30 Mai 2023
"Quero os meus iguais, minha própria espécie, livre das correntes da ignorância, da fome e da desigualdade. Para isso, muito mais que meras vidas estéreis, secas como folhas no final da estação, é preciso dotar a minha espécie de sonhos bons, de desejos comedidos e condições decentes de sobrevivência para todos", escreve André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos – NEDH.
Se eu nascesse uma muriçoca, por que iria querer viver muito tempo se o que faço é apenas sugar o sangue dos outros animais?
Se eu nascesse uma formiga operária, por que iria querer viver muito tempo, se meu destino seria apenas trabalhar indefinidamente e lutar sem tréguas contra eventuais invasores, em prol da comunidade?
Se eu nascesse uma abelha obreira, por que iria querer viver muito tempo, se minha função seria apenas trabalhar incessantemente construindo favos, coletando material no ambiente (pólen, água e néctar), produzindo mel e cera, alimentando a rainha e defendendo a colmeia dos ataques, inclusive, de um ser enorme, quase invencível e alienígena (o homem), que costuma roubar a produção da colônia?
Se eu nascesse uma vaca, por que iria querer viver muito tempo, se seria obrigada a fornecer leite ao homem que me confinaria e sequer me permitiria alimentar dignamente meus filhotes?
Se eu nascesse um leão, por que iria querer viver muito tempo, neste mundo terrível em que a cada dia o território animal diminui, por causa da ganância irrefreável do homem?
Se eu nascesse um elefante, gostaria de viver menos, por causa do aumento exponencial da catástrofe climática e do enorme risco de vir a ser mutilado por caçadores em busca do meu marfim.
Se eu nascesse um gorila, por que iria querer viver tanto quanto meu primo humano, se ele me aprisionaria em jaulas, sob o pretexto de me preservar, ou me condenaria aos confins do planeta, em razão da sua sanha indesculpável por mais terras.
Mas tendo nascido um humano, eu posso sugar o sangue dos outros. Posso obrigar um monte de iguais a trabalhar para mim, até a exaustão, sob o pretexto de beneficiar a comunidade. Posso roubar o produto do trabalho dos outros iguais que não preciso fazer trabalhar para mim. Posso colocar muitos dos iguais a mim em trabalho ininterrupto, mesmo que isso eventualmente custe o correto cuidado dos descendentes deles.
Posso reivindicar mais território para apenas especular. Posso manipular a natureza sem me preocupar com os efeitos nefastos sobre o clima da terra, pois, ainda que viva bastante, a perspectiva de morrer antes que tudo acabe massageia meu consumismo egoísta. Posso, por fim, cultivar todas as terras férteis do planeta, sem qualquer intenção de promover a igualdade entre meus semelhantes, mesmo que isso cause a exaustão da fauna e da flora de um mundo lindo de morrer, mas que teve o azar de me ver nascer.
Mas, olha, nasci humano e não quero fazer nada disso! Quero doar meu sangue, para que outros vivam. Quero minha comunidade forte, saudável e feliz através do trabalho, mas também sem ele, porque, afinal, o trabalho só tem sentido se promover o bem, a inclusão, o aprendizado e a boa vida. Quero aprender com quem sabe, para não precisar me apropriar de nada que não é meu.
Quero os meus iguais, minha própria espécie, livre das correntes da ignorância, da fome e da desigualdade. Para isso, muito mais que meras vidas estéreis, secas como folhas no final da estação, é preciso dotar a minha espécie de sonhos bons, de desejos comedidos e condições decentes de sobrevivência para todos.
Todavia, bem sei que meus desejos são incompatíveis com a sociedade humana da falsa “pós-modernidade”. Digo falsa porque estamos a retroceder no tempo, em termos das garantias básicas de civilidade intra e intermuros em todos os países. É verdade que a humanidade nunca foi uma espécie animal em equilíbrio com a natureza, ao contrário da grande maioria de espécies que sempre habitaram nosso planeta. Mas a escalada de destruição que temos conhecimento ao longo de séculos, milênios quiçá, é de tal monta, que não basta mais querer voltar a ser humano.
A cada geração nascemos menos como humanos e mais como algum tipo de híbrido, que tem entrado em simbiose com a evolução maquínica da sociedade rarefeita da vida desligada. Pois a cada geração que passa, parece que perdemos um pouco mais da consciência do que realmente importa para sermos simplesmente felizes. Ao invés, elevamos como condição para a nossa felicidade o afeto fugaz, o brilhareco midiático, o dinheiro fácil e virtual, tudo digerido com coquetéis de psicotrópicos necessários para uma vida sem propósito.
Mas a vida tem algum propósito? É possível que para todas as espécies citadas acima a vida tenha propósito. É desnecessário enumerá-los. O maior deles é a reprodução, ou seja, a perpetuação de cada espécie. Porém, para nós nem isso mais é um propósito, na medida em que boa parte da humanidade não deseja mais ter filhos, e uma outra parte ainda tem porque é tão miserável que não consegue sequer evitar. Então, qual seria o propósito de uma espécie que não deseja mais se renovar? Atualmente, preferimos pensar em clonar a nós mesmos, para termos uma segunda vida ou, quem sabe, vida eterna.
Ora, quem se clona a si mesmo, por enquanto, são os vírus. Assim, se eu nascesse um vírus, iria poder me infiltrar no organismo dos outros para usufruir das benesses que lá já existem. É isso que a espécie humana busca para seu futuro?
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E se eu nascesse humano? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU