18 Março 2024
A Palestina é o laboratório de Israel, uma nação ocupada, cuja população está submetida a um experimento forçado de controle, no qual o Estado de Israel testa as mais recentes tecnologias que depois exporta para a maioria dos países do globo. É o que explica Antony Loewenstein (Melbourne, 1974) em El laboratorio palestino: cómo Israel exporta la tecnología de la ocupación.
Seus avós fugiram da Alemanha nazista e foram para a Austrália como refugiados. Depois de crescer em uma casa sionista liberal, em Melbourne, Loewenstein trabalhou por muitos anos em Jerusalém Oriental, onde chegou a se sentir “profundamente envergonhado do que se fazia em meu nome como judeu”.
Escreveu para meios de comunicação como The New York Times, The Guardian e Al Jazeera, e é autor de vários livros.
A entrevista é de Ibai Azparren, publicada originalmente por Naiz e reproduzida por Rebelión, 14-03-2024. A tradução é do Cepat.
O ataque do Hamas, no dia 7 de outubro, pegou Israel completamente de surpresa, cegando a nação mais poderosa da região, com a tecnologia mais sofisticada. Como isso foi possível?
Ainda há muita informação que não está clara, mas o que sabemos é que Israel confiou em demasia em sua tecnologia. Há relatos de que um ano antes do ataque, algumas fontes de inteligência israelenses tinham um plano bastante detalhado sobre o que poderia acontecer, embora não soubessem quando.
É notável pensar que quando vários funcionários de inteligência levaram esta informação a seus superiores, eles não imaginaram que o Hamas fosse capaz de agir. Acreditavam que caso agisse, a resposta israelense seria, como tem sido, devastadora e provavelmente retiraria o Hamas do poder. E o Hamas queria manter o poder.
Por último, e talvez o mais importante, é que é um delírio ideológico acreditar que milhões de palestinos viveriam indefinidamente sob a ocupação e a aceitariam. Agora, isto não justifica de forma alguma o que o Hamas fez, penso que foi cruel e contraproducente para a causa palestina. No entanto, faz tanto tempo que os palestinos vêm sendo desumanizados em Israel que a crença geral era de que estas pessoas em Gaza não merecem a igualdade de direitos.
O mundo viu a inteligência e a tecnologia israelenses fracassarem categoricamente, mas você prevê que a sua indústria de armamento prosperará após o 7 de outubro. Por quê?
Em primeiro lugar, desde a invasão russa da Ucrânia, muitas nações europeias foram a Israel para comprar enormes quantidades não só de vigilância, mas também de escudos de defesa antimísseis. Isto já acontecia muito antes do 7 de outubro e continua desde então.
Em segundo lugar, sei que muitas nações olham com admiração para o que Israel está fazendo, mesmo que não se manifestem publicamente. De fato, muitos países do sul global, muitos países árabes, dizem que se opõem ao que está acontecendo, mas continuarão comprando armas israelenses.
Além disso, penso que o Ocidente desejará demonstrar solidariedade e apoio a Israel. Sendo assim, quando os números de vendas de armas de 2023 forem divulgados, daqui a dois ou três meses, tenho certeza de que serão tão altos como os de 2022.
Como funciona o ‘Laboratório Palestino’?
Praticamente, desde o início de Israel, em 1948, entendeu-se que, como novo Estado, Israel tinha de fazer amigos. Os palestinos estiveram sob a lei marcial de 1948 a 1967 e, claro, Israel não tinha, então, o controle da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental. Contudo, mesmo assim, no final dos anos 1950, já estavam vendendo armas, inclusive, ironicamente, para a Alemanha.
Nos anos 1960, logo após Israel ocupar esses territórios e embora muitas nações em todo o mundo se opusessem publicamente à sua colonização, muitas recorreram a Israel pedindo conselhos, admirando o que Israel estava fazendo na Palestina para controlar o que, então, já eram milhões de pessoas.
Muitas nações, da África do Sul do apartheid ao regime de Pinochet no Chile, não só estavam desesperadas por conselhos israelenses como também, em parte, agiam assim por três razões. Primeiro, queriam as armas; segundo, queriam o treinamento; e terceiro, queriam se aproximar de Washington.
Você fala de estados que compartilham o compromisso de Israel com o etnonacionalismo, como o governo de Narendra Modi, na Índia.
A Índia está se transformando tragicamente em um Estado fundamentalista hindu que discrimina os muçulmanos. Desde que Modi se tornou primeiro-ministro, em 2014, Netanyahu foi primeiro-ministro durante a maior parte desse tempo, e estes dois homens e os dois países compartilham uma crença ideológica no etnonacionalismo.
As autoridades indianas disseram que admiram o que Israel está fazendo na Cisjordânia e querem fazer coisas semelhantes na Caxemira. E a Índia tem um visto, sobretudo porque não é a China.
E cita também a sua relação com a extrema-direita ocidental.
Há semanas, alguns membros do alto escalão do partido político de extrema-direita da Suécia estiveram em Israel e foram recebidos por altos funcionários do governo. E eu digo, como alguém que é judeu, qual demônios é o legado do meu povo quando o único Estado judeu no mundo se torna amigo de neonazistas?
A razão disto está na disposição de Israel em ignorar o fato de que estejam fazendo amizades com antissemitas porque o inimigo comum é o Islã, os refugiados, o multiculturalismo, os muçulmanos... E esta forma de aliança surpreendeu muitas pessoas quando leram o meu livro. Não se dá atenção suficiente para isto.
A União Europeia também não parou de trabalhar com empresas israelenses, apesar da ocupação do país.
A União Europeia é o maior parceiro comercial de Israel. Josep Borrell, chefe da política externa da União Europeia, disse que se as pessoas querem que Israel pare de matar civis, talvez devessem parar de lhes vender armas. Referia-se a todos os seus colegas europeus? Ou talvez aos Estados Unidos?
É claro, Washington é o ator mais poderoso, mas nações da União Europeia, como a Alemanha, expandiram enormemente suas vendas de armas a Israel, desde o 7 de outubro. Os meios de comunicação do Ocidente nos obcecam com comentários como os de Borrell ou com Joe Biden falando que a resposta de Israel foi exagerada. De acordo. E o que se está fazendo a esse respeito? Nada.
Nas primeiras décadas de sua existência, Israel autodenominava-se um país socialista. Agora, grande parte da indústria tecnológica e militar privada está profundamente ligada ao Estado. Quem realmente manda em Israel?
Autodenominava-se um país socialista, mas era uma bobagem. Grande parte da esquerda mundial pensava que Israel era uma espécie de utopia socialista, iam aos kibutzim..., mas era tudo mentira. Onde estavam os palestinos? Claro que estavam lá, mas não faziam parte desse sonho socialista. Desde os anos 1990, Netanyahu e outros transformaram o país em uma economia muito mais ligada ao livre mercado, são capitalistas de linha dura, que vendem muitos ativos públicos.
A maioria das empresas que cito no livro, Elbit Systems, NSO Group e outras, é privada. Basta olhar para depois do 11-S. Todas essas empresas tiveram um papel crucial nas guerras no Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia e, agora, na Ucrânia. Não estou sugerindo que essas guerras tenham começado porque as empresas de armamento quiseram. Não é assim que funciona e tampouco em Gaza. Contudo, o complexo militar-industrial é real e poderoso.
Inclusive, a situação econômica de Israel não está tão boa quanto parece.
O impacto de um sistema de mercado muito mais duro fez com que a taxa de pobreza de Israel seja a pior da OCDE. Um quarto dos israelenses vive abaixo da linha da pobreza. Junto a isso está o fato de que há uma proporção considerável de judeus ortodoxos que basicamente não fazem nada, em absoluto. Eles dirão que estão estudando a Torá e que estão perto de Deus. Bem, podemos discutir se isso é verdade, mas são, essencialmente, uma espécie de sanguessuga do Estado. E, a longo prazo, isto não é sustentável.
Contudo, a ocupação não representa um obstáculo financeiro, muito pelo contrário.
Definitivamente, o contrário. Novamente, Israel não mantém uma ocupação para ganhar dinheiro. Essa não é a única razão. A própria ocupação, a manutenção desta enorme infraestrutura de controle, durante décadas, levou a uma sociedade israelense moralmente estilhaçada.
Só é possível ocupar outro povo, por mais de meio século, com a crença ilusória de que essas pessoas não são iguais a você. E há israelenses suficientes dispostos a gastar o que for necessário para manter essa ilusão. O que o 7 de outubro mostra, no entanto, é que os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem.
Os Estados Unidos o protegem diplomaticamente, vende vigilância cibernética na África em troca do seu voto na ONU... a força militar não basta, precisa de um verdadeiro apoio internacional.
É claro que sim. Grande parte da retórica de Netanyahu gira em torno disso. Diz que estão travando uma guerra lá para que a Europa e os Estados Unidos não a tenham que lutar em seu território. Em outras palavras, Israel afirma que está travando uma gloriosa guerra de libertação, o que é um completo disparate.
Este é exatamente o mesmo argumento usado pelos Estados Unidos, após o 11-S. E o legado das guerras do Iraque e do Afeganistão foi, francamente, o nascimento do ISIS, que levou não só a crimes em massa no Oriente Médio, mas a uma violência terrorista horrenda na Europa e em outros lugares. E o que Israel faz em Gaza está levando mais israelenses a se sentirem mais inseguros.
Eitay Mack, um advogado especialista em direitos humanos, dizia que hoje, com a tecnologia de vigilância, é possível identificar e vigiar o próximo Nelson Mandela, mesmo antes de ele próprio saber que é Nelson Mandela. Até que grau de desenvolvimento esta tecnologia chegou?
Fascina-me esta citação. Qualquer comunicação digital, por definição, pode se ver violada. Os Estados Unidos fazem isto por meio da NSA, como vimos com as revelações de Snowden, em 2013. No que diz respeito a Israel e à sua vigilância a um povo ocupado, o único equivalente no mundo é o que a China está fazendo com os uigures.
A vigilância israelense, através da Unidade 8200, é incrivelmente poderosa. Esse nível de inteligência levou a ferramentas como o Pegasus, que muitas vezes são desenvolvidas por pessoas que adquiriram essa experiência nas Forças de Defesa de Israel. Apesar disso, no 7 de outubro, a vigilância fracassou categoricamente. Mesmo assim, não vi evidências de que aquele fracasso tenha tido algum impacto negativo nas empresas israelenses.
O Estado israelense utiliza o NSO Group para promover a sua agenda de segurança nacional, especificamente tecnologias como o Pegasus. Aqueles que compram dele estão abrindo as portas de seus aparatos de segurança à inteligência israelense?
Penso que não há dúvidas. O Pegasus foi vendido a muitos países, incluindo Espanha, e empresas como o NSO Group são essencialmente armas do Estado, funcionando como um braço do Estado de Israel. E não há qualquer dúvida de que em todos os países em que operam, da Índia a Ruanda, passando por Espanha e Grécia, está ajudando enormemente a inteligência israelense a coletar informações sobre esses países, sobre políticos, dissidentes, ativistas, seja quem for. As nações que fazem esta compra estão cientes disso e se importam? Eu faria esta pergunta ao Governo espanhol.
Ostentam a inovação tecnológica, mas você diz que grande parte do Shin Bet, o aparato de segurança nacional, é baseado na vigilância humana, na chantagem.
Israel está monitorando muitas formas de comunicação, como e-mails, telefonemas... Buscam pontos fracos. Digamos que um homem seja casado com uma mulher e esteja tendo um caso. A inteligência israelense obtém essa informação e depois vai até essa pessoa e diz: “sabemos que você está tendo um caso e contaremos à sua esposa, a menos que você trabalhe para nós”.
Agora, não estou que todo aquele de quem se aproxima se torna um espião, mas tenho visto palestinos em Gaza, amigos meus que ainda estão lá, recebendo de Israel mensagens de texto e pelo Facebook, com recomendações de que se a pessoa espionar para eles será retirada de Gaza.
Por que Israel tem tanta influência no Vale do Silício?
É uma pergunta difícil de responder. Israel tem grande influência em muitas indústrias e penso que há grande simpatia entre muitos membros da elite estadunidense por Israel, que francamente só aumentou desde o dia 7 de outubro. O Vale do Silício é bastante pró-Israel. Penso que existe uma verdadeira admiração e uma competição saudável entre o Vale do Silício e o seu equivalente em Israel: as empresas emergentes de tecnologia e defesa. Há certo grau de competição, mas também existe admiração mútua.
Facebook, Google, TikTok… têm bases nos Estados Unidos e não querem contrariá-los. E conforme documento no livro, muitas dessas empresas, na hora da verdade, seguem essencialmente a perspectiva do Departamento de Estado dos Estados Unidos sobre qualquer questão. Além disso, os israelenses estão muito mais bem organizados. Vão a todas estas empresas, inclusive a partir do 7 de outubro, com enormes exigências de censura e proibições. Contudo, é importante dizer que não acredito que realmente funcione.
Você afirma que o laboratório palestino não é inevitável. Por quê?
O que traz esperança é que nunca vi tamanha determinação por parte da sociedade civil. Refiro-me a partes da Europa, Estados Unidos e Reino Unido. Agora, isto está afetando ao que Rishi Sunak e Joe Biden estão fazendo? Provavelmente, não. Apesar disso, penso que no futuro se observará uma enorme expansão do boicote, do desinvestimento e das sanções contra Israel.
Comparo muito a situação com a da África do Sul, no passado, quando foram necessárias décadas e décadas para chegar a este enorme movimento de boicote, que levou ao colapso do regime do apartheid. Penso que ainda estamos muito longe disso, mas estou confiante. Além disso, há uma enorme guerra civil na comunidade judaica, em nível mundial. Um número crescente de judeus questiona o que Israel está fazendo. Isto também é alentador.
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“Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU