02 Outubro 2023
Dados parciais da Campanha Contra o Trabalho Escravo da CPT revelam que mais de 2.500 pessoas foram resgatadas até o mês de setembro deste ano no país.
A entrevista é de Cláudia Pereira, da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEETH).
A Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela que os dados parciais do número de pessoas resgatadas até o dia 10 de setembro ultrapassam de 2.500. Os dados provisórios da campanha, apontam que a violência contra as pessoas em situação de vulnerabilidade é crescente nos últimos anos. A CPT coordena a Campanha Nacional de combate ao trabalho escravo desde 1997. Com o lema “De olho aberto para não virar escravo”, há mais de 15 anos a campanha recolhe denúncias e colabora para os resgates de pessoas que caem nas armadilhas do trabalho escravo. A campanha da CPT é parceira da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEETH) da CNBB. O cenário atual do enfrentamento ao trabalho escravo no país tem avançado e foi uma das poucas políticas públicas que o governo anterior não conseguiu derrubar.
No início do mês de setembro o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), divulgou o resultado da Operação Resgate III que retirou mais de 500 pessoas de trabalho escravo. A operação é uma ação conjunta de seis instituições: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF). Mais de 70 equipes de fiscalização participaram de 222 inspeções em 22 estados e no Distrito Federal. A operação conjunta de combate informou que foi uma das maiores ações de enfrentamento. O estado de Minas Gerais liderou com maior número de pessoas resgatadas, 204, no total, maioria em área rural na lavoura de café. O estado de Goiás ficou em segundo lugar com 126 e São Paulo em terceiro lugar com 54 pessoas resgatadas. As vítimas foram libertadas de atividades econômicas na área rural e na área urbana, com destaque para as atividades em restaurantes, oficinas de costura, construção civil e trabalho doméstico. Os dados da operação, somados aos dados da Campanha da CPT, indicam que os números de homens, mulheres e jovens em situação de Trabalho Escravo contemporâneo podem ultrapassar o número de 2.500.
Operação Resgate III, no Tocantins. (Foto: Divulgação | Defensoria Pública da União)
Frei Xavier Plassat um dos coordenadores da Campanha Nacional Contra o Trabalho Escravo da CPT, em entrevista ao site da Cepast, confirma que os números da operação em conjunto realizada no início do mês, confirma que o crime é restrito a uma cultura que perpassa todo o ambiente brasileiro, tanto empresarial como doméstico. A luta contra a escravidão moderna é desafio do cotidiano. Frei Xavier alerta que essa luta se torna ainda maior quando ameaçam ferramentas de enfrentamento, como a Lista Suja ou quando não há mão de obra por parte do governo para fiscalizar regiões onde as denúncias são maiores, o caso da região Amazônica da qual a ação conjunta do último mês não aconteceu. Xavier Plassat também chama atenção para as novas formas de aliciadores que tentam burlar as leis. Apesar da ausência de contratação de agentes fiscais pelo Estado, Frei Xavier revela que o número de operações nos últimos três anos aumentou, se comparado aos anos 2000.
Um dos coordenadores da Campanha Nacional Contra o Trabalho Escravo da CPT, Frei Xavier Plassat. (Foto: Divulgação)
Acompanhe a entrevista com Frei Xavier Plassat da coordenação da Campanha de combate ao trabalho escravo da CPT.
Qual a sua análise para esse número de pessoas resgatadas de trabalho escravo no Brasil até este mês de setembro de 2023?
Os números da operação demonstram a importância em investir nas operações concentradas e abrangentes do Ministério do Trabalho. O resultado da Operação Resgate 3, é um indicativo ao tamanho da realidade do trabalho escravo e o tráfico de pessoas de maneira geral que é invisibilizado no Brasil. Atualmente o Ministério do trabalho dispõe de 45% da força de trabalho necessária de auditores fiscais. Desde 2003 não foi realizado concurso para contratação de agentes fiscais, recentemente foi anunciado concurso para contratar 900 agentes auditores fiscais do trabalho, isso vai resolver apenas uma parte, mas não soluciona. A realidade que temos à nossa frente diante dos nossos olhos é muito difícil, temos que se precaver da tendência do aliciamento moderno, a exemplo da lavoura de frutas no Sul, usou de intermediários “gatos modernos” que exonera o empregador das suas responsabilidades. Se observa o número crescente do trabalho escravo doméstico, a exemplo da idosa com mais de 80 anos de idade que ficou mais de cinquenta vivendo nestas condições. Estes exemplos nos mostram o caminho importante que temos para desnaturalizar as diversas situações do trabalho escravo que não é restrito a Amazônia, lavoura de frutas, canavial, carvoaria e a regiões. Esse crime é restrito a uma cultura que perpassa todo o ambiente brasileiro, tanto empresarial como doméstico. Temos que abrir os olhos porque isso não é normal, levanta-se e denuncie.
Considerando déficit orçamentário, força de trabalho do Estado, quais as razões que contribuíram para esse enfrentamento?
Faltou investimento para a mão de obra, teve orçamento para custear as ações realizadas pelo governo. Podemos observar que nos dois últimos anos houve um número de fiscalização elevado para o enfrentamento do trabalho escravo. A média de fiscalização entre os anos de 2014 e 2020 era de 250 fiscalizações por ano. Em 2021 esse número saltou para 500 e em 2022 foram mais 540 fiscalizações. Então nestes últimos anos tivemos o dobro de fiscalização. O combate ao trabalho escravo foi uma das poucas políticas que o governo Bolsonaro não conseguiu derrubar e por esta razão conseguimos manter essa pauta que é um instrumento com capacidade de atuar com vários parceiros envolvidos, além dos auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT), a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Polícia Federal que agem de forma articulada que desde 1995 chamamos de grupo móvel. Então nós saudamos estes fiscais de combate ao trabalho escravo pela força, determinação para enfrentar os contratempos e marés para mudar essa realidade.
A operação resgate III apresenta um número elevado de pessoas resgatadas na lavoura de café na região sudeste, já na região amazônica onde há denúncias quase não aparece. Essa situação corresponde a forma de enfrentamento?
Ao compararmos a situação entre a região sudeste, neste caso o estado de Minas Gerais, onde a atividade na lavoura do café é tão tradicional e o número alto de pessoas resgatadas, se deve número de fiscais lotado em Minas Gerais, enquanto no estado do Pará o número de fiscais é bem menor e vemos essa desproporção da quantidade de auditores fiscais na região amazônica. Vejo com muita preocupação o fato de que na Amazônia não tem fiscalização nos últimos 10 anos. A Amazônia Legal já registrou no passado 46% dos resgates, este ano foi 7%. A Operação Resgate III não ocorreu no estado do Pará. Não houve operação de onde recebemos informações diárias sobre o desmatamento, mineração ilegal, invasão de territórios indígenas e violações que se acompanha da prática de trabalho escravo e que são fadadas a invisibilidade. Tudo isso se tornou invisível porque houve desmonte nos últimos anos na fiscalização ambiental, o agronegócio nas suas várias vertentes continua sendo o carro chefe de onde se encontra várias situações, tudo isso contribui para a invisibilidade crescente.
Trabalhadores flagrados em condições análogas às de escravo na Operação Resgate 3. (Foto: Divulgação | GEFM)
Em referência aos empregadores, fazendas e grupos que cometem ou contribui para o trabalho análogo a escravidão e que acreditam no poder da impunidade, qual a forma da lei fazer a justiça para estes crimes?
A prática do trabalho escravo ocorre em função da ganância, o objetivo principal é aumentar a taxa de lucro em comparação ao resto da categoria. A Lista Suja foi promovida em 2003 no Brasil para denunciar e punir empresas. O objetivo essencial da Lista Suja é dizer ao mercado: ‘olha, tem parte de vocês que não estão cumprindo a regra do jogo, estão jogando com regras erradas’. Expor essas empresas ao mercado não prejudica somente a imagem do setor, mas prejudica a sua capacidade competitiva porque cria falsas condições de competição de concorrência, portanto é interesse da categoria empresarial dos vários setores limpar a sua cadeia produtiva desses maus jogadores. Por isso a ideia de promover o pacto de empresas contra o trabalho escravo é importante e essa lista é atualizada a cada seis meses. O problema a ser enfrentado é que alguns setores fazem pressão para inviabilizar a eficácia do instrumento comprovado que é a Lista Suja. Uma ferramenta de enfrentamento reconhecida, inclusive por outros países. Alguns setores promovem acordos ou decisões judiciais para retirar os nomes das empresas denunciadas nesta lista.
Portanto, às vezes quando pensamos em punição, se pensa em prisão, mas oito anos de detenção não é tão eficiente quanto outros mecanismos. As multas aplicadas pelo Ministério Público do Trabalho, obrigam as empresas e os empregadores a pagar indenizações por danos morais no individual e no coletivo para ressarcir pagamentos e direitos trabalhistas. Outra forma também como um instrumento para a punição é a desapropriação da terra, desde que esse confisco configure o desrespeito à função social da propriedade, mas desapropriação efetiva de imóveis rurais tem sido algo raríssimo.
O que são e como agem os aliciadores modernos, os “gatos” modernos?
Um exemplo perfeito é o fato ocorrido nas vinícolas de Bento Gonçalves (RS), onde mais de duzentas pessoas foram resgatadas do trabalho análogo a escravo, quase todos eram do estado da Bahia e foram aliciados através de uma empresa intermediária de mão de obra. O Ministério Público apurou que a empresa não tinha condições legais para exercer ou prestar esse tipo de serviço. A empresa não tinha capital para garantir os riscos, além de não ter os requisitos mínimos exigidos por lei para funcionar como uma empresa. Em resumo, é o tipo de empresa que faz serviços de intermediações de mão de obra ilegal. O que tem acontecido é que essas empresas maiores terceirizam a contratação de mão de obra para diminuir custos e retira a responsabilidade de algo que possa acontecer com os trabalhadores.
O avanço que nós conseguimos é de corresponsabilizar a empresa que é a tomadora dos serviços e a empresa terceirizada, ou seja, a empreiteira que faz o papel de “gatos”. O que tem sido um problema é que estas grandes empresas que terceirizam a contratação de mão de obra, em situações de trabalho análogo a escravo, se dizem desconhecidas do fato, pois acusam os serviços terceirizados. Na última reforma trabalhista houve uma legalização para a terceirização, inclusive das atividades fins e não somente das atividades meio. Então é arguindo do fato que a terceirização é legal, para o fato que a responsabilidade de quem pratica o trabalho escravo é da empresa terceirizada. Isso é inadmissível, é uma forma de mascarar a realidade, principalmente das grandes marcas que estão na área têxtil, alimentícios e outras produções. Se essa linha continuar será preocupante, por isso precisamos debater.
Como trabalhar a conscientização do que é a escravidão contemporânea?
A discriminação racial é um dos elementos envolvidos no tráfico de pessoas e isso é muito visível no trabalho escravo. A maioria dos trabalhadores resgatados do trabalho escravo são afrodescendentes. Portanto essa realidade da discriminação racial estrutural é um dos pontos para enfrentarmos com informação e formações. Parece óbvio, mas é necessário trabalhar a conscientização sobre essa realidade com a sociedade. Só com o conhecimento é possível fazer a denúncia.
Uma das formas para enfrentar a violência do trabalho escravo é fazer a denúncia. Além de contribuir no mapeamento, são ações que salvam vidas. Mesmo que as denúncias sejam baseadas em suspeitas, pode ser feita através do Disque 100 ou acesse a plataforma Ipê, canal de denúncia Ipê é um site ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego que recebe e encaminha denúncias exclusivas de crime de trabalho análogo ao de escravo. Outra forma é procurar ajuda através de organizações ligadas à Igreja Católica e solicitar orientações e ajuda, a Comissão Pastoral da Terra é uma delas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Milhares de pessoas foram resgatadas de trabalho escravo contemporâneo em 2023 no Brasil. Entrevista com Frei Xavier Plassat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU