Ver em camadas o cruzamento dos mundos. Entrevista especial com Jaider Esbell

Reprodução dos quadros da exposição TransMakunaima, autorizada pelo autor | Fonte: Reprodução do Facebook

Por: Ricardo Machado | 05 Novembro 2021

 

A entrevista a seguir foi publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU originalmente em 24 de agosto de 2018. Sua retomada faz parte de um gesto de recuperar a memória de Jaider Esbell, que foi encontrado morto em seu apartamento no último dia 2 de novembro de 2021, em São Paulo. Jaider Esbell era da etnia Macuxi e artista, curador, escritor, educador, ativista, promotor cultural e pensador contemporâneo. A 34ª Bienal de São Paulo, exposição que segue até o dia 5 de dezembro no Parque do Ibirapuera, tem nas obras de Jaider Esbell sua espinha dorsal. Ele realizou uma série de outros trabalhos coletivos com outros artistas. Jaider, que perdeu sua avó - Vovó Bernaldina - para a Covid-19 em junho de 2020, pertencia à comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

 

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Do fundo das matas o grito ameríndio denuncia um Brasil que nunca operou sequer por seu imperativo positivista, ordem e progresso, que dirá a partir de uma perspectiva plural e humanitária. “O que há é um constante retrocesso para com o bem comum, a natureza e tudo o que nela vive, especialmente os humanos nativos de cá, onde me incluo”, descreve Jaider Esbell, com objetividade e clareza indiscutíveis. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o artista Makuxi lembra que o “nativo está deslocado ainda em termos de movimento e representatividade política, aqui no Brasil. O indígena não cabe no movimento negro e não queremos mais uma guerra, com mais ninguém. Falo sobre nossa letargia, do pouco movimento político-sócio-cultural no sistema global das representatividades”.

É próprio das sociedades hegemônicas nos exigirem a todo tempo maior transparência, fluidez e produtividade, não deixando espaço para tudo que é da ordem do mistério. Mas ver em camadas requer uma outra forma de pensar e de se relacionar com o tempo. “É fundamental acolher a sabedoria dita de raiz dessa geografia, ouvir e praticar as sabedorias que dialogam direto, ainda, com a natureza maior, com o inexplicável, aquilo que não está em canto nenhum, nem na biblioteca de Alexandria”, sugere Esbell. “Estamos loucos de vontade de viver uma vida boa e nos fazemos cegos para estar em festa no ato do fim do mundo? E se mais alheio o leitor ou eu estivermos para tudo isso, podemos pensar que os mais ricos realmente mereçam ir para Marte, ou viver em cápsulas em suas naves enquanto o pobres devam servir apenas de combustível fóssil para suas turbinas”, provoca.

 

Jaider Esbell | Foto: Reprodução - Facebook

 

Jaider Esbell é artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. Nasceu em Normandia, estado de Roraima, e viveu, até os 18 anos, onde hoje é a Terra Indígena Raposa – Serra do Sol (TI Raposa – Serra do Sol). Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Roraima – IFRR, é autor de diversos livros, dentre eles Terreiro de Makunaima – Mitos, lendas e estórias em vivências (Prêmio Selo Funarte de Literatura, 2010) e Tardes de agosto, Manhãs de Setembro, Noites de Outubro (2013). Em 2016 pelo conjunto da obra foi indicado ao prêmio PIPA de Arte contemporânea onde é vencedor na categoria On-line. Jaider Esbell mantém uma galeria de arte na cidade de Boa Vista-RR e na internet mantém o site, onde publica assuntos contextuais de seu trabalho plural.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância de reconhecer e conhecer os povos indígenas em sua pluralidade, diferenças e em sua relação com o mundo branco?

Jaider Esbell – A gente deve pontuar nossa expectativa fazendo um recorte para situar o interlocutor, a mídia brasileira, o indígena brasileiro e o brasileiro propriamente dito, nesse caso, representando o mundo branco. Quando digo isso chamo a atenção para a necessidade de se ter um foco. Temos de encarar a necessidade de se ter uma identidade, por estratégia, decididamente. O mundo meramente branco não deu certo como referência e acredito que este fato já faz sentido para boa parte da humanidade. Qual o propósito de nossas intenções em afirmar? Eu quero salientar uma urgência; a de que a nação Brasil deve se permitir um solavanco, um choque de realidade urgente em relação ao seu comportamento passivo no mundo maior. Não sabemos de fato os propósitos gerais das engrenagens, sabemos das urgências dos povos, seus limites geográficos, políticos e suas potências filosóficas. Sabemos que desaparecem cada vez mais todo dia, toda hora. Sabemos que se deslocam, que migram e essa é uma urgência do mundo. Lemos que há uma bandeira, a terra. Vemos horizontes plurais sobre os usos dessa própria terra, ao menos as intenções e parte dos desejos são oferecidos pelo próprio algoz, o dito mundo branco.

O nativo está deslocado ainda em termos de movimento e representatividade política, aqui no Brasil. O indígena não cabe no movimento negro e não queremos mais uma guerra, com mais ninguém. Falo sobre nossa letargia, do pouco movimento político-sócio-cultural no sistema global das representatividades. O Brasil nunca foi balizado por uma ideia concreta de Ordem e Progresso. O que há é um constante retrocesso para com o bem comum, a natureza e tudo o que nela vive, especialmente os humanos nativos de cá, onde me incluo. Vemos o acentuar da crise do mundo dominador, crise na/da cultura envolvente, do modo de ser das coisas. A diversidade, a riqueza de povos e culturas que alimenta o mundo de energia positiva está enfraquecida pela ideia de uma só cultura e isso não é nada bom por todas as razões. Andamos, ao que parece, mais distantes daquilo que precisamos e nos tornamos aquilo que não queremos.

É importante que se veja com clareza os mais diversos tons de realidades indígenas e suas colocações diante do mundo dos brancos. Somos também latino-indígenas-americanos e mesmo aqui ainda cabe o termo exótico, por uso deslocado, somos a raiz desse tempo histórico. Falo de mestiçagem, miscigenação? Falo de raiz, da invenção das raças?

Vejo que há duas grandes correntes-forças ao menos, na prática desse romance. Uma – o ente urbano, ou excluído dele quer ir para a floresta, o que não dá. Duas – os das florestas ou os expulsos delas acham que as cidades são a alternativa para tanta violência que há por lá, o que igualmente não dá.

Falar em políticas gerais específicas e diferenciadas que atendam minimamente o tempo de assimilação de sociedades distintas a tão drástica guinada, no sentido maior da vida, o que será diferente para sempre é fundamental. Ver em níveis e em camadas é um exercício que pode mostrar o cruzamento de mundos. Pode espetacularmente evitar em tempo uma chacina genocida sem precedentes, e nesse caso, vindo de dentro, de um lugar inesperado. É fundamental acolher a sabedoria dita de raiz dessa geografia, ouvir e praticar as sabedorias que dialogam direto, ainda, com a natureza maior, com o inexplicável, aquilo que não está em canto nenhum, nem na biblioteca de Alexandria. É para ao menos no campo das ideias fazer uma leve ideia de justiça com esse corpo diverso e uno tendo como parâmetro o fluxo de culturas em movimento.

IHU On-Line – Por que é importante fugir de uma imagem que busca reconhecer os indígenas a partir de uma ideia de pureza?

Jaider Esbell – A pergunta está muito aberta mas vamos pensar algo nesse sentido. A carga de responsabilidade que se coloca sobre as populações indígenas é muito pesada vindo de onde vem, o mundo ocidental. Ao mesmo tempo não lhe é dada a chance de se corresponder com maestria às alturas. O indígena serve bem até um certo ponto, um ponto incerto. Depois, dizem que eles/nós já não servimos mais. Projetar o fracasso do diálogo e a perda da fé nos valores das coisas, nas ideias do que sejam o sagrado e o profano absoluto é arriscado demais quando se percebe que, ao ser visto, o modelo branco de viver e usufruir do mundo deturpa a ideia de essência. O mundo branco acabou com a natureza e os indígenas ainda dependem direta e exclusivamente dela. Seria essa equação a ideia fixa sobre a pureza? Há uma faixa delimitada que embora expandida é mapeável (sic), ou seja, dá para delinear e embora maleável é bem fixa.

O fluxo deturpa pois cria o desejo de ter, parecer, querer ser e nesse sentido a pureza já não aparece mais, pois é de adoção que as culturas são compostas, ou não? Falo mais especificamente sobre a relação dos nativos com os campos expandidos da relação mundo material versus ambientes, paisagens extrapoladas, outras culturas, o que nos remete ao termo espiritualidade, a junção espontânea de gente-bicho-ser da natureza. O bom selvagem precisa matar para comer, como qualquer ser vivente, pois são gente e mesmo que fosse bicho ou planta precisamos de algum tipo de alimento.

É totalmente excludente o sentido da pureza, pois remete a um isolamento inviolável, a algo invisível, inatingível, fora de qualquer contexto e alcance político inclusive. Privilegiar politicamente o sentido de pureza é promover etnocídio, genocídio, desumanizar e desconsiderar a linha do tempo das coisas.

Há um risco nisso, pois me parece um argumento frágil, uma paisagem frágil que é mesmo sugestiva a autoeliminação. Pureza é fragilidade onde tudo é impuro. Insistir em pureza e implodir o campo das ideias é uma selvageria às avessas, um corpo sem anticorpo, algo muito delével e vulnerável. Muito complexo tudo isso.

IHU On-Line – Como o senhor, sendo também integrante do povo Makuxi, tem percebido os desafios ambientais e da vida no planeta no atual momento?

Jaider Esbell – Ter uma identidade indígena não me coloca a par dos dilemas do mundo. O povo Makuxi tem contato com o grande mundo antes mesmo do “descobrimento”. Como um homem Makuxi exposto eu devo falar do mundo aberto com a sabedoria de um Makuxi local. Eu não tenho uma esposa e filhos para deixar sobre a terra em busca de felicidade. Assim, eu falo de um lugar existencial ainda mais próprio embora seja Makuxi e saiba que minha existência é ínfima mas representa muito, pois sou uma forma de mídia. Eu sinto e vivo as sensações de um artista. Olhando para o meio de onde me origino vejo também angústia, vejo sentidos de prosperidade e sentidos de depressão. Há falta de ânimo vindo dentro do meu povo enquanto tantos outros Makuxi festejam suas razões de felicidade. Contudo eu me inspiro também em sua resistência, em sua resiliência, em seu reinventar e buscar rever o modo de andar, estar no mundo moderno, ou no dito hoje, a contemporaneidade enquanto povo definido. Conflitos geracionais e de ordem filosófica são nítidos. Os mais velhos dizem e a juventude não escuta e eu estou, de novo, no meio de mundos em transe e sou cobrado. A minha geração tem nas mãos a grande passagem e o meio ambiente grita sua urgência com fatos catastróficos claros. Eu sou feliz fazendo parte com arte e ao que parece tem sido bom para uma boa parte que não saberia dizer ou requerer a maioria. A arte me faz pensar que a sabedoria do jabuti diante da voracidade da onça é o meio mais cheio de vida para se ir indo bem dentro do mito.

IHU On-Line – Como a natureza tem se comunicado conosco? Qual o recado da mata com as secas, as inundações, ondas de frio e calor extremo?

Jaider Esbell – Acredito que estamos assustados com os aspectos da alta tecnologia e não reconhecemos mais as forças da natureza como tais, pois temos uma conta em aberto com ela. A natureza manda mais um de seus inúmeros e cíclicos recados: essa onda está alta demais, diminuam o ritmo. A alta tecnologia tem gerado emissões de poluentes que extrapolam nosso corpo indo consumir tudo o que é alcançável. Acredito que tivemos a ousadia de ferir os campos mais sutis, mais delicados daquilo que nem nome tem em relação a esta persona maior, a Mãe Natureza com letras maiúsculas. Como indígena e como um homem que pode dizer que ama de um modo especial a vida, que pode se expressar minimamente bem em português, algo que já dá aspectos para ampla tradução para muitas línguas, busco usar essa linguagem para tentar responder a essa questão. A lei física da ação-reação se faz na prática bem diante dos nossos olhos. Se em nada disso cremos e preferimos outro modo de explicação, temos o sentido do castigo puro e simples. Uma herança maldita dos que viveram antes e não pensaram na gente, assim como não estamos pensando nos do por vir. Estamos loucos de vontade de viver uma vida boa e nos fazemos cegos para estar em festa no ato do fim do mundo? E se mais alheio o leitor ou eu estivermos para tudo isso, podemos pensar que os mais ricos realmente mereçam ir para Marte, ou viver em cápsulas em suas naves enquanto o pobres devam servir apenas de combustível fóssil para suas turbinas.

IHU On-Line – O modelo de vida moderna da civilização branca de extrativismo e exploração ambiental sem limites mostra sinais de esgotamento. Como o povo Makuxi se relaciona com o meio ambiente?

Jaider Esbell – Como disse antes, não se surpreenda, pois tem Makuxi de todos os tipos e naturezas. Volto a dizer que eu sou um artista e minha exposição de vida vai, em muitos aspectos, de encontro à ideia de vida padrão Makuxi. De fato, há um povo e é só mais um povo que viu o mundo maior e quer fazer parte, seja como for. Um exemplo: boa parte das comunidades Makuxi cria gado bovino em suas terras e hoje, depois de já ter criado e ter sido um vaqueiro já não como mais a carne de gado bovino, mas consumo o leite contido em outros alimentos. Eu não como a carne bovina mas uso o couro para fazer arte, eu me deito em uma capitiana (rede de couro) e eu uso o esterco de gado na minha horta e desenho uma vaca e vendo como arte.

O movimento indígena já discute mesmo timidamente os aspectos plurais inclusive negativos da criação de gado nas terras de Makunaima, ou seja, nos campos naturais da Amazônia caribenha. É crítico para todos os lados, para todos os tempos, para todas a gerações de gente que chega diariamente a pisar e ocupar esse espaço que hoje discutimos essas questões já atrasadas. Atrasadas pois seus efeitos estão lá na frente. A vontade de fazer parte do mundo faz os indígenas, também, tomar medidas drásticas como adotar medidas superagressivas à natureza. Avaliar isso como um fracasso não é o que busco fazer. Ver como um desafio urgente é um trabalho educativo, coisa em que a arte insiste, embora pareça ilógico falar em cultivar orgânicos para o povo que vive no meio da floresta e a gente da cidade pensa que lá tá cheio de vida nos rios mas não está. No meio da natureza a natureza se recolhe em buracos, peixes se criam em tanques e no leito maior do rio grande desce a morte em forma de mercúrio, plástico, esgoto e pesticidas do agronegócio.

IHU On-Line – O senhor é artista indígena e Makuxi; como a arte também expressa as cosmologias ameríndias?

Jaider Esbell – O Makunaíma da capa do livro vai dar em Makunaima que indo mais vai-se chegar em Makunaimî, uma grafia aproximativa do que se fala, se estuda e se ensina, o idioma, a dita língua mãe Makuxi desse tempo. Querendo vamos dar em ambientes ainda nunca visitados por, inclusive, boa parte dos Makuxi. Aqui há pistas, uma rota contínua que pode parecer reversa de um ato sem fim. A mitologia pode ser um campo suspenso onde quem acha meios acessa. As mídias são pontos de inflamação, inchaços, pontos de vidas pois matam, mas dão vida se tempo e força se aplicam nessa agência. Falar de Makunaíma é abrir portais para múltiplas identidades, abrir um campo de existir para, inclusive, as vidas-povos tidos como extintos. A arte ressuscita e nessa loucura eu bem acredito. Eu falo de minha perspectiva visto que vivo esse tempo fazendo a leitura de mundo que acredito que me caiba ou que me comporte. As Américas são o “mundo novo” mas sabemos que isso não tem idade, mas tem identidade. Vivo um tempo fértil onde as mídias mais acessíveis podem dar vazão a forças de culturas distintas, ocultas para a multidão mas vivas em suas fontes.

Hoje podemos aos nossos modos e meios reivindicar reinvenções. Hoje podemos contestar a literatura clássica, podemos de fato falar como membros de sociedades desconhecidas e surpreender com a força que a arte somada com a espiritualidade dá, vamos dizer assim, que pode nos dar. Vemos as manifestações acontecerem, sentimos, conduzimos, corporificamos. Há um lindo encontro entre talento artístico e dom maior de algo como potências xamânicas, mestres natos dos saberes que dormiam em algum lugar e que agora despertam. Há um grande despertar nas bordas de mato virgem que ainda restam nos sertões, nos rincões, nos livros velhos que estão sendo reabertos. Muito a compreender sobre o assunto, por hora estamos sentindo seus primeiros sinais.

IHU On-Line – Como está sendo sua exposição TransMakunaima? Por quais estados ela passou e por quais estados vai passar?

Jaider Esbell – Pelo estado de transe, espero. Essa é a minha maior vontade, pôr tudo em estado de transe. Na prática eu expus, com essa curadoria em Manaus e em Brasília. No ambiente de internet há uma exposição constante. Para mim enquanto criador dessa provocação expus já em dois potentes e estratégicos ambientes. Manaus, a cidade de pedra no meio da floresta gigantesca e em Brasília, capital de outros poderes pobres como a política partidária e seu lixo poluidor maior, os efeitos sem precedentes da corrupção. Quero estar em São Paulo, nosso outro coração antes de seguir para o mundo maior. É estar imerso em nossa maravilhosa lama fértil, a impressionante brasilidade, ou mesmo a falta dela, o que já a faz existir. Tenho tido boas surpresas, pois os aspectos nefastos de tamanha exposição de minha vida, minha privacidade nesse ambiente de vaidades eu já sofro feliz há um bom tempo. Tem sido fantástico!

Reprodução de obra que integra a exposição TransMakunaima  (Foto: Reprodução - Facebook)

IHU On-Line – De que forma seu trabalho como artista contribui e legitima as lutas políticas dos povos indígenas?

Jaider Esbell – A luta dos povos indígenas é legítima em todos os tempos e espaços. O que é fundamental é que nós, os que alcançam as mídias e espaços de poder reconheçamos que somos frutos também desses movimentos. Que atuemos certeiros e onde o nosso trabalho alcançar reafirmemos com visão atual a luta, sempre, e isso é uma forma diferenciada de fazer e atuar politicamente, também. Indo em lugares onde antes era impensável o indígena estar. É estar com elegância fazendo outros usos das mesmas forças. É adotar uma estética estratégica para ocupar com dignidade todos os ambientes de representação que a arte pode dar aos povos indígenas, o que a mera política partidária a atuação de ONGs indígenas e indigenistas não alcançam. Construindo não-lugares para que as questões mais urgentes estejam além do mero pensamento. É antes de tudo propor um ambiente respeitoso, construtivo e sempre desafiador, harmônico. É um estímulo fundamental que remete e requer diretamente práticas, atitudes, legitimidades e justiça. É proporcionando um olhar diferenciado para o termo-ser índio. É alertar o próprio homem/mulher/ser nativo sobre os cuidados essenciais para com a natureza.

Acredito que remetendo o inconsciente coletivo a um lugar de memória não convencional como, por exemplo, trazer à luz do contexto aspectos e feitos menos perceptíveis da antiga e da nova colonização. Meu trabalho é inteiro para o outro e o outro é um lugar imaginado, mas a natureza é de todos e eu luto pela natureza maior. Talvez, a primeira sensação que meu trabalho pode provocar é uma profunda zona de conflito, desconforto e do outro lado um acolhimento, um alcançar, um abraçar caloroso. Eu pensei que podia explicar, mas estou no meio de tudo isso e só tenho uma imensa sensação de paz desafiadora e não consigo de fato me explicar.

IHU On-Line – Qual a importância dos indígenas em se relacionarem também com aspectos do mundo branco, como, por exemplo, fazerem cursos em universidades? De que forma esse diálogo entre mundos é produtivo?

Jaider Esbell – É produtivo quando ambos os lados ganham e a natureza respira. É produtivo quando as universidades se dispõem a acolher os indígenas como conhecedores específicos em seus próprios saberes e não como entes secos, ignorantes e rudes. Quando há um ambiente onde se reconhece o valor mínimo dos saberes que chegam nos bancos das salas de aula com os indígenas alunos e que isto representa um saber coletivo e não seletivo. Vemos isso na educação ocidental? Quando a relação entre a instituição e o aluno não é uma relação onde este segundo se sinta diminuído, mas estimulado a colaborar para o que se espera de um ambiente de partilha e aplicação de sentidos para uma ideia de bem comum. Quando a cooperação de mundos tão distante beneficie a construção de um horizonte viável e se configure em alternativas, a academia, em tese, ainda é o canal certificador oficial. Os indígenas já perceberam isso, foram buscar estar lá e foi com luta que conseguiram. Se hoje temos indígenas mestres e doutores isso também tem fundamento com a luta política organizada histórica que geralmente não aparece e até é esquecida em alguns casos por seus próprios beneficiados, os estudantes indígenas.

IHU On-Line – De que maneira os povos ameríndios têm apresentado à civilização branca novos modelos de convivência e relação com os demais seres do universo? Por que deveríamos estar de ouvidos mais abertos aos saberes ancestrais indígenas?

Jaider Esbell – Quando resistem eles se mantêm lá, no ambiente onde as forças maiores acolhem e nutrem. Quando argumentam consigo mesmo em agonia, avançam das armadilhas disfarçadas de um mundo moderno onde já é passado uma fábula, um mito, um ancião. Devemos ouvir o conselho dos velhos, pois eles já souberam o que é perder a esperança e tentam manter a vida em seu melhor, em nós.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Jaider Esbell – Agradecer essa sensibilidade em ter a paciência de ouvir!

 

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