rio de Janeiro, em parceria com [Leonel] Brizola. Na política, deixou mudanças profundas porque foi um político muito coerente e muito celebrado por sua oratória, por sua capacidade de convencimento. Foi um pesquisador dos mais radicais porque estudou profundamente seus temas – é claro que ele tinha predileção pela temática indígena, mas onde ele apontou, conseguiu também trazer luzes à tona. Foi um escritor e romancista potente e isso fez com que ele pudesse contar para nós quais eram os seus sonhos.
Grande parte do pensamento que nós, indígenas, que hoje militamos na causa, alimentamos, e o nosso entendimento do país, é graças ao Darcy Ribeiro. Por seu comprometimento com as causas das minorias, ele nos legou bastante conteúdo para construir as nossas teorias e o nosso modo de entender o mundo. De uma certa maneira, todos os pesquisadores fazem isso. Quando vamos tendo contato com a obra deles, eles vão apresentando elementos que nos permitem perceber onde está ora uma coisa, ora outra. Claro que muitas das pesquisas não chegam de onde saíram: às vezes elas saem das comunidades indígenas, mas nunca retornam para elas de uma forma e com um linguajar que seja possível crianças, jovens e adultos as entenderem. Aqueles que passam pela universidade, como é o caso de muitos indígenas que estão surgindo como grandes intelectuais, como Gersem Baniwa, Edson Kayapó, Edson Krenak, que são uma geração mais nova e estão pesquisando temas diretamente ligados à participação dos indígenas ligados na sociedade brasileira. Todos nós somos fruto dessas pesquisas realizadas pelas universidades ao longo dos últimos anos.
IHU – O senhor afirmou que “índio” é uma palavra do colonizador. Qual é a forma correta de identificar e denominar os povos originários?
Daniel Munduruku – Indígena. Gostaria de lembrar que a palavra “indígena” não é uma variação de “índio”. A linguista que estudei no pós-doutorado me ensinou que isso foi uma coincidência histórica. Se buscarmos o significado da palavra “índio” no dicionário, vamos descobrir que não tem uma definição ou algo que justifique a manutenção dessa palavra porque ela não significa nada ou, quando muito, tem a seguinte definição: “Índio é o elemento 49 da tabela periódica”. Mas indígena, segundo o dicionário, quer dizer originário, de origem. O antônimo de indígena é “alienígena”, que, vocês sabem, na ficção científica, é o que vem de fora, o extraterrestre. É o mesmo sentido da palavra estrangeiro, que vem de fora. Então, o colonizador, o invasor, é o alienígena que chega nessa terra e encontra os povos de origem, originários. Alguns dizem que seria melhor chamar o povo de “nativo”. Mas nativo é todo mundo que nasce em algum lugar; não é alguém que é originário do lugar. Quem nasce em São Paulo é nativo de São Paulo, mas não é indígena, não é originário. Então, a palavra nativo não é legal porque todo brasileiro é nativo do Brasil, mas não necessariamente é indígena brasileiro. Essa coisa do indígena tem que ter um pertencimento a um povo antigo, ancestral.
Eu sou um indígena, mas sou um indígena Munduruku. As pessoas olham para mim e veem um índio porque na cabeça delas já está estabelecido que uma pessoa bonita como eu vai ser chamada de índio porque trago os fenótipos daquilo que foi introjetado na nossa cabeça. Nesse sentido, é muito comum as pessoas também recusarem que um indígena do Nordeste seja chamado de indígena justamente porque ele já não traz os mesmos traços fenotípicos que os meus, assim como também um Xavante que mora no Mato Grosso vai olhar para um Munduruku e dizer que ele não é Xavante e, portanto, “não é legal”. Esse tipo de questão sempre aparece porque os povos são diferentes, mas o que nos une é justamente o pertencimento a um povo originário, a um povo indígena.
IHU – Poderia falar um pouco mais da pedagogia do pertencimento ou indicar leituras a respeito?
Daniel Munduruku – Essa definição sou eu que tenho repetido muitas vezes porque, particularmente, acho que o Brasil está devendo para si mesmo uma pedagogia própria, originária, que nasça da experiência permanente dos últimos três mil anos – só para não ser muito vaidoso – que os indígenas vêm montando; uma pedagogia de comprometimento com o lugar onde se vive. Isso não é exatamente uma teoria, mas uma compreensão de que somos parte do mundo e não seus donos, de que estamos nesse mundo de passagem e, na medida em que vamos fazendo essa passagem, vamos criando uma relação de integração com o todo, que não é humano, mas efetivo.
Isso geraria no povo brasileiro uma autoestima, porque aprenderíamos a gostar dessa terra, coisa que nunca aprendemos – o brasileiro não gosta do Brasil. Sei que essa é uma afirmação muito genérica, mas, grosso modo, o brasileiro não gosta do Brasil. A maior parte do seu esforço de vida é imitar o colonizador, ter a posse como o colonizador e, se puder ganhar uma segunda cidadania em um país estrangeiro, o brasileiro fará isso. Os 10% do europeu que habita o brasileiro fala muito mais alto do que os 90% de negros e indígenas que carregamos. Isso porque a história do Brasil – e isso tem muito a ver com Darcy Ribeiro – foi contada para nós para não gostarmos do nosso passado. Quando olhamos no espelho, já diria Renato Russo, na canção “Índios”, vemos o mundo doente.
Mas esse mundo não é doente. Ele foi nos apresentado como um mundo doente e isso foi gerando em nós um não gostar do nosso passado. Quando olhamos para trás, o que vemos? Vemos negros e indígenas. Aprendemos a não gostar nem de negros nem de indígenas. É o famoso racismo estrutural. Portanto, esse passado nos dói, nos machuca, fechamos os olhos e ficamos sonhando com os 10% que temos de europeu, de estrangeiro e vamos fazer todo o caminho de nos encontrarmos lá, onde não estamos.
A pedagogia do pertencimento, eu diria, é o que nós brasileiros precisamos fazer para aumentar gradualmente a autoestima do Brasil, e isso tem a ver com aquilo que sempre afirmo, que o Brasil é um país adolescente. O que caracteriza a adolescência é a crise de identidade. Ela só é ultrapassada através de um ritual de maioridade e não existem rituais “docinhos”. Os rituais existem para fazer com que soframos, com que cresçamos também pela dor. Para isso, temos que nos encontrar com a nossa infância ou, se preferirem, com o nosso passado. E é esse caminho de voltar para o passado, para nos percebermos negros e indígenas, que é o nosso rito, que é o que dói na gente. Isso porque ficamos só com o Brasil paz e amor, o Brasil que não tem racismo, não tem vulcão, não tem terremoto, e esquecemos as nossas qualidades. Supervalorizamos os nossos defeitos e valorizamos muito pouco as nossas qualidades. Precisamos retomar as nossas qualidades. Onde elas estão? Lá atrás, onde não nos deixaram adentrar e nos perceber na nossa origem. Precisamos fazer esse caminho de volta.
IHU – Qual foi a principal contribuição de Darcy Ribeiro para a visibilidade de luta dos povos indígenas?
Daniel Munduruku – Uma das maiores contribuições do Darcy foi ele não querer ser dono dos “índios”. Ele soube se posicionar como ele se sentia, como parte da grande nação brasileira, que tinha em si outras tantas nações, e que era preciso dar visibilidade cada vez mais para esses grupos. Eu, particularmente, não gosto de chamar os grupos de “nações” dentro da “nação” porque é cacofônico. Mas a ideia principal que Darcy Ribeiro trouxe é a de que os indígenas precisavam se mostrar como tal. Nesse sentido foi a luta dele para eleger Mário Juruna, um Xavante, que foi eleito pelo Rio de Janeiro como primeiro e único deputado federal homem – temos hoje uma deputada federal. Essa foi uma luta pessoal de Darcy Ribeiro junto com o Brizola, de que era necessário apresentar para a sociedade brasileira o “índio” – naquela época era usado esse termo.
É importante lembrar que a palavra “índio” foi usada politicamente pelo movimento indígena no começo dos anos 1970 para reafirmar a sua unidade. Ainda hoje, muitos indígenas daquele tempo usam essa palavra nesse sentido político. É claro que uma pessoa não-indígena, que está na universidade, estudando, tem que saber fazer essa diferenciação entre “índio” e “indígena”. Agora, os indígenas não têm nenhuma obrigação de ficarem criando respostas para isso. Eles usam o termo tal qual sempre foi usado pelo movimento indígena como um termo político e, portanto, um termo reivindicatório, que permite criar uma unidade política e não uma unidade estigmatizada e estigmatizante tal como a palavra traz consigo. Um dos grandes feitos de Darcy foi trazer para o Brasil essa visibilidade indígena que não passava por ele, mas pelo empoderamento que ele evidenciava na participação das populações indígenas. Isso foi o fundamental.