04 Janeiro 2024
"Nenhum cidadão culto de qualquer época ignora a força da transcendência na composição das civilizações. Não precisa ler a Bíblia nem a Torá tampouco o Alcorão para perceber que nem só de pão vive o homem. A imaginação – não necessariamente o imaginário – segue parte constituinte da vida em comunhão, associação, civilização", escreve Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP.
O ano era 1949. O mundo ainda se recompunha do chão de ruínas das guerras totais. A tensão Leste-Oeste se afirmava explícita. A “cortina de ferro” cortava Berlim ao meio. Stálin seguia vivo e vivaz. O Plano Marshall e a Otan eram as alternativas norte-americanas de contenção do avanço soviético pelo Ocidente. A Guerra Fria se instalava no tempo. Todas as regiões do planeta – Ásia, África, Américas – seguiam conflagradas. Reabilitar esperanças para forjar destinos era um desafio necessário, gigantesco e desafiador.
“Povos das Nações Unidas”, primeira frase da Carta das Nações Unidas, era uma imagem bonita. Mas, como sabido, incompleta. Era imensa e divergente a variedade de povos pelo mundo. Nenhuma instituição movia ações universais. Mesmo que muitas desejassem. Uma delas, por claro, era a Igreja Católica.
Deus fora um grande ausente nas trincheiras. Um verdadeiro Hades terreno foi vivenciado nas batalhas de 1914 a 1945. Mesmo aqueles de muita fé fraquejaram. Ninguém transcendente parecia ouvir o seu clamor. A desilusão dos viventes foi grandiosa. A deserção entre católicos também. O destino da instituição Igreja foi posto à prova. Coube a ela, a Igreja dos católicos, reagir. E o seu primeiro movimento importante ocorreu nesse ano de 1949 quando o Papa Pio XII abriu as portas da Cúria para a televisão.
Os aparelhos de retransmissão eram poucos pelo mundo. Poucas pessoas em poucos lugares do planeta dispunham dele. Mesmo assim, o efeito de recepção foi espetacular. Pela primeira vez as imagens e ações de sua Santidade eram transmitidas a quem desejasse pudesse. Um feito imponente para reaproximar Igreja e povo. Especialmente aos pobres; aqueles que “sempre tereis entre vós”.
A eleição do cardeal Angelo Roncalli, feito Papa João XXIII, sucessor do Papa Pio XII, foi a primeira nesses moldes. Fiéis católicos dos quatro cantos do mundo pararam diante de televisores para ver. Era uma evidente democratização do evento. Ninguém podia negar. A emoção do habemus papam virou, assim, efetivamente, mundializada. Outro feito inédito. Ninguém atento ficou indiferente como ninguém consciente deixou de notar que a convocação de um concílio pelo novo Papa era algo decisivo, intrigante, renovador.
O encontro anterior de bispos tinha ocorrido em 1869-1870. Quase um século antes. Mas, não somente por isso, demasiado longe no tempo e distante em realidades. O mundo mudou profundamente de um concílio a outro. Do Vaticano I ou Vaticano II. Não simplesmente pelas guerras totais do século XX. Mas essencialmente pela integração planetária das economias e pelo avanço da demografia.
Nas vésperas dos atos de Gavrilo Princip em 1914, para ficar apenas num exemplo, a população mundial não ultrapassava 1,5 bilhão. No início do concílio convocado pelo Papa João XXIII esse número tinha praticamente dobrado. Lembrando-se que o primeiro bilhão de pessoas vivas simultaneamente foi registrado apenas em 1750, o incremento populacional ao longo do século XX foi fantástico.
Voltando ao concílio, aquele dia 11 de outubro de 1962 foi marcante. Olhos e ouvidos do mundo inteiro acompanharam a sua inauguração com a saudação de sua Santidade, o Papa João XXIII, aos 2.600 bispos vindos de todas as partes. O propósito nuclear era fazer uma “atualização da Igreja”. Mas foi, em parte, sim, também, um mea-culpa. Era importante meditar sobre as omissões durante as guerras e era necessário projetar o futuro. Nos termos da época, os temas centrais do encontro foram 1º aggiornamento da Igreja e 2º o destino dos cristãos, católicos ou não. Temas, portanto, nada triviais e, mesmo assim, sempre atuais – desde Pedro e Paulo, apóstolos.
Naquele após-1945, a Europa continuava o berço e o centro da Igreja. Mas pela primeira vez nos concílios católicos, 1/3 dos bispos era de não-europeus. Parece pouco, mas era muito. A variedade de gentes era imensa. Nem as Nações Unidas envolviam tamanha representação.
Também por isso, foram intensos os debates em todas as direções. Entre 1962 e 1965 esses homens de Deus trabalharam diuturnamente para recompor o catolicismo e a fé entre cristãos não católicos. Da teologia à liturgia, nada passou despercebido. O ecumenismo virou uma meta. O latim deixou de monopolizar os encontros. Levar o conhecimento da Bíblia aos gentios virou uma missão implacável. Fazê-lo em língua vulgar pareceu o melhor caminho. E assim se fez.
Os efeitos disso tudo avançaram implicações duradoras. Todas muito fortes e presentes até hoje. Saiu, desde muito, dos radares de todos a meditação sobre isso. Mas, para o bem e seu contrário, meditar sobre as decorrências desse concílio vai muito além de interesses católicos e cristãos.
Sob muitos aspectos, a recomposição da fé e das práticas cristãs intuída nesse encontro de bispos dos anos de 1960 tinha um objetivo menos aparente, mas hoje extremamente evidente que envolvia recompor a vitalidade do presente e do futuro de toda essa civilização entendida como Ocidente.
Nenhum cidadão culto de qualquer época ignora a força da transcendência na composição das civilizações. Não precisa ler a Bíblia nem a Torá tampouco o Alcorão para perceber que nem só de pão vive o homem. A imaginação, não necessariamente o imaginário, segue parte constituinte da vida em comunhão, associação, civilização.
O Ocidente é, assim, antes de tudo, uma imaginação. Um locus de transmigração, acomodação e autorreconhecimento. Um ponto de fusão da cristandade. Um elo decisivo da reunião entre cristão.
Existe, por evidente, cristandade e cristãos foram do Ocidente. Mas apenas no Ocidente que a cristandade e os cristãos se reúnem nesses valores de aproximação e confluência de civilização. Uma civilização espacializada majoritariamente na Europa e em frações dos Estados Unidos.
A tese do famigerado declínio dessa civilização remonta ao seu próprio nascedouro no esfacelamento do império romano. A sua entropia maior começou nos iluminismos e nas violentas críticas à relevância do transcendente. A decapitação do rei francês foi o golpe mais profundo e as guerras totais completaram o processo. Não ao acaso que tudo ficou, efetivamente, perdido depois desse parricídio. Nietzsche sempre teve razão. Uma sociedade pós-cristã seria inevitável mesmo que com a promoção de um mal-estar insuperável.
Todos os envolvidos nas deliberações do Concílio do Vaticano II estavam cientes de tudo isso. Os observadores leigos mais agudos, mesmo que até anticristãos, também.
Pierre Chaunu, importante e conhecido historiador francês, foi dos primeiros a notar que aqueles anos de 1960 representavam um instant de malheur [momento de infortúnio]. Michel Foucault, inteiramente avesso à fé, também percebeu. O general De Gaulle foi mais longe ao reportar aos seus ministros que um mundo sem fé nem Deus seria um mundo sem razão nem condição de existir.
Percebido nesse prisma, os eventos de maio de 1968 foram singelos detalhes diante das forças profundas da mutação das sociedades ocidentais. O infortúnio que serviu de pano de fundo para as conversações entre os bispos entre 1962 e 1965 envolvia três verdades inconvenientes: o fim do afluxo demográfico no Ocidente, o declínio das práticas cristãs no Ocidente e a aceleração da transformação do homo religiosus em homo economicus.
Sob quaisquer aspectos, a expansão demográfica do século XX foi espetacular e impressionante. Saiu-se de 1,5 bilhão em 1900 para mais de 6 bilhões em 2000. Fez-se mais pessoas e mais pessoas sobreviveram e, ao sobreviver, viveram cada vez mais no século XX que em todos os séculos anteriores somados. Levou-se, assim, insistentemente, a sério a máxima do “multiplicai-vos”. Notadamente na Ásia, na África e no Oriente Médio; espaços majoritariamente não católicos nem cristãos. Com isso, o peso do número começou a desfavorecer os ocidentais, a cristandade e os católicos.
Se isso não bastasse, o declínio das práticas cristãs se intensificou entre eles. Tornar a liturgia vulgar era uma católica desde os tempos do Papa Pio XI. Mesmo os campesinos – geralmente mais fervorosamente católicos no espaço europeu – não admitiam mais as distâncias, as costas do padre e as missas em latim. Os relatórios paroquiais daqueles anos indicavam uma regressão sem precedentes no engajamento dos católicos. Tornar a Igreja mais atraente e ecumênica, assim, foi outra alternativa frente o evidente desespero dos gestores da fé.
Mas o mais complexo vinha do mercado. A integração das economias foi se acelerando desde o século XVIII. Mas, a partir da belle époque, a combustão dos motores inflamou tudo fazendo com que o “Deus mercado” substituísse o próprio Deus. A Igreja, ópio do povo, que dizia Marx, foi, assim, perdendo terreno para o consumo. O homo religiosus, desse modo, foi se tornando um homo economicus. Pelas voltas de 1960 isso era uma evidência para quem quisesse ver.
A conjugação dessas três verdades inconvenientes só de amplificou desde então. A complexidade de tudo isso sempre foi evidente, entretanto, tratada como algo aparente. Quando se falou de “choque de civilizações”, a reação foi de descrédito ou repulsa. Quando se vivenciou o “choque de civilizações” no 11 de setembro de 2001 e depois, seguiu-se menosprezando a densidade do problema. Agora que todas as instituições ocidentais – democracia liberal à frente – claudicam não restam alternativas que reabilitar o espírito das conversas do Concílio do Vaticano II.
Falou-se muito em Deus por lá. Mas meditou-se mais ainda sobre as consequências de sua ausência da fé.
Meditar sobre isso, as consequências de um mundo pós-cristão, não compete necessariamente somente aos cristãos, católicos ou não. Do contrário. Da melhor interpretação disso tudo depende a compreensão dos desafios que o presente século anuncia.
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Voltar ao Concílio. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU