22 Novembro 2023
"O saldo do atentado palestino do Hamas, irresponsável, desesperado e desumano, contra civis judeus nas cidades próximas da fronteira, deverá ser uma longa noite de ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia onde todos os atos arbitrários serão cometidos por Israel em nome da segurança do 'povo eleito'. Cabe aqui perguntar: está mesmo facultado a um povo subjugar outro povo, cometendo as piores atrocidades, tais como desligar a energia da região, deixar faltar água potável, matar uma criança palestina a cada dez minutos pelos bombardeios incessantes, destruir já metade dos imóveis nesses territórios, [2] entre outros crimes de guerra, ainda que este povo subjugador seja Israel, autointitulado como 'povo eleito'? Quem deu essa permissão, Deus ou os Estados Unidos?"
A opinião é de André Márcio Neves Soares, doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA.
O pintor Pablo Picasso deve estar se revirando-se no túmulo com o genocídio praticado por Israel contra os palestinos. Quando Picasso tomou conhecimento do massacre ocorrido na cidade de origem basca de Guernica, pintou o quadro que o imortalizou. Com efeito, este quadro é uma declaração de guerra contra a guerra, e um manifesto contra a violência. Pintado em 1937, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Picasso foi testemunha da ascensão dos governos fascistas europeus. Impactado pelas notícias dos bombardeios aéreos à cidade feito por caças alemães em apoio ao general Francisco Franco, da Espanha, este quadro é hoje considerado um símbolo do antimilitarismo mundial e da luta pela liberdade do ser humano.
Guernica, iuma das obras mais famosas de Pablo Picasso (1881-1973), pintada a óleo em 1937, representa os horrores da Guerra Civil Espanhola. (Imagem: Reprodução | Wikimedia Commons)
Quase 90 anos depois, estamos diante de um novo e desproporcional bombardeio efetuado por uma nação, altamente militarizada, contra um povo que teima em resistir diante das piores violações do que restou de seu território. O primeiro ator é o Estado de Israel, governado por um grupo de extremistas judeus (sionistas), capitaneado por Benjamin Netanyahu, homem frio, calculista e corrupto que está no poder, praticamente, desde 2009, além de já ter estado a frente do poder na década de 1990. O segundo ator é o Estado Palestino, ainda não independente, com seus territórios divididos em duas administrações – uma que engloba a Faixa de Gaza sob o comando do Hamas, outra que parte abrange a Cisjordânia, parcialmente administrada pela ANP (Autoridade Nacional Palestina) – a qual foi reduzida, desde a fundação de Israel no mesmo local em 1948, em mais de 80% do seu território original. O segundo ator representa, também, o grupo político palestino Fatah, nacionalista e laico, sendo considerado mais moderado que o Hamas. Mahmoud Abbas é o atual presidente.
Assim, é fundamental entender que o grupo radical de judeus, os sionistas, que governa com mão de ferro Israel, apesar das tentativas midiáticas de qualificá-lo como uma democracia, defende a criação e a manutenção de um Estado nacional judaico. O nome, parecido com o do partido alemão que tomou o poder na Alemanha na década de 1930, grupo radical, nacionalista, que se auto intitulava Partido Nacional Socialista, não é mera coincidência. De fato, os membros do NSDAP, mais conhecido como Partido Nazista, alegavam representar os trabalhadores alemães. Surgiram a partir do nacionalismo alemão combinado à cultura paramilitar racista e populista dos Freikorps, que lutaram contra os levantes comunistas na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial.
Ora, os sionistas formam um grupo de radicais judeus que pregam o nacionalismo judaico e historicamente propõem a erradicação da Diáspora Judaica com o retorno da totalidade dos judeus ao atual Estado de Israel. O grupo defende a manutenção da identidade judaica, opondo-se a assimilação dos judeus pelas sociedades dos países nos quais em que viviam. Em outras palavras, o sionismo estimula o etnocentrismo e o consequente segregacionismo. Procede, de maneira velada e similar, da teoria ariana do Partido Nacionalista Socialista da Alemanha dos anos 1930/1940. Esta alegava a pureza do sangue alemão perante todas as outras etnias do mundo. O grupo nazista, capitaneado por seu líder máximo, Adolf Hitler, acreditava, verdadeiramente, que o povo alemão ou indo-europeu seria esse povo, poderoso a tal ponto de comandar o planeta e exterminar os considerados diferentes.
Por conseguinte, o sionismo é um movimento particularmente colonialista e racista. Israel colecionou vitórias contra grupos de países árabes no passado, como na Guerra dos Seis Dias e na Guerra do Yom Kipur mas, enfrentar todo um mundo árabe e manter uma guerra de longa duração além dos tradicionais inimigos persas do Irã, seria além da conta. Aliás, não fosse o papel preponderante dos Estados Unidos, mesmo nestas guerras regionais contra alguns países árabes, o resultado seria outro. Seja como for, deve ser frustrante para este grupo judeu, de extrema-direita, não poder se expandir, como gostaria, sem o risco de provocar uma nova guerra mundial, além de necessitar contar com a ajuda militar da principal potência do planeta, os Estados Unidos, que não por acaso, atracaram dois porta-aviões na costa de Israel.
Foi exatamente diante de todo esse contexto histórico que ocorreu o primeiro Nakba, uma palavra árabe que significa "catástrofe" ou "desastre" e que designa o êxodo palestino de 1948, quando, pelo menos 711.000 árabes palestinos, segundo dados da Organização das Nações Unidas, fugiram ou foram expulsos de seus lares, em razão da guerra civil de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense de 1948. Esta catástrofe de agora, a Nakba de 2023, é “apenas” a mais recente, se podemos simplificar com palavras mais uma ignomínia contra o povo palestino. Contudo, pela narrativa da ultradireita sionista judaica, parece ser a de maior proporção, desde a primeira citada logo acima. Deveras, é a primeira vez, salvo engano, que um primeiro-ministro de Israel afirma que assumirá a responsabilidade pela segurança do território palestino por um período indefinido assim que derrotar os militantes que o controlaram nos últimos 16 anos. [1]
Isso é muito grave! Ao anunciar publicamente, para quem quiser ouvir, que Israel controlará militarmente os territórios palestinos, Netanyahu está a rasgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, no seu artigo XVIII, inciso III, que diz: “A vontade do povo será a base da autoridade de governo”. Nesse instante, tudo leva a crer que Israel conseguirá, de fato, tomar os territórios palestinos, já cercados, totalmente, pelas forças armadas judaicas. Porém, acabar com o Hamas é sabido ser muito mais complicado, para dizer o mínimo. Israel sabe disso. Assim como o Talibã não foi exterminado no Afeganistão, depois de mais de vinte anos de ocupação do território pelos Estados Unidos, é razoável supor que Israel também não aniquilará os integrantes do Hamas.
Por consequência, o saldo do atentado palestino do Hamas, irresponsável, desesperado e desumano, contra civis judeus nas cidades próximas da fronteira, deverá ser uma longa noite de ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia onde todos os atos arbitrários serão cometidos por Israel em nome da segurança do “povo eleito”. Cabe aqui perguntar; está mesmo facultado a um povo subjugar outro povo, cometendo as piores atrocidades, tais como desligar a energia da região, deixar faltar água potável, matar uma criança palestina a cada dez minutos pelos bombardeios incessantes, destruir já metade dos imóveis nesses territórios, [2] entre outros crimes de guerra, ainda que este povo subjugador seja Israel, autointitulado como “povo eleito”? Quem deu essa permissão, Deus ou os Estados Unidos?
Pois bem, Guernica localizava-se na província de Biscaia, no País Basco. Durante a Guerra Civil Espanhola, a cidade era conhecida como um local de resistência da cultura basca, um grande alvo do governo espanhol. As forças republicanas eram compostas por diferentes facções (comunistas, socialistas, anarquistas e outros) com diferentes objetivos, mas unidos na oposição aos nacionalistas. Esses eram liderados pelo general Francisco Franco que buscava um regresso a Espanha pré-republicana, baseada na lei e no respeito pelos valores católicos tradicionais. No dia 26 de abril de 1937, às 16:30 horas, aviões de guerra alemães, liderados pelo marechal Wolfram von Richthofen, bombardearam a cidade durante cerca de duas horas. A Alemanha, à época governada por Hitler, era aliada dos franquistas, aos quais foram oferecidos armas, soldados e apoio militar a rodo.
Graças ao relato do correspondente inglês George Lowther Steer, o horror do bombardeio conseguiu ganhar a denúncia necessária pelo mundo. Com carreira dentro do exército britânico, Steer havia se tornado um grande correspondente de guerras. Ele já havia presenciado outros conflitos pelo mundo, mas sua principal contribuição foi a reportagem feita logo após o bombardeio, publicado no The Times e no The New York Times no dia 28 de abril de 1937, dois dias depois da tragédia. No seu livro “A árvore de Gernika”, ele descreveu sobre os horrores dos bombardeios, as casas explodindo, os corpos carbonizados, o desespero para retirar crianças e idosos dos escombros e levá-los para os abrigos, assim como o espírito de resistência submissa que brotou na população que restou.
Parecido com o que vemos agora no conflito bélico entre Israel e o Hamas, não é caro leitor? A diferença é que não temos mais Pablo Picasso para retratar esse horror no século XXI. É verdade que os muitos protestos acontecem mundo afora, apesar de não haver nenhum de grande expressão por parte de alguma figura pública famosa, como era Picasso, salvo o Papa. Cabe uma menção honrosa para Roger Waters, vocalista da banda Pink Floyd. Em tempos de fetiche pelo dinheiro, e a consequente mercantilização da vida, se algum/a famoso/a se pronunciar contra Israel estará cometendo suicídio artístico. Deste modo, a Guernica pós-moderna poderia ser ilustrada num quadro contendo apenas um imenso, árido e fumegante pó vindo dos territórios palestinos sob escombros, com esqueletos desmembrados e caveiras aterrorizadas. Nada mais “picassiano”.
1. Disponível no link.
2. Disponível no link.
STEER, George Lowther. A árvore de Gernika. Editora Companhia das Letras, 2017.
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A Guernica pós-moderna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU