24 Agosto 2023
A “alta diferenciação”, que caracteriza as nossas sociedades e as nossas Igrejas, pede a superação das lógicas meramente hierárquicas da sociedade da honra, junto com a correção fraterna da sociedade da dignidade, fundada na liberdade e na igualdade. A transcendência de Deus está naquela imanência transfigurada e transfigurante que se chama amor.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 22-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma questão decisiva para toda teologia é garantir a Deus o seu lugar de autoridade. Se Deus não é “outro”, perdem-se todos os seus vestígios. A “imanência” parece ser a negação de Deus. Por outro lado, uma “total alteridade de Deus”, por sua vez, ameaça toda teologia, reduzida assim ao silêncio da transcendência inatingível do divino.
O espaço estreito entre uma imanência de transcendência e uma transcendência capaz de imanência se cumpre, irreversivelmente, na lógica trinitária do Deus que, por amor, se faz homem. Pai, Filho e Espírito Santo são garantia de transcendência, de imanência e de relação para sempre e para todos com esse amor, ao mesmo tempo outro e o mesmo.
Um Deus apenas “diferente” implica uma cultura e uma sociedade em que a hierarquia é o princípio indiscutível: hierarquia natural e hierarquia social se correspondem ao garantir a transcendência de Deus. Assim, uma hierarquia dos sexos e uma diferença essencial entre homens da hierarquia e homens sem hierarquia torna-se a forma de visibilidade da autoridade de Deus.
Esse modo de pensar esteve amplamente presente na cultura tradicional europeia, até ao advento da modernidade tardia, quando a sociedade da honra identificou na “diferença hierárquica” a forma social e cultural para compreender o mundo, o ser humano e o próprio Deus. Mas, com o surgimento da sociedade liberal, que podemos chamar de “sociedade da dignidade”, esse modo de pensar entrou em crise.
Se permanece a exigência de pensar e de experimentar a “diferença de Deus”, isso ocorre em relação a um “princípio de imanência” que concebe o mundo, o ser humano e o próprio Deus de maneira diferente. É a dignidade de cada criatura que constitui o ponto de partida, que aparece assim, aos olhos do saber clássico, como uma “queda na imanência sem Deus”. Tudo é repensado a partir dessa ótica, e tudo é suspeito de “perder toda transcendência”. Até mesmo os “direitos humanos” foram capturados nessa releitura ateísta, que os faz derivar, culposamente, da negação de Deus.
Esse modo de reagir ao pensamento tardo-moderno não desapareceu do pensamento teológico. Às custas de produzir “dualismos em cadeia”, o pensamento ligado à “diferença de Deus” exige uma “diferença ontológica” que atravessa a sociedade e não suporta a “igualdade” e a “liberdade”, mas afirma continuamente a “hierarquia” e a “autoridade”.
Os dois pontos de maior resistência continuam sendo dois: a não admissão do princípio da “divisão do poder” no corpo eclesial e a resistência à “igualdade de autoridade” entre homem e mulher.
O princípio da concentração pelo bispo (em cada bispo e no bispo de Roma) de todo poder e o princípio da “reserva masculina” para o acesso ao ministério ordenado são pensados, muito frequentemente, como partes constitutivas da “constituição divina da Igreja”. Aqui opera uma sobreposição entre modelos de “diferença teológica” e de “diferença social” que ainda não conseguimos pensar com o devido discernimento.
É muito útil considerar o que produz o impacto entre essas “formae mentis” do mundo tradicional e o anúncio do evangelho no mundo tardo-moderno. A inconcebibilidade de um “instrumento sinodal” que ponha em questão o primeiro princípio e o temor do acesso das mulheres ao ministério ordenado, como crise do segundo princípio, são vividos como uma questão não de caráter disciplinar, mas de qualidade doutrinal e até mesmo dogmática. Aqui, o escasso diálogo entre a teologia e a cultura contemporânea torna-se dramático e cômico ao mesmo tempo. Ele projeta fantasmas tanto sobre a cultura quanto sobre a teologia ao mesmo tempo. E gera monstros.
As sociedades de alta diferenciação, como as que surgiram das grandes revoluções tardo-modernas, não são “menos diferenciadas”, mas sim “mais diferenciadas” do que as sociedades tradicionais. A ideia de que a “igualdade” e a “liberdade” empobreceram o corpo social é o fruto de um equívoco muito frequente. Pelo contrário, são as sociedades tradicionais que consideram “aberrantes” as transgressões à norma social, que obriga os leigos e os clérigos a papéis hierárquicos imutáveis, assim como os homens e as mulheres, tanto na família quanto na sociedade. A saída dessas normas estritas não é a negação do evangelho, mas sim sua reformulação em uma cultura nova.
Se uma “sociedade da honra” for substituída por uma “sociedade da dignidade”, nasce não só o risco de uma “identidade não reconhecida”, o que certamente é um problema nada pequeno, mas também uma “alta diferenciação” que institui novas formas de identidades, antes impossíveis e inconcebíveis.
A Igreja também se enriquece com essa nova dinâmica. Certamente, na Igreja Católica, precisamente a dimensão universal obriga a levar em conta um mundo complexo, no qual continuam convivendo, muitas vezes até em estreita proximidade, lógicas da honra e lógicas da dignidade, que precisam de uma lenta maturação. Por isso, uma diferenciação compartilhada da doutrina, pelo menos para âmbitos continentais, será uma evolução inevitável.
O Deus “diferente” se mostra muito mais na “brisa suave” do que no “fogo” ou no “terremoto”. Assim, o amor, que é uma definição de Deus, não se deixa compreender simplesmente como o “totalmente outro” para o ser humano, mas sim como aquilo de que originalmente o homem e a mulher, todo homem e toda mulher, participam.
A “alta diferenciação”, que caracteriza as nossas sociedades e as nossas Igrejas, pede a superação das lógicas meramente hierárquicas da sociedade da honra, junto com a correção fraterna da sociedade da dignidade, fundada na liberdade e na igualdade. A transcendência de Deus está naquela imanência transfigurada e transfigurante que se chama amor.
Em grande parte do mundo, esse amor não suporta mais uma abordagem em que a “diferença de Deus” se imponha necessariamente como “hierarquia natural e social”.
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A diferença de Deus e a diferença da ordem social. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU