03 Abril 2024
Num livro-entrevista, Bergoglio diz: “Faltava a Dom Georg Gaenswein nobreza e humanidade. Alguns cardeais queriam me levar a julgamento, Ratzinger me defendeu”. E revela: o Papa Emérito foi isolado e foi “usado”.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 02-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dom Georg Gaenswein demonstrou uma “falta de nobreza e humanidade”: o Papa Francisco afirma isso no livro-entrevista Papa Francisco. El sucessor (edições Planeta), feito com o jornalista Javier Martinez-Brocal e que sai amanhã (dia 03-04-2024) na Espanha.
Jorge Mario Bergoglio explica que o funeral de Bento XVI, que segundo alguns foi moderado, foi totalmente administrado por D. Gaenswein, e faz saber que o seu próprio funeral será mais sóbrio que o dos seus antecessores e, em particular, o seu corpo será fechado em caixões e não será exposto à devoção dos fiéis.
No volume, inteiramente dedicado a Joseph Ratzinger, o Pontífice argentino analisa detalhadamente a sua relação com o seu antecessor, sublinhando a harmonia e continuidade com o Papa alemão e tirando algumas pedrinhas do sapato. Conta a história de quando Gaenswein trouxe ao Papa Emérito um chefe de departamento que acabara de ser demitido pelo Papa reinante para uma sessão fotográfica então usada para credenciar um conflito entre os dois; relata que Joseph Ratzinger foi isolado pelo seu secretário alemão; um estado de “custódia” que também emerge de outro episódio, quando a enfermeira que o avisou que o Papa Emérito estava próximo do fim foi acusada por um médico de ser uma “delatora”. Mas também explica um fato que ele já tinha mencionado em público, relativo a alguns cardeais que queriam instaurar uma espécie de julgamento por “heresia” contra ele, quando Francisco fez uma declaração a favor das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, indo denunciá-lo a Bento XVI, que, no entanto, tendo aprofundado o assunto, concordou com ele. Francisco sublinha como, logo que foi eleito, continuou o trabalho de limpeza que Ratzinger tinha iniciado quando eclodiu o caso Vatileaks: uma das vítimas dessa conspiração, revela, foi o atual secretário de Estado Pietro Parolin.
Várias passagens do livro-entrevista são dedicadas a Georg Gaenswein, o arcebispo alemão que, ainda antes do funeral, publicou o livro Nada além da verdade (ed. Piemme) no qual contava a sua versão das diferenças que surgiram entre o Papa reinante e o Papa emérito nos dez anos de convivência sem precedentes. Depois de alguns meses sem destino, Francisco enviou Gaenswein de volta sem para sua diocese alemã, onde hoje reside.
“Que no dia do funeral tenha sido publicado um livro que fala mal de mim, contando coisas que não são verdade, é muito triste”, diz o Papa. “Obviamente não me afeta, no sentido de que não me afeta”. Mas lamento que Bento XVI tenha sido usado. O livro foi publicado no dia do funeral, vivi isso como uma falta de nobreza e de humanidade”. Já no voo de regresso da África, no início de 2023, o Papa tinha declarado que a morte de Bento XVI tinha sido explorada “por pessoas sem ética”, mas agora o julgamento é mais duro e, sobretudo, a referência a Gaenswein é explícito.
Bento XVI “era um cavaleiro. Em vez disso, digo-lhe com pesar que o seu secretário às vezes dificultou as coisas para mim. Lembro-me de um caso em que substituí alguém que estava à frente de um departamento e a decisão causou alguma polêmica. No meio de todo aquele barulho, o secretário tomou a iniciativa de levá-lo para ver Bento XVI, já que aquela pessoa queria cumprimentá-lo. O problema é que divulgaram a foto daquele encontro, como se Bento XVI contestasse minha decisão. Honestamente, não estava certo". Segundo o Papa, Ratzinger “não estava totalmente consciente” destas manobras.
Uma atitude manipuladora que, segundo Francisco, já havia sido adotada muitos anos antes. Gaenswein assumiu o cargo de seu secretário particular já quando Ratzinger era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, substituindo outro secretário, monsenhor Josef Clemens, que permanecia amigo do futuro Papa. “Um domingo – diz Francisco, relatando um episódio que lhe foi contado – Bento ligou para Clemens e disse-lhe: “Agora posso ligar para você porque Dom Georg foi embora”. É como se, para não ofender seus colaboradores, ele evitasse telefonar para ele". De modo mais geral, Ratzinger “era um homem de grande mansidão. Em alguns casos, algumas pessoas aproveitaram-se disso, talvez sem má intenção, e restringiram seus movimentos. Infelizmente, de alguma forma, eles o cercaram. Ele era um homem muito delicado, mas não fraco, era forte. Mas ali, consigo mesmo, foi humilde e preferiu não se impor. E então ele sofreu o suficiente".
Gaenswein também aparece no conhecido episódio do livro sobre o celibato sacerdotal obrigatório publicado com a dupla assinatura de Bento XVI, agora Papa Emérito, com o cardeal tradicionalista Robert Sarah: a responsabilidade, evidentemente, do secretário alemão (a assinatura de Ratzinger foi retirada de uma edição posterior), para o qual, diz o Papa, “fui obrigado a pedir ao secretário de Bento XVI que solicitasse uma licença voluntária, mantendo a função de prefeito da Casa Pontifícia e também o salário”. Quanto ao cardeal guineense, “o cardeal Sarah é um homem bom, muito bom”, diz Francisco, mas “às vezes tenho a sensação de que o trabalho na Cúria Romana o deixou um pouco amargurado”.
Francisco, que não quer falar da disposição com que anulou a liberalização do missal pré-conciliar decidida por Ratzinger, esclarece antes outra história que sempre mencionou na conferência de imprensa de 2023 no seu regresso de África. Um dia, diz ele, alguns cardeais “apareceram na casa” do Papa Emérito “para praticamente me levar a julgamento e me acusaram na frente dele de ter promovido o casamento homossexual. Bento não se aborreceu, pois sabia perfeitamente o que eu pensava. Ele os ouviu, um por um, acalmou-os e explicou-lhes tudo. "Foi quando – explica Francisco – o Papa, embora reiterando o não da Igreja ao casamento homossexual, abriu-se às uniões civis. “Alguns foram dizer a Bento que eu estava falando de heresias ou algo assim. Ele os ouviu e os ajudou a distinguir as coisas. Ele lhes disse: “Isso não é heresia”. Como ele me defendeu! A situação – continua Francisco – ajudou-me a compreender que aqui tinha pessoas meio cobertas e que aproveitavam a menor oportunidade para me morder. E ele sempre me defendeu".
Também relevante no livro-entrevista com Martinez-Brocal é a reconstituição das últimas horas de Bento XVI e dos dias que se seguiram. Foi Francisco quem, no final da audiência geral de 28 de dezembro de 2022, anunciou publicamente que as condições de saúde do seu antecessor estavam piorando. “Bento XVI estava muito bem no Natal, tanto que o seu secretário, Georg Gaenswein, tinha ido para a Alemanha no dia anterior”, recorda o Papa. Mas naquela noite o Papa Emérito teve uma “grave crise respiratória”, disse o médico, entrando na fase terminal” e “por isso me avisaram imediatamente”. O Pontífice pediu publicamente orações por Bento XVI, foi visitá-lo e, enquanto ele saía do mosteiro onde vivia Ratzinger, “uma das enfermeiras me acompanhou, e um dos médicos que estavam no mosteiro lhe disse: “Você é uma espiã", acusando-a em tom depreciativo". Porque, comenta o Papa, "a mentalidade dos médicos era manter tudo fechado. De alguma forma, isso me fez entender que Bento estava quase sob custódia. Entenda-me, não estou dizendo preso ou trancafiado, mas sob custódia".
O Papa Francisco também volta ao funeral de Bento XVI. Javier Martínez-Brocal recorda algumas polêmicas por parte daqueles que queriam atribuir ao Papa reinante um “perfil pouco informativo” em relação ao funeral do seu antecessor. “Deleguei tudo a D. Georg Gaenswein”, resposta seca de Bergoglio. “Quando ele morreu, me perguntaram o que deveria ser feito e eu disse: “O que o secretário de Bento decidir”. Eu não queria me intrometer".
Falando do funeral do seu antecessor, Francisco fala também do seu: a de Bento XVI “será a última vigília realizada assim, com o cadáver do Papa exposto fora do caixão, num catafalco. Falei com o mestre de cerimônias e eliminamos isso e muitas outras coisas”. O Pontífice argentino explica: “Estou revisando o ritual com o mestre de cerimônias para que os Papas sejam encomendados e sepultados como qualquer outro filho da Igreja. Com dignidade, como qualquer cristão, mas não por cima dos travesseiros. Na minha opinião, o ritual atual era muito exigente. Fazer duas vigílias parecia excessivo. Que haja apenas um e com o Papa já no caixão, como em todas as famílias. Mudei várias coisas, em linha com a reforma que Paulo VI e João Paulo II já haviam feito”. E ainda: “Não haverá mais cerimônia de fechamento do caixão. Tudo será feito na mesma cerimônia, como acontece com qualquer cristão. Além disso, no meu caso, terão que me levar à basílica de Santa Maria Maior. Quando terminar o funeral, levar-me-ão até lá”, explica o Papa, que já tinha antecipado este acordo nos últimos meses. Francisco, porém, nega o boato de que pretende alterar a lei eleitoral do Conclave.
Várias vezes o Papa sublinha a “continuidade” com o seu antecessor e, em geral, a continuidade entre os Papas, apesar de diferenças pessoais específicas. Francisco cita também um caso muito concreto, o do escândalo que marcou a última reta do pontificado de Bento XVI, o dos “Vatileaks”, os documentos confidenciais do Papa alemão roubados pelo mordomo e filtrados para a imprensa. “Foi uma conspiração”, diz Bergoglio, usando o termo argentino “trenza”: “Pessoas que manobraram, contornaram… Uma das vítimas teria sido o atual cardeal Pietro Parolin, já que queriam impedi-lo de se tornar secretário de Estado. Mas uma coisa te digo sobre quem ficou para trás: as pessoas que erram, você tem que perdoá-las e seguir em frente. Outra coisa é quem está escondido. Houve algumas pessoas de segundo nível que sujaram as mãos". Foi em relação a estes instigadores que os dois Papas agiram de comum acordo: no seu primeiro encontro, como se sabe, em Castel Gandolfo, Bento XVI entregou a Francisco uma caixa branca cheia das conclusões da investigação interna que tinha encomendado a três cardeais: “Ele me deu todo o material e me disse: “Troquei essa pessoa, troquei aquela e também aquela outra. E agora sugiro esta pessoa, e esta também, etc.” Ele me contou tudo. Num espaço de tempo razoável, mudei as pessoas que o Bento XVI me sugeriu e também outras que decidi mudar”.
No livro-entrevista, o Papa Francisco revela vários outros episódios mais ou menos conhecidos do passado, como o empenho de Bento XVI em investigar os abusos sexuais do fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel, contestado por parte do partido wojtyliano na Cúria, e para investigar a comunidade francesa de Saint-Jean; revela que alguns em Roma tentaram impedir o Papa alemão de ir ao encontro dos bispos latino-americanos que teve lugar em Aparecida em 2007; e que como prefeito do antigo Santo Ofício insistiu em bloquear aqueles que queriam mandá-lo para a aposentadoria como arcebispo de Buenos Aires.
O Papa fornece a sua própria reconstrução do Conclave de 2005 e de 2013, onde, afirma Francisco, até o Cardeal Angelo Scola, o grande perdedor desse Conclave, votou nele. O caminho sinodal alemão “o preocupava”, diz Bergoglio, e a carta aos fiéis alemães que Francisco escreveu em 2019 foi, segundo Ratzinger, “um dos documentos mais relevantes e também profundos” do seu pontificado.
Bento XVI, afirma Francisco, foi um “grande teólogo”, mas também um “autêntico pastor”; não chega a dizer que é um “doutor da Igreja”, mas diz estar convencido de que poderia sê-lo; ele não endossa a definição de “conservador” atribuída a Ratzinger e, de fato, faz questão de dizer que foi “progressista”, em particular durante o Concílio Vaticano II, mas, ressalta, “mesmo a decisão de renunciar era muito avançado, muito progressista”.
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“Alguns em Roma tentaram impedir que Bento XVI fosse ao encontro dos bispos latino-americanos em Aparecida”, revela o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU