Nem modernista, nem anti-modernista, a Arte Indígena Contemporânea (e cosmopolítica) na vanguarda de um Brasil que jamais foi moderno

Nesta entrevista coletiva, recebemos Daiara Tukano, Denilson Baniwa, Gustavo Caboco e Marília Librandi

Elisclésio Makuxi / Foto: Divulgação Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM

Por: Ricardo Machado | 26 Abril 2022

 

É possível pensar a arte para além do vocabulário e das instituições ocidentais? De que ordem seria uma paradoxal vanguarda que é não moderna e, por isso, mesmo uma versão completamente original e atemporal do que foi o Modernismo no Brasil? O que esta entrevista trata, dialoga com estas perguntas, ainda que, talvez, não seja capaz de respondê-las integralmente, inclusive por uma falta de interesse a certos academicismos.

 

Neste contexto, a Arte Indígena Contemporânea – AIC, anunciada e sonhada por Jaider Esbell perpassa esse universo de coisas e, diferente do que foi o marco modernista, é “Mais do que uma Semana, a AIC é uma Semente", como nos instiga Marília Librandi, em sua entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

O diálogo que resultou no convite para esta entrevista teve por base seu artigo Jaider Esbell, Makunaimã Manifesto: a cosmopolítica da arte indígena contemporânea, publicado na obra Modernismos 1922-2022 (São Paulo: Companhia das Letras, 2022).

 

Por iniciativa de Librandi, alguns artistas indígenas, com os quais tem interlocução, foram convidados a participar desse debate editado em conjunto, seguindo a sua proposta de uma escuta ativa e coletiva. Do caleidoscópio de provocações suscitadas pelas perguntas e que podem ser lidas na íntegra a seguir, recortamos três breves trechos sobre a maneira pela qual Gustavo Caboco, Denilson Baniwa e Daiara Tukano compreendem os significados complexos abarcados pela noção de Arte Indígena Contemporânea – AIC.

 

“Entendo essa ideia [AIC] como um lugar, um ponto de encontro entre nós, parentes de vários povos, a ciência acadêmica, os museus, o sistema da arte contemporânea, os centros culturais, galerias de arte indígena, museus nativos, a literatura, o cinema, a roça, a casa da tia, da vovó, e tantos outros campos. Mais que isso, um ponto de articulação e caminhos da autonomia: a nossa sobrevivência", descreve Gustavo Caboco.

 

“Eu e o Jaider estávamos conversando bastante, inclusive por uma coisa que o Ailton [Krenak] estava mediando, de esquecer a arte indígena – AIC ou qualquer outra denominação – para encontrar um jeito de construir um pensamento e uma arte cosmopolítica, em que o ‘C’ do AIC, ao invés de ser ‘contemporânea’, fosse de ‘cosmopolítica’”, recorda Denilson Baniwa.

 

“O Jaider forjou essa terminologia de AIC como uma provocação mesmo, na trilha que ele fez de se colocar diante de um sistema de arte conduzido por um mercado e por uma lógica academicista. Mas não é que a gente possa falar ‘estamos fazendo um movimento ou uma vanguarda’. Esses paralelismos foram colocados pelos pesquisadores, galeristas, que tentam nos empurrar essas comparações com o que foi o Modernismo no Brasil’, critica Daiara Tukano.

 

Daiara Hori Figueroa Sampaio - Duhigô, do povo indígena Tukano – Yé'pá Mahsã, clã Eremiri Hãusiro Parameri do Alto Rio Negro na Amazônia brasileira, nascida em São Paulo. Artista, ativista, educadora e comunicadora. É graduada em Artes Visuais e Mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília - UnB; pesquisa o direito à memória e à verdade dos povos indígenas.

 

Denilson Baniwa é natural do Rio Negro, interior do Amazonas. É artista, curador, designer visual e atualmente reside no Rio de Janeiro. Seus trabalhos vão desde sua vivência enquanto ser indígena ao metafórico que se apropria de ícones ocidentais para comunicar a luta e pensamento indígena brasileiro, usando como suporte telas, instalações e meios digitais.

 

Gustavo Caboco, nascido em Roraima (1989). Artista visual Wapichana, trabalha na rede Paraná-Roraima e nos caminhos de retorno à terra. Sua produção com desenho-documento, pintura, texto, bordado, animação e performance propõe maneiras de refletir sobre os deslocamentos dos corpos indígenas, as retomadas de memória e na pesquisa autônoma em acervos museológicos para contribuir na luta dos povos indígenas.

 

Marília Librandi é uma pensadora mestiza e das fronteiras. Nascida em São Paulo, vive nos Estados Unidos. Doutora em teoria literária e literatura comparada (USP).Pesquisadora no Brazil Lab, da Universidade de Princeton, e colaboradora do núcleo Diversitas, da Universidade de São Paulo. Atualmente, pesquisa a cosmopolítica das redes de pesca e de dormir nas artes verbais e visuais.  Lecionou  na Universidade de Stanford e na Universidade de Princeton, onde criou os cursos Ameríndia e Indigenous Brazil.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Para contextualizarmos nossos leitores, permita-me uma questão introdutória: o que é Arte Indígena Contemporânea – AIC? De onde vem essa definição?

 

Marília Librandi – A Arte Indígena Contemporânea – AIC foi assim enunciada, planejada, sonhada, verbalizada e praticada nesses termos por um grande artista/pessoa que é Jaider Esbell.

 

Marília Librandi (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Interessante porque penso, agora, que a AIC, como ele a praticou e vivenciou, se assemelha muito para mim ao nível de energia de uma figura como Glauber Rocha, enunciando as questões da estética da fome e das práticas do Cinema Novo: “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Penso que o Jaider com seus pincéis posca fez esse gesto inaugural muito potente e germinador de muitas sementes.

Mais do que uma Semana, a AIC é uma Semente, como aquelas plantadas por Denilson Baniwa no espaço que antes era para carros, no estacionamento da Pinacoteca do Estado de São Paulo, e criando um jardim ali, na exposição Vexoa, com curadoria de Naine Terena.

 

Gustavo Caboco – Vou fazer uma citação de um texto que eu já tinha escrito, pensando a ideia da AIC como um ponto de encontro: entendo essa ideia como um lugar, um ponto de encontro entre nós, parentes de vários povos, a ciência acadêmica, os museus, o sistema da arte contemporânea, os centros culturais, galerias de arte indígena, museus nativos, a literatura, o cinema, a roça, a casa da tia, da vovó, e tantos outros campos. Mais que isso, um ponto de articulação e caminhos da autonomia: a nossa sobrevivência.

 

Gustavo Caboco (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Todos esses lugares podem reunir a ideia da Arte Indígena Contemporânea – AIC. Embora existam outras formulações desta ideia, como, por exemplo, as Manifestações Estéticas dos Povos Indígenas (Me'in) que a Naine Terena tem falado, da compreensão de uma Arte Brasileira feita por povos indígenas, ou ainda esta ideia da Arte indígena Cosmopolítica que o Denilson menciona. Para mim, o debate gira em torno da presença indígena. Isso que muda a perspectiva de uma história ou produção artística e a ideia de coletividade. Essa é uma diferença do sistema de arte e das artes produzidas por povos indígenas.

 

Daiara Tukano – A AIC é uma das provocações que a gente, enquanto uma coletividade de artistas indígenas, mas não necessariamente um coletivo, tem feito nos últimos anos.

 

Daiara Tukano (Foto: Reprodução | Facebook)

 

O Jaider procurou esse caminho, e ele teve uma inteligência incrível de tomar pra si as rédeas desse desafio de apresentação para o sistema, como se o último recurso que a gente pudesse ter para dar uma reviravolta fosse a arte, e é mesmo, porque no resto a gente está lascado… É isso que o Jaider falava: "vai ter que pagar caro pela arte do parente, agora não é mais de graça, já roubaram tanto de nós… "

Se a arte do branco tem esse privilégio a nossa também vai ter, e se, pra isso, for necessário construir uma palavra – que é AIC - para seduzir essa lógica consumista, então a gente vai fazer essa palavra. Mas nem ele, nem nenhum de nós, nunca teve a intenção de que aquilo se tornasse um cânone ou uma coisa imutável, petrificada…

 

 

IHU On-Line  – Neste contexto, quem foi Jaider Esbell e qual a importância deste artista Macuxi para a renovação do pensamento e da arte produzidos no Brasil?

 

Marília Librandi – Jaider continua sendo... Ele agora está em uma dimensão da ancestralidade, não apenas Macuxi, indígena, mas também da ancestralidade das pessoas artistas e xamânicas, que passam pela terra e nos ensinam muitas coisas.

Eu o conheci pessoalmente em 2019. E guardei comigo sua amizade, a intensidade de sua presença e sobretudo a sua livre liberdade plena, que ele nos ensinou, e foi de fato muito reveladora no sentido da vida mesma e não apenas na dimensão da arte.

Sugiro para quem não o conhece, visitar o seu site, além dos livros que publicou em conjunto ou separadamente, além de suas exposições e performances, como as que realizou com a sua companheira, a artista Daiara Tukano, e suas muitas “lives”, sua galeria em Boa Vista, Roraima... E a última exposição com curadoria dele, “Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea”, junto com Paula Berbert e Pedro Cesarino , no Museu de Arte Moderna de São Paulo– MAM, entre tantas outras.

 

Gustavo Caboco – A partir dessa ideia do nosso avô em nós, eu vejo que o Jaider foi um artista que precisou da ideia da singularidade para expressar, inclusive a partir do texto dele, Meu avô em mim, nosso avô em nós. Acredito que é importante reafirmar isso para ampliarmos a visão para os artistas indígenas de Roraima – ou do circum-Roraima – pensando a presença de artistas visuais como a Carmézia Emiliano, do Arawak Amazonas; do Isaías Miliano, do Bartô, para citar alguns nomes.

Então dentro destas questões, relativas à arte indígena, e ao Jaider, o que percebo é que existe essa ideia de nosso avô em nós, reafirmando e, ao mesmo tempo, ampliando a reivindicação de uma territorialidade.

 

Daiara Tukano - Essa é a única pergunta que eu não posso responder. Acho que seria fixar ideias, e dar definições fixas sobre o Jaider já seria trair a sua memória. E, com certeza, da mesma forma, o trabalho dele continua se desdobrando em outros planos e sendo nosso interlocutor direto. Então, não cabe a mim e acho que a ninguém definir, numa história tradicional, quem foi ou quem é Jaider Esbell. Só essa postura de respeito e de humildade diante dele é o que podemos fazer agora.

 

 

IHU On-Line – Conectando estas questões ao Modernismo brasileiro, pode-se dizer que a Semana de Arte Moderna em específico e o Modernismo em geral foram cosmopolitas, ao passo que a AIC é cosmopolítica?

 

Denilson Baniwa – Já estava acontecendo muita coisa e ficamos todos muito mal [com a morte de Jaider], porque a AIC tinha essa coisa de entender cada região e cada realidade. Eu e o Jaider estávamos conversando bastante, inclusive por uma coisa que o Ailton [Krenak] estava mediando, de esquecer a arte indígena – AIC ou qualquer outra denominação – para encontrar um jeito de construir um pensamento e uma arte cosmopolítica, em que o “C” do AIC, ao invés de ser “contemporânea”, fosse de “cosmopolítica”. Nos reunimos e conversamos com o Ailton, que tem muita coisa para falar sobre isso, pois observou todo o movimento e todos os movimentos de arte e viu potências neles, mas muitos problemas que estavam nos orientando. É uma pena que o Jaider não quis continuar essas coisas, é muito triste. Inclusive tenho ainda que sentar com o Ailton e ouvir tudo sobre isso, até mesmo sobre continuar ou não continuar falando sobre arte.

 

Denilson Baniwa (Foto: Reprodução | Facebook)

 

O Ailton é o maior crítico – no sentido de avaliador – de todo processo. Ele viu tudo nascer e se transformar, viu as nossas energias, nossas conversas, viu o que concordávamos e discordávamos, de modo que consegue fazer uma análise melhor do que eu. Porque eu contava muito com o Jaider nesse processo, de entender o que seria uma arte cosmopolítica conforme o Ailton tinha nos orientado, conversando com outros artistas indígenas. Porque nem o que eu pensava, nem o que o Jaider pensava, ou qualquer outro pensava, correspondia a uma coisa representativa de todo mundo. A ideia da cosmopolítica que o Ailton deu corresponderia a isso. Infelizmente, com a partida do Jaider, perdemos muita energia de começar essa construção.

 

 

Daiara Tukano - A palavra contemporâneo [em Arte Indígena Contemporânea] sempre nos incomodou, e sempre provocou um debate em nosso círculo interno. E agora continua esse incômodo, uma tensão que continua pungente porque é uma questão epistemológica de como a gente se compreende dentro do tempo, sabe?

O que é o contemporâneo, então? Quem define que nós somos contemporâneos, se a gente sempre esteve na contemporaneidade, se nós sempre existimos? O fato da gente se afirmar como indígena hoje é um ato de resistência, de negação de todo o processo colonial. Se nós afirmamos nosso pensamento, nosso território, nossa identidade, nossa cultura, nossa língua, nossa estética, nossa memória, nós estamos fazendo isso em contraponto a todo um processo de violência colonial que está nos matando há 500 anos.

Mas esse povo acha que a modernidade é eterna, e a pós-modernidade... Será que não entendem que o conceito de modernidade é que está nos matando? E continuam fazendo essas comparações que me incomodam muito porque a própria ideia de modernidade é uma coisa super-reacionária, né? A ideia de modernidade é o fundamento da colonialidade, de civilizar, de trazer o novo, de impor um ponto de vista achando que a gente deve se integrar nesse autoproclamado ocidente.

A gente está tratando de Antropoceno, de processo de violência colonial; a gente está apontando para a necessidade de uma recuperação no sentido da saúde epistemológica na relação com o mundo, com o universo, com a vida. Esses são os pontos que escapam mais.

Jaider colocava armadilhas pela confusão mesmo, ele dava voltas, porque era tanta informação - de cunho histórico, político, espiritual, estético -, que ele dava, que daqui a pouco estava todo mundo sentindo, mas ninguém entendendo.

Se tem algo que essa tal de AIC provoca ou aponta é justamente essa lacuna de formação, de educação, de letramento, de alfabetização para se compreender o mundo de uma maneira mais ampla que essa realidade, e de que sempre existiram várias cosmovisões, e é dessa diversidade que nós dependemos em todos os sentidos desde o físico, material, até o imaterial, espiritual, cultural, científico…

 

Marília Librandi – Sim, eu trouxe esse ponto no meu texto justamente a partir da escuta dessas falas. A denominação “arte indígena” recobre o nosso modo de categorizar ações que são múltiplas - curativas, medicinais, ritualísticas, cientificas, ecológicas, cosmológicas e artísticas ou como disse Jaider, em texto de 2018, trata-se de: “um estado pleno de identidade cosmo-consciente" [Jaider Esbell, “Arte Indígena Contemporânea e o grande mundo”. Revista Select, n. 39. São Paulo, 2018. Disponível aqui].

 

 

IHU On-Line – É possível traçar similitudes entre a AIC e o modernismo?

 

Denilson Baniwa – A AIC não seria uma resposta ao Modernismo. Claro, como um movimento, há interseções. Eu não justificaria o Modernismo pela AIC nem a AIC pelo Modernismo.

AIC e o Modernismo se encontram por algum acidente no percurso. AIC não tem nada a ver com o Modernismo, é uma outra parada. Acontece que assim como a AIC encontra o Modernismo, ela se encontra como o Dadaísmo, com o Surrealismo, com um monte de outros movimentos. Da minha parte, eu não queria forçar muito a relação entre AIC e Modernismo, senão vai marcar uma relação com a Semana de Arte Moderna, mas eu mesmo tenho fugido disso. Particularmente, eu não me sinto parte do movimento AIC, justamente por não me alinhar com vários dos pensamentos que a AIC propôs.

Para mim, quanto menos citar movimentos não-indígenas melhor, pois senão parece que justifica a criação de movimento de arte indígena a partir do que é movimento de arte branca. Ligar a AIC ao Modernismo é reduzir, sabe. Eu não ligaria a AIC ao Modernismo, mas a um movimento autêntico que infelizmente nasceu num país onde tem modernismo.

 

 

Gustavo Caboco – O ponto é que nosso avô Makunaimã, nessa reivindicação nossa, enquanto coletividade, quando entramos no debate dos modernistas brasileiros, se entramos por esta via, a armadilha que percebo é corrermos o risco de nos distanciar do debate que nos importa mais, que é trabalhar a partir da ideia do Makunaimã. Há uma diferença. Acho importante quando o Jaider provoca a reflexão se Macunaíma é o fruto de Makunaimã. É verdade que ele tem a potência desse florescimento, mas existe uma árvore e nesta árvore está o nosso trabalho, e por este lado pensar nossa autoestima, cuja formulação seria a de contar nossas histórias através da arte, como um modo de pensar.

 

Daiara Tukano - O Jaider forjou essa terminologia de AIC como uma provocação mesmo, na trilha que ele fez de se colocar diante de um sistema de arte conduzido por um mercado e por uma lógica academicista. Mas não é que a gente possa falar “estamos fazendo um movimento ou uma vanguarda”. Esses paralelismos foram colocados pelos pesquisadores, galeristas, que tentam nos empurrar essas comparações com o que foi o Modernismo no Brasil.

Com relação à construção de uma identidade brasileira, os modernistas também procuraram, no meu entendimento, debater o conceito de Brasil a partir de suas experiências. Eles não conseguiram, pela sua origem escolar, social, econômica, se abster de seus privilégios. Então, a maneira como eles projetaram essa ideia do folclore ou do popular, reforçando esse estereótipo, claro que dentro de todo um pensamento crítico e poético maravilhoso, mas para os povos originários nosso patrimônio cultural, científico, tecnológico nunca foi e nunca será folclore.

 

IHU On-Line  – Em que sentido a AIC reantropofagiza o movimento modernista? Quais são as consequências teóricas e estéticas deste gesto?

 

Daiara Tukano – O Modernismo, a Semana de Arte Moderna, está incomodando a gente faz uns cem anos; antes era o Romantismo mesmo… Quando eu conheci o Jaider pessoalmente foi em um encontro articulado pelo Ailton Krenak para discutir a arte indígena hoje e ver caminhos.

Esse é um desafio que passa por muitas camadas da epistemologia daquilo que é chamado de arte, dos territórios imateriais, por assim dizer, da cosmovisão, da cultura, da memória, da identidade, e da expressão disso tudo, e das violências, do racismo, do institucionalismo que o Ocidente traz nas suas instituições universitárias, nos museus, galerias, no mercado. E, naquele momento que a gente se reuniu pra falar, um dos primeiros pontos que a gente procurou se esquivar foi justamente o Modernismo.

Jaider já traz isso por conta do Makunaimã, da territorialidade Macuxi mesmo, como diz o Gustavo, e que de certa forma sofreu um esbulho descarado, mas que, nessa alquimia do Jaider, ele transforma em outra coisa ao dizer que Macunaíma é fruto de Makunaimã. Depois o [Denilson] Baniwa fez um texto manifesto na ocupação da Bienal e foi o momento em que ele pintou a tela com a cabeça de Mário de Andrade. [Referência à intervenção de Denilson Baniwa como pajé-onça, na 33ª Bienal de São Paulo, e à pintura “ReAntropofagia” (2019)].

Cada um de nós tem uma maneira de articular essas questões e na nossa articulação nós devemos muito à falta de papas na língua, à coragem de Jaider de encarar e não ter medo de dar nome aos bois.

Se o Jaider não está vivo é porque ele nunca pretendeu se tornar um Romero Brito, um Anish Kapoor, inclusive, nem um Oswald nem um Mário de Andrade, e eu, muito menos uma Tarsila - porque as pessoas fazem essas comparações hediondas com as nossas relações de afeto inclusive - Daiara Tukano

 

 

IHU On-Line – Até que ponto faz sentido falar em uma arte ou movimento de vanguarda “brasileiro”, sobretudo quando se trata de considerar a radical multiplicidade dos povos habitantes deste território?

 

Gustavo Caboco – Não consigo pensar nesta questão de vanguarda, pois o ponto central é a luta dos povos indígenas. A não ser que isso seja considerado uma vanguarda que acontece desde 1500. Essa é base que está ligada a todo movimento de luta, que teve o próprio Ailton [Krenak] na Constituinte e de localizar essas figuras como protagonistas, de existir um capítulo na Constituição sobre os povos indígenas, o que corresponde a luta por território, por direitos, por reconhecimento enquanto gente. Então onde está a arte no meio de todo esse entrave? Está em todo o campo, esta é que é a verdade. Aí eu enxergo a ideia dessa nossa arte como produção de documento, algo que venho falando e nossas manifestações é que dizem isso. A ideia de manifestarmo-nos por meio de várias artes, é um pouco por aí.

 

 

Marília Librandi – Trata-se de desfazer a autoridade do adjetivo-selo de propriedade “brasileira” pelas vozes e artes que têm local, nome, etnia e línguas outras. Uma sugestão é redescrever a relação autoria brasileira-fontes indígenas como uma relação de tradução, transcriação, e artistas que se situam nessa ponte como interlocutores de cosmogonias, que se situam além e aquém do Estado-nação e seus marcos temporais, suas cercas territoriais e suas práticas genocidas. Desfazer os nós do “nós”, colocar mais zeros, aumentando a dívida brasileira e acentuar a dádiva indígena.

 

 

IHU On-Line – O que significa a “virada epistêmica, que acentua a diferença entre indígenas de não indígenas”?

 

Marília Librandi – Significa que temos de parar para ouvir o que os povos originários e o que os saberes extra ocidentais, em geral, nos ensinam. E perceber a enorme dificuldade que isso nos impõe pela extrema complexidade e diferença desses pensares, pois significa considerá-los, no mínimo, senão mais, no mesmo patamar de importância que damos aos pensadores que aprendemos na nossa educação escolar e acadêmica e teórica de base europeia.

E digo, no mínimo, porque reverencio mesmo essas culturas e esses povos, que inclusive reivindico como parte de meu patrimônio, perdido, mas que nem por isso deixa de estar presente e ativo em mim. Sou uma mulher de cor (no sentido afirmativo anti-branqueamento estadunidense, onde se usa o termo BIPOC - Black, Indigenous, People of Color) e uma pensadora mestiza, no sentido Chicano, de Glória Anzaldúa, e no sentido de um elo indígena que o Brasil maior me roubou de poder viver e que reclamo, não apenas para mim, mas para nós, como já escrevi a respeito (“Os Canela e eu”.).

No meu caso, esse elo junta-se a outros elos perdidos, o de uma ancestralidade negra muito mais que espoliada e o de imigrantes pobres (sicilianos ou calabreses; libaneses ou sírios, e portugueses, numa história que ninguém contou direito por seu apagamento). O que faz com que muitos habitem o que eu chamo de “lugar do nem”, nem isso, nem aquilo, nem aquilo outro, que também permite, espero, esses atravessamentos de outre-identificacão. Já os povos indígenas sabem a sua história e o seu pertencimento. E essa diferença mostra qual é a diferença entre nós e eles.

 

 

IHU On-Line – Como discutirmos a virada epistêmica sem cairmos em uma polarização, tão atual, mas que tende a empobrecer o debate?

 

Marília Librandi – Repito que a gente precisa ocupar o lugar de ouvintes e aprendizes de culturas extra ocidentais, que também são nossas, assim como a chamada cultura ocidental também é dos não-ocidentais. Não no sentido de propriedade, mas no de posse, como disse Oswald de Andrade, ou como me disse a Daiara Tukano: “Tem pessoas que me questionam por que eu não pinto com jenipapo e com urucum, ‘ah, por que você pinta com acrílico, por que você fala francês…'” Quer dizer sairmos dos estereótipos e das etiquetas.

Mas para esse debate eu leio sempre, recomendo muito e aprendo com os textos de Alexandre Nodari , um deles inclusive publicado aqui na IHU, e que tem esse lindo título: “Transformar-se em nós-outros” [entrevista por Ricardo Machado. Edição 543, 21 out. 2019. Disponível aqui].

 

IHU On-Line – Qual o papel do perspectivismo ameríndio neste contexto?

 

Marília Librandi – Eu sou suspeita pra falar porque faço parte de um grupo considerável de pessoas que aprendeu a enxergar a grandeza da dimensão do perspectivismo ameríndio, difundido a partir dos artigos de 1996, e os estudos da primeira década do ano 2000, pela sua tradução conceitual feita por Eduardo Viveiros de Castro, nosso “pajé onça” teórico. E não estou brincando, até porque com pajé não se brinca (pergunta pro Denilson [Baniwa] e também pra majé, Tânia Stolze Lima…).

No contexto dos indígenas, dos artistas e da arte indígena é diferente porque eles vivem e expressam o que para nós era um pensamento estrangeiro até essa tradução-passagem ser realizada.

Mas penso eu que há um dado histórico incontornável que confirma a nossa, mais que adesão, filiação intelectiva e afetiva: os textos e livros de Eduardo percorreram o mundo e abriram a cabeça dura das pessoas para fazer passar o recado: baixem sua empáfia intelectual e vejam nos seus próprios termos o mundo dos outros!

Hoje, a sua definição de “equivocação controlada” ao invés de “equivalência tradutória” tem informado os melhores estudos nos campos literários e tradutórios de gente como o Álvaro Faleiros, o Roberto Zular, a Jamille Pinheiro Dias , para citar apenas alguns nomes, pois são tantas as derivações e pessoas atuando em trabalhos colaborativos…

Como Ailton Krenak disse numa live: “Interessante, que no campo dessa arte agora do século XXI, existe uma disposição anunciada para a colaboração. […] Quem sabe se aproximem daquilo que o Eduardo Viveiros chama de perspectivismo ameríndio, o que seria enxergar em várias direções todas as possibilidades de humano.”

 

Daiara Tukano – A gente consegue pensar por outras muitas pernas que andam pelas florestas, e mesmo com os que não tem pernas… já viu cobra com pernas? Então, o nosso perspectivismo é esse povo entender que existe uma diferença entre pensamento e “xinã” (língua hatxakuin), entre pensamento morto e pensamento vivo, entre o que é chamado de arte na academia e no mercado e o que eu e o meu povo chamamos de Hori, em dahseye (língua Tukano), e que refere a miração, o desenho, o grafismo, a luz e a cor. Existe uma necessidade de ultrapassarmos barreiras das traduções e das traições: em vez de exigir que os índios falem outras línguas, se atrever a aprender algum conceito indígena.

Ao falar disso, estamos falando de alguma coisa que não é Brasil porque é mais livre do que qualquer ideia que o Brasil possa representar, que não é esse desenho do mapa que está no livro de história – nossos próprios desenhos e textos sempre serão incompletos. Nosso espírito não se limita nem sequer à nossa presença aqui, compartilhada na terra. E o Jaider é tão potente que ele continua demonstrando isso em vários aspectos e vários níveis, e talvez isso [sua morte] seja uma das mais fortes provocações dele. Pra mim, é uma tragédia… eu estou muito machucada ainda. O ponto não é nem o Jaider, nem a arte, nem o movimento… mas a relações de mundos e nossas pessoas diante desses mundos…

 

 

IHU On-Line – Os modernistas paulistas da década de 1920 – Oswald, Tarsila, Mário (entre outros) – foram defensores ou saqueadores dos povos indígenas?

 

Gustavo Caboco – O debate é amplo. Quando se vai falar dos modernistas paulistanos de 1920, a primeira questão é: onde estavam os povos indígenas nesse momento? Onde estão hoje? Qual o contexto? Muitos desses contextos de 1920 ainda estão se repetindo atualmente. Sabemos disso. Isso expressa uma noção de exclusão, da repetição da ideia de “integração”, do não-reconhecimento do outro, a ideia do racismo mesmo. Para mim, vai um pouco para esse lado o debate. Quando caímos no debate do Modernismo estamos nos afastando do que move os modos de produção artística e de pensamento da memória, da luta pela terra de fato.

 

Marília Librandi – E se pensarmos que foram, ao mesmo tempo, defensores e saqueadores? Parece-me que esse gesto contribui para uma atitude que elimina a dicotomia entre os termos, e nos lança em uma dimensão de responsabilidade, como enunciada por Clarissa Diniz.

A questão, penso, está menos no passado desses artistas e mais no nosso presente. Hoje, lemos o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, não apenas ligado aos estudos estético-literários da literatura brasileira, mas também junto às suas fontes Pémon, tais como expostas no estudo pioneiro de Lúcia Sá (no livro Literaturas da Floresta), o qual, inclusive, celebra a intimidade de Mario com essas fontes, ao contrário da desleitura que faz Vargas Llosa das fontes Machiguenga. E também relemos e deslemos Mário pelas vozes e artes dos netos de Makunaîmi, como Jaider e Gustavo.

Lembro também que Oswald, na sua sabedoria tinha avisado: “O meu destino é de um paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga: ser estraçalhado”. Acho interessante pensar como essa imagem dialoga com a dos paraquedas coloridos de Ailton Krenak e também com as linhas desenhadas por Jaider, que em seus mil e um traçados coloridos em fundo escuro lembram outros modos de paraquedismo…


Daiara Tukano – Da Anita , da Tarsilona, os Andrades, não deixam eles nem descansar, e não entendem que a parada mesmo é que a gente não dura mais um século nesse planeta…

 

IHU On-Line – O que significa dizer, como afirma Ailton Krenak, que “o edifício (...) da cultura é uma ruptura com o equilíbrio da vida e dos povos”? Podemos pensar a cultura, convocando Benjamin para este debate, como ruína?

 

Marília Librandi – Essa frase de Ailton é parte de uma conversa, em debate com Jaider, Paula Berbert e Pedro Cesarino, no lançamento da exposição “Moquém_Surarî”, e que transcrevi em parte no meu texto, como quando ele diz: “O vasto desenho do mundo colonial, ele é feito de conchinhas catadas nas nossas praias para decorar esse maravilhoso painel.”

A gente sabe que Walter Benjamin usou o termo ruína tanto como alegoria daquilo que foi destruído no passado como daquilo que permanece como potência não realizada a ser pensada, essa a tarefa do historiador contra uma ideia de progresso, e de pensar justamente nas destruições, nos destruídos e nos silenciamentos. Pensar em cada conchinha catada nas nossas praias e não no vasto desenho dos edifícios construídos com e sobre elas.

Então, se a cultura é ruína, podemos dizer que o que chamamos de arte indígena é o humus. Se a ruína é resquício do que morreu, o humus é a terra fervilhante de matérias vivas.

Convocar Walter Benjamin para essa conversa traz uma outra dimensão a esse debate, sobretudo se lembrarmos que ele se suicidou em 1940 tendo à sua porta dois soldados nazistas prontos para levá-lo para o governo de Vichy, na França, e nós estamos aqui também diante da morte de um artivista xamânico, como Jaider Esbell, e que ocorreu e ocorre durante um governo suicidário das vidas e terras indígenas no Brasil, no maior ataque de destruição, assassinato, armas em punho, ideias de se asfaltar a Amazônia, minerações, garimpos, e venenos, e, então, essa morte é ruína, e também será, esperemos, potência de humus.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

 

Daiara Tukano – Quero só ressaltar mesmo a coragem em compreender que debater essas ideias, esses estereótipos, os cânones, as referências, que isso já está feito, e que a gente precisa passar para outra maneira de nos relacionar entre nós e principalmente com o mundo. Jaider falava muito sobre a justiça das coisas, e eu entendi que essa tal de justiça nunca houve, a própria ideia de justiça é egoísta de mundo, antropocêntrica, tudo gira ao redor de nosso umbigo, e fazer essa ruptura é muito desafiador, mas se a gente sai do antropofagismo do Antropoceno, a gente pode se libertar de nossa própria destruição nem que seja aceitando-a de uma maneira menos ingrata.

De que adianta debater o Brasil se a gente está mantendo um debate que apenas mantém a violência colocada por essas fronteiras por esses estados modernos limítrofes, que têm levado a esse ponto de exaustão nosso sistema de mundo? Então, a gente precisa se libertar dessas fronteiras e pensar as relações entre arte ciência e política junto com filosofia, com ética e fazer disso uma prática e, com certeza, espero que um dos desafios que o Jaider deixou, e que essa experiência tem me mostrado, é que espero que nós possamos sobreviver a nós mesmos porque para ele não foi possível.

 

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